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O Estado de Direito

No Brasil, pode ser adquirido nas melhores casas do ramo e vem acompanhado de Manual e suplementos. Há diversos modelos e formatos. O mais caro, entretanto, não é para qualquer um.

terça-feira, 10 de março de 2009

Atualizado em 9 de março de 2009 13:07


O Estado de Direito

Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva*

"O justo terá a alegria de ver o castigo dos ímpios e lavará os pés no sangue deles." (Salmos 57, Versículo 11)

No Brasil, pode ser adquirido nas melhores casas do ramo e vem acompanhado de Manual e suplementos. Há diversos modelos e formatos. O mais caro, entretanto, não é para qualquer um. Além de muito mais dispendioso, o comprador deve satisfazer severas exigências: só será possível lançar mão da íntegra dos benefícios aquele que tenha sido alfabetizado em colégio estrangeiro ou recebido aulas particulares para o aprendizado de outros idiomas. Mais. O adquirente deve estar familiarizado com a prática dos mais nobres estilos esportivos: o pólo, a vela, o esqui e o Bridge. Não é só. Também se requerem educação suplementar em Harvard ou universidade equivalente, moradia nos "jardins" de São Paulo ou no Leblon do Rio e a posse de transporte blindado. O afortunado arrematador desse produto necessita, ainda, demonstrar ser provido de assistência médica e assessoria jurídica prestadas por profissionais magníficos que, por sua vez, também deverão ter trafegado por idênticos percursos. Embora não se exija descendência monárquica, todos precisam ostentar títulos da nobreza republicana. Não é necessário nascer em berço de ouro, mas, na ausência deste feliz requisito, ainda para alcançar aludida fortuna, é preciso possuir os seguintes atributos: inteligência, talento, determinação e sorte.

Infelizmente, em face das inúmeras exigências, são poucos aqueles que podem desfrutar do estado de direito na sua plenitude. Mas, para esses, o céu é o limite, em todos os sentidos. Até a extrema-unção é ministrada pelos bispos da Igreja.

Em contrapartida, na base da pirâmide, aonde se encontram, por exemplo, (dados do IPEA), dois e meio milhões de crianças vítimas do trabalho infantil, três milhões e cento e vinte mil indigentes (percebem menos de ¼ do salário-mínimo) , não há conhecimento da existência desse tal estado democrático de direito em qualquer loja da periferia. Por outro lado, nas faixas de maior concentração de indivíduos, as classes pobre e média, em que a realidade é recorrentemente confrontada pela educação insatisfatória, pela saúde precária, pela segurança de faroeste e a vida, enfim, é vivida entre lágrimas e pesadelos, o estado de direito, embora constantemente apregoado pelos mais ilustres e distintos cidadãos, é quase para elas inacessível e constitui, na verdade, uma mera expressão melancólica para os visionários da esperança.

A instituição existe, mas a grande maioria da sociedade a ignora.

No mais, os Ministros do Supremo, sempre vigilantes dos direitos dos cidadãos, aboliram as algemas e, assim, subtraiu-se dos eternos humilhados a doce alegria de perceberem, por alguns instantes, no rosto dos ricos, a mesma impensável humilhação.

Pior ainda foi a revelação de contágio, nos gabinetes do Tribunal, da doença da fortuna, sem vacina eficaz, que contamina os homens e os torna submissos e reverentes, mesmo os mais íntegros.

Não se duvida, por exemplo, da convicção e do acerto jurídico da midiática decisão adotada pelo Presidente do Supremo, Ministro Gilmar Mendes, que concedeu liminar de soltura para nobre senhor. Contudo, também existe a certeza de que a agilidade e a percuciência deste ato podem ser explicadas pela reverência do prolator aos que têm assento no topo da pirâmide. Não foi concedida liminar ao homem, mas aos seus bilhões. O encarceramento das grandes cifras é inadmissível em um país ainda em fase de crescimento e maturação.

Não se veja aí censura de atitude alguma que não possa ser justificada pelo reconhecimento de uma cultura milenar.

"Põe couraça de ouro no pecado e a terrível lança da Justiça se quebrará impotente contra ele; arma-o com farrapos, que a palha de um pigmeu a traspassará" (Willian Shakespeare, em "Rei Lear").

