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A Lei da Ficha Limpa: um avanço institucional?

A LC 135/2010, mais conhecida como "Lei da Ficha Limpa", inaugurou no Brasil uma série de novas condições de elegibilidades com o escopo de proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandado.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Atualizado em 21 de setembro de 2010 10:42


A Lei da Ficha Limpa: um avanço institucional?

Murilo Melo Vale*

A LC 135/2010, mais conhecida como "Lei da Ficha Limpa", inaugurou no Brasil uma série de novas condições de elegibilidades com o escopo de proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandado. Dentre estas novas inelegibilidades, incluem-se restrições à candidatura de pessoas que tenham contra si ações judiciais em que já houve condenação por órgãos colegiados sem a necessidade, contudo, de que a decisão tenha transitada em julgado.

Ao deparar com a nova lei eleitoral, realmente, o primeiro sentimento que vem à tona é de orgulho e satisfação, posto que esta lei representou uma grande vitória da democracia direta - por ser proposta por iniciativa popular - bem como da repressão à corrupção, que sempre atormentou este país.

No entanto, uma reflexão mais aprofundada nos leva a concluir que a novel legislação eleitoral não representa um avanço institucional, não havendo, por isto, motivos para comemoração.

No decorrer da história recente, foi despendido muito esforço em prol do reconhecimento e da institucionalização de certos direitos fundamentais para o homem. Vejamos, por exemplo, o caso do Princípio da Igualdade Formal: até a pouco mais de 200 anos, pensar que todos os homens são iguais perante a lei era algo inconcebível. Havia privilégios e restrições concedidos em razão do nascimento. Era corriqueira a criação de leis por autoridades cujo poder era amparado por dogmas sagrados, que impunham certas limitações e restrições de direitos apenas a uma classe da população, geralmente, majoritária. Tornou-se necessária, portanto, uma grande revolução mundial, não só no pensamento, como também nas instituições políticas, para garantir a intangibilidade de certos direitos universalmente entendidos como fundamentais a todos os homens, tais como a propriedade, a vida, a liberdade, e muitos outros.

A causa vitoriosa em prol do reconhecimento dos Direitos Fundamentais do homem teve que seguir por sua institucionalização, tendo como marcos históricos, a Declaração de Direitos de 1689 (Bill of Rights), a Constituição Norte-Americana de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cujos preceitos foram seguidos pelo constitucionalismo de várias nações. Tal institucionalização fortaleceu-se, ainda, no século passado, com a Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão da ONU (1949) e com o Pacto de São José da Costa Rica (1969).

O fato é que somente após o reconhecimento e a institucionalização dos direitos fundamentais foi possível a criação dos alicerces para a inauguração de um Estado Democrático de Direito, no qual impera a vontade da lei produzida democraticamente e garantidora dos preceitos básicos do ser humano.

Dentre estes direitos, arduamente conquistados na história contemporânea e essenciais para a criação de um Estado Democrático de Direito, encontra-se o Princípio da Presunção de Inocência. Em qualquer Estado Democrático de Direito existente na atualidade, seria insólita e disparatada a alegação de que uma pessoa possa ser considerada má ou culpada por algo, sem que tenha uma decisão definitiva do Estado Julgador. É justamente isto que a Lei da Ficha Limpa se propõe a fazer, ao impedir a candidatura de quem tenha sido condenado, sem que se tenham esgotados todos os recursos cabíveis.

Ora, hodiernamente, incontáveis são os recursos providos para modificar decisões anteriormente proferidas, seja por juiz singular, seja por órgão colegiado. Restringir esse direito fundamental da Presunção da Inocência pode consubstanciar um grande prejuízo, não só para o candidato político, como também para as instituições democráticas. Isto porque, uma eventual injustiça cometida na declaração de inelegibilidade implicará um prejuízo injustificável para o cidadão, que terá seu direito de voto restringido.

Admitir juridicamente estas novas condições de inelegibilidade é uma ofensa à mencionada evolução histórico-institucional que garantiu a intangibilidade dos direitos fundamentais do ser humano. Com efeito, para podermos nos rotular como um Estado Democrático de Direito, é imprescindível o respeito às conquistas políticas e institucionais de nossos antepassados que, com amplo consenso, solidificamos em nossa Constituição da República.

Desta forma, é indiscutível que esta "excepcionalização" de direitos fundamentais, em vista de certas finalidades pragmáticas, apresenta-se no mundo jurídico como um grande retrocesso para o Estado Democrático de Direito, devendo, por isto, ser reprovada social e juridicamente. Caso contrário, em pouco tempo, estaremos aceitando normas que limitem a intimidade, a dignidade, o devido processo legal, o contraditório, bem como outras que possibilitem provas obtidas por meio da tortura, a escravidão, a discriminação racial, a desigualdade formal etc.

Por tal razão, não se pode considerar a "Lei da Ficha Limpa" um avanço para nossa democracia. As novas condições de inelegibilidade devem permanecer, porém condicionadas ao transito em julgado de uma sentença condenatória, a única maneira sensata e democrática de se afirmar que determinada pessoa não é digna de um cargo político.

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*Advogado do escritório Tavernard, Oliveira e Rage - TOR Advogados e Consultores





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