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O Código do Consumidor e o Código Civil

A proximidade de vigência do novo Código Civil nos leva inevitavelmente a questionar se serão revogados ou modificados os princípios estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Para que não se aguce a curiosidade do leitor para o final deste texto, a resposta à pergunta é liminarmente negativa.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

 

 

 

 

 

O Código do Consumidor e o Código Civil

 

 

 Sílvio de Salvo Venosa*

 

 

                 A proximidade de vigência do novo Código Civil nos leva inevitavelmente a questionar se serão revogados ou modificados os princípios estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Para que não se aguce a curiosidade do leitor para o final deste texto, a resposta à pergunta é liminarmente negativa.

 

                  A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez em nossa história jurídica, contemplou os direitos do consumidor. No inciso XXII do artigo 5º dispôs a carta: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Nesse dispositivo Estado está como denominação genérica de administração, por todos os seus entes públicos. Não bastasse isso, a Constituição Federal tornou a defesa do consumidor um princípio geral da ordem econômica (artigo 170, V). Ainda, o artigo 48 das Disposições Transitórias determinou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborasse código de defesa do consumidor. Assim sendo, foi promulgado o código que já atravessou os primeiros dez anos de vigência, com profícuos resultados na sociedade brasileira. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) colocou nosso país dentro das mais modernas legislações protetivas das contratações de consumo, mormente das contratações em massa.

 

                  O novo Código Civil não suprime ou derroga qualquer dos princípios do estatuto do consumidor. Lembre-se, ademais, que a lei do consumidor consagra um microssistema, dentro de um compartimento que a doutrina denomina de direito social, a meio caminho entre o direito público e o direito privado. Desse modo, ainda que se admita que algum princípio do novo Código Civil conflite com o Código de Defesa do Consumidor, este último prevalecerá. Assim ocorre com os microssistemas em geral, como, por exemplo, na Lei do Inquilinato.

 

                  A verdade é, porém, que os princípios do novo Código Civil se harmonizam com a lei consumerista. O novo estatuto civil busca um novo direito social e como tal, uma função social do contrato, em oposição aos princípios patrimonialista e individualista do Código Civil de 1916. Ressalte-se, por exemplo, dentre os princípios gerais dos contratos, os artigos 421 e 422 do novo código. Pelo primeiro desses dispositivos, estatui-se que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". Ora, essa mesma função social do contrato é buscada pela lei do consumidor ao atender ao princípio de sua vulnerabilidade. O elenco de práticas abusivas dos artigos 39 a 41 e o rol de cláusulas abusivas do artigo 51 do CDC são exemplos da procura pela função social do contrato. O artigo 422 dá destaque ao que a doutrina denomina cláusula aberta no contrato, qual seja, cláusula de boa-fé objetiva, também já presente na lei do consumidor.

 

                  Observe-se, a título de maior esclarecimento, que o instituto da lesão nos negócios jurídicos, que volta à nossa legislação civil, no artigo 157 do novo código, já fora delineada e definida no CDC. Assim, pelo artigo 39, IV do CDC é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe produtos ou serviços". Da mesma forma, segundo o inciso V do mesmo artigo, não pode o fornecedor de produtos ou serviços "exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva". Ora, essas dicções nada mais são do que aplicação do princípio geral da lesão, descrita no artigo 157: "Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta".

 

                  O mesmo se diga também a respeito do contrato de adesão, tão utilizado em relação de consumo. O artigo 423 descreve que "quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-ão adotar a interpretação mais favorável ao aderente". Ora, é evidente que esse dispositivo vem em socorro ao consumidor, que é o aderente nas relações de consumo. Esse artigo igualmente se harmoniza com as disposições a respeito do contrato de adesão presentes no CDC, no artigo 54. O artigo descreve, no caput, o que se entende por contrato de adesão e nos parágrafos especifica que: a) a inserção de cláusula em formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato; b) nos contratos de adesão admite-se a cláusula resolutória, desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no tópico anterior; c) os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor e d) as cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

 

                  Pois bem, essas disposições a respeito do contrato de adesão no CDC constitui uma das hipóteses que extrapola as próprias relações de consumo. Afora o fato de que a grande maioria dos contratos com cláusulas predispostas se situarem nas relações de consumo, não há dúvida que os julgados entenderão que todos os aderentes devem ser protegidos dessa forma com relação ao predispodente, seja ou não a relação típica de consumo, conforme apontamos acima.

 

                  Não há qualquer alteração sensível em matéria de proposta no Código Civil. Desse modo, os princípios amplos que dizem respeito à vinculação da oferta, dentro do CDC (artigos 30 a 35) mantêm-se com pleno vigor.

 

                  Em matéria de vícios redibitórios, o novo Código Civil introduz disposições diversas do estatuto de 1916. Como já enfatizamos, em nossa obra sobre teoria geral dos contratos, nesse passo temos um dicotomia indesejável em ambos os diplomas legais, o que foi mantido pelo novo código. O novo Código Civil mantém os mesmos princípios tradicionais dos vícios ocultos, que permitem rejeitar a coisa ou pedir abatimento do preço (artigo 441). Em matéria de prazos decadenciais, há novidades.

 

                  No entanto, embora o novo Código Civil não se refira expressamente ao Código de Defesa do Consumidor, não haverá arestas de difícil transposição quanto à aplicação da lei do consumidor perante o novo Código Civil.

 

 

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Capa* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil - sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados - Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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