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A controversa questão da fraude à execução

Eduardo Augusto Penteado

Recentemente, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 375, com o seguinte teor: "O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova da má-fé do terceiro adquirente".

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Atualizado em 1 de setembro de 2009 11:33


A controversa questão da fraude à execução

Eduardo Augusto Penteado*

Recentemente, a Corte Especial do STJ editou a súmula 375, com o seguinte teor:

"O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova da má-fé do terceiro adquirente".

Referida Súmula tem por finalidade consolidar o controvertido entendimento dos Tribunais, inclusive do próprio STJ, acerca da caracterização da fraude à execução, especialmente no que toca a bens imóveis.

Até por volta do ano 2000, o entendimento prevalecente era no sentido de que a caracterização da fraude se satisfazia pela demonstração de que a alienação que levou o devedor à insolvência tinha ocorrido após a citação válida do réu da ação em qualquer tipo de processo (cautelar, de conhecimento ou de execução), dispensando a análise do elemento subjetivo (Resp 77.236/SP, de 1996, Resp 226.413/SP, do ano 2000, Resp 243.707/SP, também de 2000, e Resp 109.883/MG, de 2002). Provados esses pressupostos, a má-fé do devedor e do adquirente do bem era presumida, de modo que o entendimento era o de que o artigo 593, II, do CPC, estabelecia uma presunção de má-fé do devedor e do adquirente, que militava em favor do autor da ação.

Nos anos seguintes, ocorreu uma mudança de entendimento e a inauguração de divergência entre a 3ª Turma, que na maioria das vezes seguia a linha das decisões anteriores, e as 1ª, 2ª e 4ª Turmas. Nessas últimas, alguns julgados só admitiam a configuração do vício se, ao tempo da alienação, já houvesse constrição inscrita no cartório imobiliário, por força do disposto no artigo 659, §4º, do CPC (clique aqui), com as alterações introduzidas primeiro pela lei 8.953/94 (clique aqui), e posteriormente pelas leis 10.444/02 (clique aqui) e 11.383/06 - clique aqui (cf. Resp 399.854/DF e Resp 943.591/PR, julgados em 2007 pela 4ª Turma; Resp 810.170/RS, Resp 734.280/RJ e Resp 892.117/RS, de 2008, Resp 1103879 e Resp 1103907, de 2009, todos da 2ª Turma). Por esse entendimento, não havendo registro, presume-se a boa-fé do adquirente (presunção iure et de iure).

Outras decisões também admitiam a fraude se demonstrada, pelo credor, a má-fé do adquirente (o conluio entre o devedor e o adquirente), o que representou a modificação da presunção de fraude (e má-fé) decorrente do artigo 593, II, do CPC. De acordo com a maioria dos julgados, a sua caracterização dependia da demonstração, a cargo do credor, de que o adquirente tinha ciência da demanda (Resp 944.250/RS, de 2007, e 1046004/MT, de 2008, da 2ª Turma; Resp 493.914/SP, de 2008, da 4ª Turma), enquanto uma minoria exigia a prova de que o adquirente tinha ciência da constrição (Resp 865.974/RS, de 2008, da 1ª Turma).

Por esse entendimento, então, inexistindo registro da constrição, a alienação no curso da demanda passou de presumidamente fraudulenta a legítima, militando a presunção de boa-fé na alienação ou oneração em favor do devedor e do adquirente.

A 3ª Turma, contudo, caminhava em sentido diverso, como se depreende do acórdão do Resp 819.198-RJ, julgado em 25/4/2006 (rel. Min. Humberto Gomes de Barros), assim ementado:

"Para caracterização de fraude de execução prevista no inciso II do Art. 593 do CPC, basta a concorrência de dois pressupostos:

a) existência de ação em curso, com citação válida;

b) pendência de demanda capaz de reduzir o alienante à insolvência.

O registro da penhora não é requisito para caracterização da fraude à execução.
Por isso, não aproveita ao executado alegar que desconhecia a penhora por falta de registro
."

O precedente foi citado em acórdão da mesma Turma no AgRg 782.538/RS (também de 2006), e do Resp.862.123/AL, de maio de 2007, o qual invoca decisão do ano de 2005 (Resp 127.159/MG, a qual pontificou militar "em favor do exequente a presunção iuris tantum de que a alienação do bem, no curso da demanda, levaria o devedor à insolvência, cabendo ao adquirente prova em contrário").

Em interessante acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi no Resp 665.000/SP, julgado em 23/8/2007, a 3ª Turma, após detida reflexão sobre a matéria, manteve o entendimento de ser ônus do adquirente de bem imóvel provar que desconhecia a demanda que ensejou a constrição, fosse pela publicidade do processo, fosse pelo disposto na lei 7.433/85 (clique aqui), que exige a apresentação das certidões dos feitos ajuizados em nome do vendedor para lavratura da escritura pública de alienação.

