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A "legalização" das razões fazendárias e o recente PL 469/09, que amplia a responsabilidade dos sócios e administradores por dívidas fiscais

O erário público se saiu vitorioso em muitas das chamadas "teses tributárias" recentemente discutidas nos Tribunais Superiores.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Atualizado em 18 de maio de 2010 13:20


A "legalização" das razões fazendárias e o recente PL 469/09, que amplia a responsabilidade dos sócios e administradores por dívidas fiscais

Rogério Pires da Silva*

1. O erário público se saiu vitorioso em muitas das chamadas "teses tributárias" recentemente discutidas nos Tribunais Superiores. Nas poucas vezes nas quais conheceu a derrota no Poder Judiciário, contudo, a máquina fazendária logrou tomar o caminho do Poder Legislativo para adaptar o ordenamento jurídico, fazendo inserir suas razões na própria lei.

2. Para citar apenas um exemplo - que é amplamente conhecido de todos que militam na advocacia tributária - a chamada tese dos "cinco mais cinco" prevaleceu no STJ para viabilizar aos contribuintes um prazo de dez anos para a repetição do indébito, até que a LC 118/05 (clique aqui), como suposta norma "interpretativa", trouxe a revogação "retroativa" daquele entendimento jurisprudencial (arts. 3º e 4º daquele diploma, combinados com o art. 106, I, do CTN - clique aqui). Cumpre mencionar, por importante, que o STF está apreciando neste momento a constitucionalidade da retroatividade da LC 118/05 nos autos do Recurso Extraordinário 566.621 (eis que a referida retroatividade conduziria a uma desrespeitosa e inacreditável revogação das decisões do STJ até então proferidas).

3. Não há ilegalidade ou inconstitucionalidade na situação em que o Poder Executivo vê sua tese derrotada no Poder Judiciário e se socorre do Poder Legislativo para modificar o ordenamento jurídico. Afinal, igual direito assiste ao contribuinte (muito embora o cidadão não disponha da máquina administrativa para exercer pressão equivalente à do fisco junto aos parlamentares, pois só tem como arma seu próprio voto). Seria saudável se o ente público demonstrasse, entretanto, algum interesse na aprovação de normas que garantissem, por exemplo, a pronta devolução do indébito recolhido aos cofres públicos (independente de haver prazo de cinco ou de dez anos para a ação judicial do contribuinte), ou normas que assegurassem elementos mínimos de cidadania aos contribuintes no trato com o fisco. Mas o que se vê é justamente o oposto.

4. Tome-se para exame o elevado empenho governamental com a desgastada tese fazendária - que mais de perto interessa ao tema objeto deste artigo - no sentido de que os sócios e administradores da pessoa jurídica são em princípio responsáveis pelos tributos por ela devidos, com amparo na idéia de que o singelo inadimplemento é ato praticado com "infração de lei" (no caso, infração da própria lei tributária, para os fins do art. 135 do CTN). Recentemente o STJ incluiu o verbete de número 430 na súmula de sua jurisprudência dominante, firmando o entendimento de que o singelo inadimplemento da obrigação tributária não é suficiente para caracterizar a responsabilidade do sócio-gerente.

5. Antevendo a derrota de suas razões no Poder Judiciário, o Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional, ainda em 2009, o PL 469/09 (clique aqui), que modifica o CTN como segue: (a) estipula que é obrigação do responsável (representante de pessoa física ou diretor, gerente ou representante de pessoa jurídica) zelar pelo pagamento de tributos inclusive em detrimento de outras despesas ou débitos (exceto trabalhistas); (b) atribui responsabilidade pela dívida tributária ao administrador ou gestor que não comprovar ter sido diligente com o pagamento de tributos devidos pelo contribuinte, inclusive a pessoa jurídica, e até mesmo na hipótese de ter havido distribuição de lucros ou vantagens aos sócios ou dirigentes após o vencimento do tributo, quando os bens do sujeito passivo não forem suficientes para garantir a dívida tributária em cobrança; (c) estabelece que os sócios da pessoa jurídica passam a ser responsáveis pela dívida tributária inclusive quando da paralisação das atividades ou dissolução irregulares.

6. O risco é próprio da atividade empresarial, como se sabe. No mais, submetem-se ao risco o empreendedor e todos quantos a ele se vinculam por conta do negócio - sejam seus sócios, seus empregados, clientes ou fornecedores. Em princípio ninguém está de antemão imune àqueles riscos, nem mesmo o fisco, muito embora a lei estipule certos privilégios na situação limítrofe de insolvência. Nesse sentido, credores como os trabalhadores e o fisco têm preferência em relação aos demais (vide, por exemplo, art. 186 do CTN), mas o ordenamento nem por isso assegura o pagamento integral dos créditos trabalhistas e fiscais. O que agora o fisco pretende, todavia, é assegurar o pagamento integral dos créditos fiscais antes mesmo da caracterização da insolvência, para o que lança mão da ameaça de invasão do patrimônio particular do sócio e do administrador da sociedade.

