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O contrato de garagem no Código Civil

O contrato de garagem levanta série enorme de discussões e merece um estudo mais profundo, aliás ausente na doutrina nacional.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

O contrato de garagem no Código Civil

Sílvio de Salvo Venosa*

Dentre os contratos atípicos, regulados apenas pelos princípios gerais do Código Civil de 2002, destacamos o contrato de garagem. O automóvel e os veículos em geral incorporaram-se definitivamente à vida do homem no século XX. Entre os vários problemas trazidos pelos automotores acentua-se a questão da guarda dos veículos por períodos mais ou menos longos.

Também as embarcações e as aeronaves se incluem na problemática do contrato de garagem: portos, marinas e embarcadouros para as primeiras e hangares, pátios de manobras ou equivalentes para os últimos. O contrato de garagem destina-se, pois, a essa categoria de bens e precipuamente aos veículos terrestres, em particular aos automóveis. Contrato de garagem é aquele pelo qual uma pessoa, denominada garagista, obriga-se à guarda e custódia de um veículo trazido por outra pessoa, denominada usuário, quando esta desejar, proporcionando um local para tal durante certo tempo, mediante o pagamento de preço geralmente em dinheiro. Modernamente, a atividade de garagista requer certa organização empresarial, sendo cada vez mais privativa de pessoas jurídicas especializadas.

A obrigação do garagista, para guarda e custódia do veículo, surge conforme a necessidade do usuário, que pode retirá-lo do local quando lhe aprouver. Desse modo, cabe ao usuário e não ao garagista definir quando pretende utilizar-se da garagem. Como guardador e custodiador do veículo, o garagista assume responsabilidade ampla.

Não se confunde o contrato de garagem, com o espaço e local físico denominado garagem, que pode ou não ser destinado a esse contrato. No contrato de garagem, o garagista pode deixar à disposição do usuário uma vaga fixa, ou simplesmente um local indeterminado, sem que o negócio se descaracterize, em que pese a proximidade com os contratos de locação de coisas, locação de serviços, empreitada e depósito. Também nesse pacto, podem as manobras internas do veículo na garagem ser atribuídas a prepostos do garagista ou ao próprio usuário. Tal distinção poderá refletir apenas na responsabilidade por eventuais danos causados no veículo do usuário ou por este em outros bens, mas não desnatura o contrato de garagem. Não há necessidade nem que o garagista seja proprietário do imóvel, bastando que tenha validamente sua posse, nem que o usuário seja dono do veículo, bastando-lhe a simples detenção.

A obrigação do usuário de pagar o preço tem em vista o tempo em que o espaço de custódia permanece à disposição do usuário, ainda que por ele não seja utilizado. Nessa hipótese, distingue-se o contrato que estabelece pagamento por longos períodos, por semanas, meses, anos, daqueles de curto lapso, cujo pagamento é estabelecido pelo número de horas de utilização. Na essência, não existe distinção entre ambas as modalidades, embora possa denominar-se de estacionamento o contrato por curto período, e de garagem propriamente dito aquele de longo prazo.

Nada obsta que no mesmo local convivam as duas modalidades, cujo regime jurídico e as responsabilidades do garagista são basicamente idênticas. Se o local destinado ao veículo é aberto, sem proteção, e disto tem conhecimento o usuário, o garagista não responderá por danos decorrentes de intempéries.

O garagista pode também ser a Administração Pública, em locais de sua propriedade, explorados diretamente ou por terceiros concessionários, estabelecendo-se o preço por tarifa. Não se confunde o contrato de garagem com os estacionamentos em via pública, mediante pagamento de preço ao Poder Público ou quem lhe faz as vezes, em parquímetros automáticos ou com selos e talões, cuja finalidade é apenas assegurar maior rotatividade, possibilitando utilização por número mais elevado de veículos, sem obrigação de custódia e guarda. Nesse negócio, regido pelo direito público, não existe a figura do garagista, porque garagem inexiste. Apenas é atribuído um local para a colocação do veículo do usuário, por tempo determinado, assumindo este todos os riscos representados pelo estacionamento em via pública, porque nesse negócio não existem os deveres de guarda e custódia do bem.

Como regra, embora não se exija a forma escrita, o contrato prova-se por uma modalidade de escrito, cupom ou tíquete, comprobatório da entrega do veículo. A falta do documento, porém, pode ser suprida pelos meios permitidos no ordenamento.

Concorrem na garagem elementos da locação de coisa, empreitada, depósito e prestação de serviços. Não existe, em princípio, contrato de garagem autônomo quando a localização do veículo, em determinado local, decorre de outro contrato, do qual o estacionamento é parte integrante. Assim, por exemplo, quando se aluga unidade autônoma de condomínio que possui vaga de garagem. Da mesma forma ocorre com os estabelecimentos comerciais que oferecem estacionamento aos consumidores. Tal se insere na atividade comercial do fornecedor de produtos e serviços, sendo o estacionamento um acessório desse arcabouço.