A decisão considera que o entendimento de que ao credor caberia a prova de que o terceiro adquirente tinha ciência da demanda (admitindo esta como alternativa à hipótese do registro da citação, não tratada pelos julgados das demais Turmas), acabava por privilegiar a fraude à execução por torná-la mais difícil de ser provada, reforçando, assim, o entendimento de que a presunção relativa de fraude estabelecida pelo artigo 593, II, do CPC, beneficiava o exeqüente. Destaca-se o seguinte trecho:

"Cabe ao comprador do imóvel provar que desconhece a existência da ação em nome do proprietário do imóvel, não apenas porque o art. 1º, da lei 7.433/85 exige a apresentação das certidões dos feitos ajuizados em nome do vendedor para lavratura da escritura pública de alienação de imóveis, mas, sobretudo, porque só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé, o comprador que toma mínimas cautelas para segurança jurídica da sua aquisição".

A mesma 3ª Turma, em fevereiro de 2008, por maioria, referendou essa posição no julgamento do Resp. 618.625/SC, reiterando que:

"Caberá ao terceiro-adquirente, através dos embargos de terceiro (artigo 1.046 e ss do CPC), provar que, com a alienação ou oneração, não ficou o devedor reduzido à insolência, ou demonstrar qualquer outra causa passível de ilidir a presunção de fraude disposta no art. 593, II, do CPC, inclusive a impossibilidade de ter conhecimento da demanda."

A demonstrar que ainda subsiste controvérsia mesmo após a edição da Súmula, muito recentemente a 3ª Turma divergiu na aplicação desse posicionamento, decidindo, por apertada maioria, por afastar a fraude. Como o acórdão ainda não foi publicado, não é possível conhecer as circunstâncias do caso e os fundamentos utilizados na decisão (Resp 804.044/GO, julg. 19/5/09, Rel. originária Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Massami Uyeda).

A partir súmula 375, pode-se concluir que a fraude se caracteriza com o registro da constrição no cartório imobiliário, ou se provada a má-fé do adquirente, o que, pelos precedentes citados, significa a demonstração, pelo credor, de que o adquirente tinha conhecimento da demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência. Assim, se houver registro da constrição do bem, o caso será de presunção absoluta de fraude; se não, militará em favor do adquirente a presunção de boa-fé na alienação ou oneração, que poderá ser ilidida pelo credor-exeqüente.

Esse entendimento é acolhido pela doutrina, como por exemplo Araken de Assis, para quem:

"Enfim, o balanço da reforma, antiga e presente, e da contra-reforma da lei 11.382/06, parece ser um só: mudou-se para nada mudar, pois ao fim, e ao cabo, a falta de registro somente provoca a inversão do ônus de provar o conhecimento pelo terceiro da litispendência" (Manual da Execução, 12ª ed., 2009, ed. Revista dos Tribunais, pág. 285).

Em artigo publicado na coletânea "Aspectos Polêmicos da Nova Execução", Diogo Leonardo Machado de Melo conclui no mesmo sentido:

"Como já afirmamos, constatação válida mesmo com a atual redação do artigo 659, § 4º, do CPC (alterado agora pela lei 11.382/06), quando há averbação da penhora no registro, há a presunção absoluta (juris et de jure) do conhecimento da demanda e da fraude à execução. Todavia, na falta do registro, não existe óbice para decretação de fraude à execução, mas o que ocorre com essa ausência é a verdadeira inversão do ônus da prova, cabendo ao credor, também aqui, o encargo de comprovar que o adquirente tinha o conhecimento (ou condições para ter conhecimento) da existência da ação. Aí a presunção relativa será, mais uma vez, em favor do terceiro adquirente" (coordenação de Cássio Scarpinella Bueno e Teresa Arruda Alvim Wambier, vol. 4, 2009, ed. Revista dos Tribunais, pág.131).

Convém lembrar que existem outras hipóteses de registro no cartório imobiliário que também podem gerar a presunção absoluta de conhecimento da ação por terceiros, como é o caso do registro da citação do réu (quando possível), da hipoteca judiciária (art. 466 CPC), e da averbação, recentemente introduzida pelo artigo 615-A do CPC, da certidão comprobatória do ajuizamento da execução. Todos esses atos têm por finalidade dar publicidade e tornar incontroversa a ciência da existência da demanda a potenciais adquirentes do imóvel, gerando o mesmo efeito de presunção absoluta de fraude decorrente do artigo 659, §4º, do CPC, como bem assinalado por Diogo Leonardo Machado no supracitado artigo:

"A perspectiva do art. 615-A do CPC é justamente antecipar a publicidade já na distribuição da execução (antes mesma da citação, portanto), e conceder ao exeqüente mais uma possibilidade de gozar de uma presunção absoluta em seu favor (CPC, art. 615, §3), sem a necessidade de demonstração da presença dos requisitos autorizadores da fraude, quais sejam, a frustração do meio executório e litispendência (em especial esta última, já que a averbação ocorrerá antes mesmo da citação do executado), de nada adiantando, para contestá-la, a argüição de boa-fé dos terceiros adquirentes." (ob. cit., pág.133)

Com relação à má-fé do devedor e do adquirente, é perfeitamente possível adotar os fundamentos das decisões da 3ª Turma relativos à lei 7.433/85 para sua configuração. De fato, o ônus de provar o conhecimento da demanda se satisfaz plenamente com a simples demonstração de que foi cumprida, pelo notário, o disposto na lei 7.433/85, ficando a existência da demanda expressamente consignada na escritura de alienação ou oneração.

