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Lula, o "carismático"

Para que democracia, se ele, Lula, é um líder "carismático"? Essa história de "carisma" é algo irritantemente vago e impreciso. Que significa, mais precisamente, um líder carismático? Significa um líder legitimado não pelo voto, pelos trâmites democráticos, e sim por aclamação.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Atualizado em 12 de janeiro de 2011 16:40

Lula, o "carismático"

Gilberto de Mello Kujawski*

É incrível a disposição generalizada de pessoas e jornalistas que sempre estiveram de pé atrás com Lula, manifestarem, agora, a maior leniência, uma quase cumplicidade, com o presidente que se despede do governo, entre lágrimas e protestos de eterno amor ao povo, em especial, aos mais carentes.

Coisa de brasileiro sentimental e tolerante? Fernando de Barros e Silva, jornalista da Folha de S.Paulo, dos mais críticos e alertas, deixa-se embalar pelo clima de bota-fora do presidente, e escreve um artigo no qual só falta pedir a canonização de Lula pelo Vaticano: "Lula, o democrata" (Folha de S.Paulo, A2, 29/12/10). Quando é que os jornalistas vão deixar de ser tão exagerados?

Com o "petista" (permitam-me as aspas) houve avanço na área social, conforme lembra o jornalista? Inegável. Houve consolidação do crescimento com estabilidade? Sem dúvida, cabendo apenas duas perguntinhas: - Não foi devido ao Plano Real implantado pelo presidente anterior? - E a conta dessa estabilidade com crescimento, quem vai pagar?

Barros e Silva atinge o clímax da inocência ao escrever, com todas as letras, que Lula recusou o terceiro mandato "por respeito às regras do jogo e a aposta na democracia". Dá para acreditar? Bem informado, como todo bom profissional da imprensa, Fernando omite que Lula não insistiu no terceiro mandato porque teria de modificar a Constituição, e ele sabia, sagaz como sempre, que não teria maioria nem no Senado, nem na Câmara.

A verdade consabida é que Lula nunca teve ideologia, e tem raiva de quem tem. Não é democrata, nem anti-democrata. É um político a serviço das circunstâncias. Com treino em meteorologia, sempre soube o rumo dos ventos, e atua de acordo com o movimento das marés. Se ele continuou a política macroeconômica de FHC não foi por ideologia e sim por rasteiro pragmatismo: seria mais fácil governar, o real estava dando certo, não convinha afugentar os investimentos externos, etc.

Lula tem tanto de simpático quanto de sabido. O que as pessoas e, principalmente, os jornalistas, precisam entender é que Luiz Inácio surgiu como político de uma espécie totalmente diferente no cenário brasileiro do poder. Nossos presidentes anteriores, principalmente na Primeira República, sucediam-se na tradição bacharelesca, segundo a qual basta a lei para colocar o país em ordem. Foi Getúlio Vargas, com sua formação positivista, que percebeu que a lei, só por si não resolvia (daí seu dito "a lei, ora a lei"). A lei é planta que só cresce num solo preparado, livre de ervas e espécies daninhas, preservado pela Ordem, isto é, um projeto de país. Getúlio pode ter exagerado na dose, mas sua centralização salvou a unidade nacional, abalou as oligarquias e devolveu ao Brasil a percepção de ser um país uno e indivisível.

Sua reforma da educação foi decisiva e dá frutos até hoje, e o serviço público, sob seu governo mudou de padrão. Em suma, seu mérito foi perceber que o social e o mental estão entrosados, e que a sociedade recebe o influxo permanente da inteligência, novidade na época, em que a nação brasileira dormia o sono de um país essencialmente agrário, ou agropecuário.

Depois veio JK, que retomou com dinamismo o projeto-Brasil, reforçando a industrialização, a interiorização do crescimento (Brasília) e respeitando exemplarmente as instituições democráticas.

Jânio Quadros não conta, tudo nele era falso da cabeça aos pés.