Agora, ou mais recentemente, sedimentaram os Ministros, por maioria, o parecer que admite a possibilidade, como norma, de responderem em liberdade aqueles cuja condenação ainda seja passível de recurso. Os preceitos constitucionais combinados (incisos LIV e LVII, do artigo 5°) podem construir mais de uma interpretação, mas prevaleceu a mais generosa para os autores de delitos. Dir-se-á que o Tribunal foi justo, magnânimo e civilizado porque impediu que a própria morosidade do Poder Judiciário acarretasse danos irreparáveis aos agentes do crime, acaso suas sentenças condenatórias fossem revogadas em instâncias superiores. Parece não haver quem duvide tratar-se de uma mera decisão de Poder que apenas celebra o antes referido estado democrático de direito no Brasil. No entanto, há quem vislumbre somente um sentimento de onipotência rondando o Supremo, risonhamente acolhido pelos Ministros, confiantes na suposta crença de que a Justiça só estará cumprida após o seu último olhar. Não se cuida aqui da presunção da inocência, mas da simples presunção.

Dom Helder Câmara, no livro "Mil sementes caídas e algumas apanhadas", da Irmã Catarina Damasceno, dirigindo-se a esta, observa: "O resultado, minha filha, pouco importa. Adianta tão pouco o julgamento dos homens..."

Hoje, o alvo da vez é o MST, o mais novo gênio do mal que comete o desatino de buscar incorporar-se a este mundo circunscrito do estado democrático de direito, sem lenço, sem documento e de foice afiada na mão. Ora, nem os ricos empresários delinqüentes, nem os desafiadores camponeses descalços, detêm a prioridade do objeto nocivo a ser efetivamente combatido no país: os homens impuros que legislam e administram a coisa pública; os maus representantes de todos os partidos fisiológicos, de todos os partidos, portanto.

São esses os verdadeiros tumores do Brasil. São eles que levam o país à ruína. Todas as reformas podem, por ora, ser descartadas, com a única exceção da reforma política. O administrador público deve ter a mesma austeridade dos sacerdotes. Como bem acentua Maria Clara Bingemer, decana de teologia da PUC, "O padre e o egoísmo nunca podem andar juntos. O homem público tem que se gastar, se deixar devorar". No Brasil, ocorre o verso do provérbio.

Entretanto, por mais improvável que pareça, os brasileiros ainda guardam esperança. Há poucos meses, no Rio de Janeiro, um deputado federal lançou-se candidato ao cargo de prefeito. Sua plataforma nada acrescentava de muito novo, mas sua campanha, de acordo com o perfil ecológico do próprio candidato, apresentava características bastante peculiares: os espaços públicos deveriam permanecer limpos e silenciosos. Talvez, até sem se darem conta, candidato e eleitores se aproximaram, mas por um motivo que detinha outra sintonia, discreto e não ostensivo, porém presente: a lisura. Sem alarde, o candidato transmitiu uma postura há muito afastada da gente carioca, mas não esquecida: uma suave demonstração da integridade humana. Amargou, é verdade, a derrota nas urnas, mas manteve uma luzinha acesa em corações outrora céticos.

O Supremo e o TSE conhecem todas as questões técnicas e acadêmicas que dispõem sobre as exigências necessárias para a qualificação dos homens públicos. Muitos argúem, com absoluta serenidade, que a letra constitucional propicia ao político condenado em caráter ainda provisório regular habilitação para sua candidatura. Isto é, a presunção de inocência, mesmo depois da condenação, não altera a antiga presunção. Infelizmente, o Brasil desumano e miserável não pode ser socorrido porque o estado democrático de direito impede que os vilões públicos sejam molestados e impedidos de representar os seus interesses pessoais em nome da sociedade.

Hoje, alguns antigos presidentes, um dia repudiados pela população, ocupam cargos de projeção com o único propósito de satisfazer a própria vaidade. Causa apreensão que o atual, compulsivamente obcecado pela figura de Getúlio, o "Pai dos Pobres", sonha em retornar ao Poder nos braços do povo no ano de 2014 para, depois, cometer suicídio em agosto de 2018, não sem antes deixar uma carta-testamento redigida pelo Dulci.

Considerações à parte, em artigo que já se faz extenso, de tudo permanece uma certeza: o estado de direito só é encontrado nos livros dos juristas e no discurso dos ungidos pela fortuna.

Por isso, não é possível, no Brasil, viver sem proteção divina.

"Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo tende piedade de nós".

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*Advogado do escritório Candido de Oliveira Advogados









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