Nesse caso, a prova do conhecimento da demanda pelo adquirente ou beneficiário da oneração se torna indiscutível, evitando que o credor-exequente tenha que se desincumbir da inglória tarefa de provar a má-fé do devedor e do terceiro-adquirente por caminhos tortuosos, o que não raramente acaba por prestigiar a fraude, como salientado nos votos da Ministra Nancy Andrighi acima mencionados, representando obstáculo à satisfação do direito e à efetividade do processo.

Outro ponto a destacar é que a prudência na condução dos negócios que se espera do homem médio indica devam ser tiradas, além das certidões de distribuição de feitos do(s) domicílio(s) do(s) alienante(s) (se houver mais de um domicílio, ou, por exemplo, se uma mudança recente for do conhecimento do adquirente, hipótese em que devem ser obtidas as do local de seu antigo domicílio), as certidões da Comarca de localização do bem. Só assim é que se poderá constatar a adoção da cautela e diligência mínimas que se espera do adquirente ou do beneficiário da oneração de imóvel em negócios desta natureza, e, por conseguinte, a boa-fé de sua parte.

Acrescente-se que atualmente todos os Tribunais dispõem de meios de consulta eletrônica de distribuição de processos pelo nome da parte envolvida, de modo que na maioria das vezes é possível identificar, com facilidade (e até mesmo antes da citação), a existência da demanda e seu andamento.

Circunstâncias do caso concreto podem indicar a existência de má-fé do devedor e do adquirente, ou demasiada imprudência por parte do adquirente. Bom exemplo são expressões-padrão utilizadas em muitas escrituras, em geral no sentido de que o imóvel alienado "não é objeto da ação judicial" apontada nas certidões apresentadas ao cartório, como forma de tentar preservar o negócio contra eventual decretação de fraude. Diversas outras hipóteses podem surgir, como a não tirada de certidões no correto domicílio ou residência habitual do alienante (justamente para não constar a existência da ação), no local de seu antigo domicílio (nos quais provavelmente seria ajuizada uma demanda judicial), etc., que podem funcionar como fortes indícios de má-fé.

Após a edição da súmula, é possível notar que muitas decisões, inclusive do próprio STJ, passaram a se preocupar unicamente com a existência do registro da constrição, sem levar em conta que o entendimento também abrange a discussão em torno do conhecimento (ou as condições de se ter conhecimento) da demanda por parte do adquirente, que deve ser muito bem considerado, sob pena de se dar margem a graves injustiças.

O entendimento que passou a vigorar tem a finalidade de preservar o adquirente de boa-fé, salvaguardando-o de enfrentar a trágica situação de vir a perder suas economias na compra de um bem imóvel. Sem dúvida que busca atingir um ideal de realização de justiça, mas há que se atentar para a integral extensão do Enunciado, analisando-se as ocorrências do caso concreto para se evitar a perpetração de fraudes e a total frustração da efetivação da prestação jurisdicional.

A realização de justiça também se passa na efetividade do processo e sua duração em tempo razoável, permitindo que o credor tenha acesso ao direito garantido na condenação. Não menos importante que proteger o adquirente de boa-fé, é assegurar ao credor o resultado prático do processo.

A solução que atende a essas exigências está dentro do próprio conteúdo da súmula aprovada pelo STJ, com a observância de todo seu alcance e finalidade: não somente o registro da constrição (ou qualquer outro registro que viabilize o conhecimento da demanda por terceiros) do bem imóvel autoriza a caracterização da fraude. Ao credor também é possível obter a sua decretação mediante a prova do conhecimento da demanda pelo adquirente ou beneficiário da oneração por meio da certidão apresentada ao cartório imobiliário quando da lavratura da escritura e/ou por quaisquer meios legais de prova, cabendo inclusive discussão sobre questões relativas às próprias certidões ou a eventual ação ou omissão das partes na sua obtenção. Todos esses elementos deverão ser levados em conta pelo magistrado na análise das circunstâncias específicas do caso concreto, a fim de decidir pela existência ou não de má-fé do devedor e do adquirente.

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*Sócio do escritório Brandão Couto, Wigderowitz, Pessoa e Alvarenga Advogados

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