Veio o governo militar, após 1964, com o projeto estapafúrdio do Brasil-potência, como se as potências fossem criadas voluntaristicamente, mediante simples decreto. Resultado: o país avançou na economia, mas suas instituições e a democracia foram esfrangalhadas. Até hoje pagamos as consequências do atraso político e da deseducação para a democracia.

Apareceu a figura de José Sarney, a cada dia mais parecido com o Padre Eterno, enquistado para todo o sempre no poder, com seus bigodes patrimonialistas.

E despontou Fernando Collor, que governava por surtos de machismo, alguns até mais lúcidos, mas sem projeto suficiente de nação e colocando-se acima do Congresso e o dos partidos, terminando melancolicamente, sem mínimo apoio político.

Finalmente, uma pausa para respiração. Assume a presidência o professor Fernando Henrique Cardoso, que transformou a república anárquica de estudantes, que era o Brasil, numa República respeitável, com a inflação controlada, a estabilidade garantida, as instituições todas respeitadas e reforçadas por medidas de controle. A casa ficou em ordem, mas durou pouco.

Com FHC o país reassumiu-se, por fim, mas para cair nas mãos febris de Luis Inácio Lula da Silva. Mãos e cabeça febris. Febre do quê? De programar um governo de magnitude cabal, que desse conta do país em toda sua diferença e complexidade? Não, positivamente, não. A febre de Lula, desde o início, no primeiro mandato, era e é febre de resultados, como não poderia ser diferente num sindicalista puro sangue, como Lula. E que resultados, políticos, econômicos, educacionais? Não, resultados eleitorais. Ganha a primeira eleição, a questão que se coloca é ganhar também a segunda eleição e todas as seguintes. Não perder o poder para a oposição.

Tamanha fome de resultados é consequência da mentalidade sindicalista que Lula introduziu na chefia do Poder Executivo. A mentalidade sindicalista é toda ela comandada pelo imperativo da ação direta. A "ação direta", o nome e a prática, foi inventada por sindicalistas franceses, ao início do século XX. Contrapõe-se, agressivamente, à ação legal, que é indireta por obedecer aos trâmites da lei, em processo mais complicado e demorado. A ação direta, por exemplo, coloca a greve como o primeiro recurso, no conflito entre o capital e o trabalho, e não em último lugar, depois de esgotadas todas as instâncias legais. Por sua ousadia e agressividade classista, corporativista, a ação direta é sempre violenta. Não quer saber de rodeios nem de panos quentes, quer fisgar logo o resultado, como se fisga o peixe no anzol.

Esta é a diferença de Lula na presidência da República do Brasil. Lula não está ligado à tradição bacharelesca dos primeiros presidentes, muito pelo contrário, nem prolonga a sabedoria de estadistas legítimos, como Vargas e JK, procurando enquadrar a República num projeto histórico de nação, não convida os dissidentes a amar o Brasil ou deixá-lo, como os chefes militares, muito menos constrói um programa de ampla convivência democrática, com base no aperfeiçoamento educacional e cultural, como FHC.

Caberia indagar como um presidente de formação sindicalista, desprezando as leis e as instituições, adepto da ação direta, para a qual os fins justificam os meios, poderia ser um democrata autêntico, como propõem Fernando de Barros e Silva e outros. A democracia para Lula não passa de um estorvo para a eficácia da ação direta, um conto inventado por velhas senhoras reumáticas numa longínqua noite de inverno.

Para que democracia, se ele, Lula, é um líder "carismático"? Essa história de "carisma" é algo irritantemente vago e impreciso. Que significa, mais precisamente, um líder carismático? Significa um líder legitimado não pelo voto, pelos trâmites democráticos, e sim por aclamação. Os 80% de popularidade de Lula garantem seu carisma. A eleição não passa de uma formalidade. E aqui mora o perigo. Seria interessante para a democracia um governante que dispensa a eleição, legitimando-se única e exclusivamente por aclamação?

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*Ex-promotor de Justiça. Filósofo e ensaísta





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