7. A razão de ser da separação do patrimônio particular do sócio em relação aos débitos da sociedade é a minimização dos riscos da atividade empresarial que, de outra forma, ficaria inviabilizada. De fato, o mundo dos negócios ficaria praticamente estagnado e poucos se aventurariam se o risco não se limitasse ao patrimônio para esse fim investido no próprio empreendimento.

8. O projeto legislativo acima referido ultrapassa, portanto, os limites da simples proteção dos interesses fazendários e, na ânsia puramente arrecadatória, passa a atribuir ao empresário responsabilidades que podem comprometer perigosamente o desenvolvimento de novos negócios. Ora, se o empresário sabe que pode perder o patrimônio a ser investido num novo negócio e também o seu patrimônio pessoal, é certo que terá maior receio de empreender em um ambiente jurídico tão inseguro. Igualmente, ninguém desejará exercer a ingrata função de administrador numa sociedade já existente sem que antes seja realizada uma ampla auditoria fiscal - porque o administrador pode responder até mesmo por certas práticas iniciadas antes de sua gestão, se tais práticas forem mantidas após assumir suas funções na pessoa jurídica (na hipótese de haver questionamento fazendário). De resto, a inútil complexidade de nossa legislação tributária é uma armadilha até para quem é especializado na área, o que justifica o receio de responder pelos débitos tributários de uma empresa.

9. O que causa espécie, todavia, é a atribuição de responsabilidade aos sócios da pessoa jurídica quando da singela "paralisação" de suas atividades. O projeto, neste passo, abre caminho para que o fisco avance no patrimônio dos sócios se os negócios simplesmente minguarem por vicissitudes do mercado, já que em nosso sistema jurídico não há um conceito seguro nem mesmo do que seja a "dissolução irregular" (em princípio, qualquer dissolução da pessoa jurídica tende a ser considerada irregular pelo fisco se os tributos não são pagos).

10. Recentemente o STJ baixou o verbete 435 da súmula de sua jurisprudência, asseverando que "presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente". Ora, há situações em que a empresa não tem como "funcionar" em lugar algum, por exemplo, quando o prédio onde desenvolvia suas atividades é retomado pelo locador. Os cadastros eletrônicos fazendários ainda não dispõem de mecanismos que permitam ao empresário comunicar adequadamente tais circunstâncias ao fisco.

11. Todavia, ainda que o empresário comunique ao fisco a mudança de seu domicílio fiscal, isso não afastará, segundo o projeto em comento, a responsabilidade do sócio pelas dívidas tributárias se houver uma "paralisação" das atividades da pessoa jurídica. Afinal, no desiderato de cobrar a dívida tributária o fisco sempre alegará que a paralisação é "irregular", até que se prove o contrário - se é que é possível cogitar de tal prova!

12. Os privilégios e garantias do crédito tributário contrapõem-se, de maneira gritante, aos mitigados direitos de que dispõem os contribuintes, direitos que vão sendo sempre reduzidos em nome da estabilidade da arrecadação. O arsenal de medidas legais à disposição do fisco já é monumental, e certas construções doutrinárias e jurisprudenciais conferem proteção adicional ao Estado, particularmente no tocante à interpretação das normas - que, em muitos casos, e sob o argumento da prevalência do interesse público sobre o privado, são aplicadas de maneira mais favorável ao fisco. Ainda que seja prudente atribuir ao Estado todos os poderes necessários para viabilizar a cobrança de tributos (já que não se pode contar com o pagamento voluntário pelos contribuintes), é preciso refletir sobre a viabilidade de certos exageros do legislador.

13. É possível que uma medida como essa seja tida como ofensiva a diversos postulados da Constituição como, por exemplo, o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5º, inciso LVII - clique aqui), o direito à propriedade (CF, art. 5º, "caput", e inciso XXII), os princípios da segurança jurídica e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), dentre outros. É ponderável considerar, ainda, que o direito de paralisar as atividades da empresa está inserido no próprio direito de empreender (CF, art. 170), e no mais das vezes a paralisação independe da vontade do empresário. Só por isso seria salutar que a sociedade como um todo e particularmente a comunidade jurídica se pronunciassem sobre o PL 469/09 antes que fosse aprovado pelo Congresso Nacional - eis que, se aprovado, restará apenas o bom senso do Poder Judiciário para delimitar a sanha arrecadatória.

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*Sócio do escritório Boccuzzi Advogados Associados









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