As regras a serem aplicadas, primordialmente, nesses negócios são as do contrato principal; o negócio de garagem aplicará suas regras apenas subsidiariamente. Embora pareça que a preponderância na garagem seja do contrato de depósito, não há como se divisar uma proeminência.

As características do depósito decorrem dos princípios de custódia e guarda, mas, salvo manifestação expressa, não se considera o garagista depositário típico, submetido às rigorosas regras desse instituto. Características principais do contrato em exame são a guarda do veículo e o espaço a ele destinado. Sendo o espaço primordial, há, portanto, acentuada característica de locação de coisa.

Secundariamente, a garagem absorve princípios da empreitada e da prestação de serviços. O contrato de garagem, no entanto, é muito mais amplo do que a simples locação de coisa, pois oferece princípios inafastáveis do depósito e dos contratos referidos.

Desnatura-se o contrato como garagem se o agente limita-se a oferecer serviços de manobrista e estacionamento em via pública, ainda que ofereça serviços de vigilância (valet parking), responsabilizando-se pelo bem. Nessa hipótese, sobreleva-se a prestação de serviços. Não há garagem, porque não existe local colocado à disposição do veículo. Entretanto, o contrato de garagem pode ter em seu bojo o serviço de manobrista, inserindo-se aí a prestação de serviço, quando o garagista recebe o veículo e encarrega-se de estacioná-lo no local próprio. Sendo, portanto, contrato atípico, suas regras são aferidas nesses contratos próximos. Para determinar-lhe o direito aplicável, ter-se-ão em conta a autonomia da vontade, o subsídio dos contratos semelhantes, as regras do Código de Defesa do Consumidor, se presente, como geralmente ocorre, a relação de consumo.

Quanto ao usuário, sua principal obrigação é pagar o preço, como visto, geralmente fixado por período de hora, dia ou mês. O garagista terá direito de retenção para receber o preço. É direito do usuário utilizar o local determinado ou indeterminado para posicionamento do veículo.

Por seu lado, o garagista deve proporcionar ao usuário a possibilidade de estacionamento do automotor, seja determinado ou não. Como exposto, terá as obrigações de locador, bem como as de depositário em face da guarda e custódia a que se compromete, embora não subordinado às penas específicas do ordenamento quanto ao depósito, salvo se assim foi expressamente acordado. Quando a garagem é estabelecida por período longo, deve facultar a entrada e saída do veículo a qualquer tempo, segundo as necessidades do usuário. O garagista deve, portanto, restituir o bem sempre que solicitado. Responsabiliza-se pelos danos e perda do automotor, salvo se provar caso fortuito ou força maior (artigo 1.277 do Código Civil, novo, artigo 642)

A exemplo do que sucede no depósito, é vedado ao garagista utilizar-se do veículo, sem licença expressa do usuário, sob pena de responder por perdas e danos (artigo 1.275, novo, artigo 640). Se ao contrato de garagem agregarem-se outras obrigações como lavagem, abastecimento ou reparos, devem ser objeto de exame em separado. A obrigação assumida pelo garagista é, portanto, de resultado, pois deve manter a coisa consigo durante certo tempo e restituí-la íntegra.

Recebendo coisa com a obrigação de restituir, o garagista responde pelos danos e deterioração, salvo caso fortuito ou força maior, que deverá provar, no entanto, como anteriormente enfatizado. Não obtido o resultado, em princípio aflorará o dever de indenizar. O garagista responde tanto por fato próprio como por fato de terceiro. Para eximir-se da indenização com fundamento em caso fortuito ou força maior, o garagista tem o ônus de prová-los, quando não houve culpa exclusiva do usuário. Desse modo, sendo o dever de incolumidade ínsito à obrigação de custódia e guarda assumida, o furto total ou parcial do veículo ou de objetos em seu interior não podem ser considerados caso fortuito. O roubo à mão armada poderá exonerá-lo da indenização se provar que tomou todas as cautelas do bom depositário. O garagista, porém, não se libera do dever de indenizar, mesmo perante o roubo do veículo, quando os meios de segurança e o pessoal de vigilância que colocou no local se mostraram insuficientes ou inadequados, facilitando a prática do delito em prejuízo do usuário.

Outra questão continuamente discutida diz respeito às cláusulas limitativas de responsabilidade do garagista, as quais, em princípio, não se amoldam, sendo proibidas pelo Código de Defesa do Consumidor. O contrato de garagem, como se vê, levanta série enorme de discussões e merece um estudo mais profundo, aliás ausente na doutrina nacional.

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Capa* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil - sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados - Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes   

 

 

 

 

 

 

 

 

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