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Discurso do absurdo! O etilômetro na comprovação da embriaguez ao volante

Leonardo Costa de Paula

O presente artigo se funda na necessidade de contrapor as manifestações oficiais dos órgãos que compõem o aparato repressivo penal estatal sobre o tipo penal de embriaguez ao volante. O discurso do absurdo sobre o tipo penal pressupõe que qualquer conduta típica realmente componha uma conduta digna de repressão penal.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Atualizado em 8 de junho de 2011 12:57

Discurso do absurdo! O etilômetro na comprovação da embriaguez ao volante

Leonardo Costa de Paula*

O presente artigo se funda na necessidade de contrapor as manifestações oficiais dos órgãos que compõem o aparato repressivo penal estatal sobre o tipo penal de embriaguez ao volante. O discurso do absurdo sobre o tipo penal pressupõe que qualquer conduta típica realmente componha uma conduta digna de repressão penal.

Apesar do objeto do estudo ser derivado de um tipo penal, o reflexo disso se dá perante o processo penal e a forma de persecução penal para tal crime.

A motivação para a confecção deste texto se realizou partindo do presente para o passado, com a atual manifestação do subprocurador-Geral, e outros mais antigos a serem citados.

Na semana passada o subprocurador-Geral da República enviou ao STJ um parecer alegando que para a prova no crime de embriaguez ao volante seria desnecessário que houvesse o teste de bafômetro, bastaria apenas um exame clínico confirmado por prova testemunhal1.

As pessoas que atuam no sistema jurídico têm a necessidade de impor à lei a sua crença. Acredita-se na lei como critério de fé, não vinculado a um ato racional de aceitação de um bem comum, mas na aceitação cega de que a lei é imprescindível para o bem comum, termo este impreciso, vago e moldável para qualquer finalidade.

Da mesma forma que o subprocurador-geral compreende que a prática de dirigir embriagado é crime, ignora a legitimidade para a criação de uma lei, ainda pretende sobrepor a interpretação estrita da lei penal com a intenção de criar nova norma e permitir a ultra-atividade da redação revogada pela lei 11.705/08 (clique aqui).

Depois da laicização do Estado os homens passaram a endeusar as normas, pois acreditam no contratualismo, substituiu-se Deus pela ficcional entrega dos direitos para o Estado e na lei pode-se prever o que bem quiser o legislador, tal como um absolutista.

Lamentamos informar que a lei não é algo celestial! Ela deve ser pautada na racionalidade.

Depois da vigência da citada lei o número de mortes no trânsito não diminuíram. Para exemplificar, utilizemos o carnaval de 2011 em que morreram 213 pessoas no trânsito, 48,95% a mais do que no ano anterior, o que mostra que o caráter repressivo da lei não é determinante para a diminuição dos acidentes.

Com a manifestação do subprocurador, o que vem a tona são as manifestações dos entes públicos, vertidos para a repressão penal que se manifestam na crença cega à lei.

Essa manifestação só permite o início da conversa, quando se acredita que a lei funda um novo paradigma e que deve ser seguido de maneira irracional conseguimos alcançar algumas opiniões mais surpreendentes que outras.

Rodrigo Fudoli2, promotor de justiça de delitos no trânsito do Distrito Federal, em uma discussão na Câmara para verificar efetividade da lei do trânsito se manifestou:

"Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. E por isso eu defendo - e a maioria das pessoas que trabalham nessa área do Direito defendem - que o suspeito ou réu não é obrigado a soprar o bafômetro, porque isso exigiria dele uma postura ativa de se prejudicar. O exame de sangue surge como alternativa para o fim de prova de que estava embriagado. Porque ao permitir que o agente estatal retire sangue do motorista que se suspeita estar embriagado contra a vontade dele, não se está exigindo que o motorista está contribuindo com provas contra ele mesmo".

Qual seria o problema de obrigar alguém a fornecer o próprio sangue para que produzisse a tão buscada prova de alcoolemia no sangue?

O primeiro período da fala é óbvia, tão óbvia que impressiona, mas é usado só para dar legitimidade à tortura que propõe. Evidente que não é nele que reside o problema e sim nos períodos seguintes.

A pessoa não pode ser obrigada a soprar o bafômetro, mas, na visão de alguns o cidadão é poderia ser obrigado a permitir que um agente estatal retirasse seu sangue, isso não caracterizaria aviltamento ao nemo tenetur se ipsum acusare.

Mas onde que vamos chegar? A pessoa se recusa a efetivar um ato contra si (não assoprar o etilômetro), e desde quando permitir tirar sangue não é um fazer? Para quem não sabe, a permissão é um ato positivo de não reagir. O permitir é o não exercício do direito de resistência, e, em que medida se modificou o vetor do fazer? Deixar que se faça é um fazer nada! É da mesma forma obrigar alguém a algo.

Pois bem, baseado em que retirar parte do corpo de uma pessoa (sangue) para fazer prova contra ela não é ferir o sonhado princípio? E se fosse necessário retirar um rim para tal exame? Também poderia? São perguntas que não saberemos a resposta, pois pelo visto ninguém relevou esse discurso do absurdo. Acontece que a nova manifestação é uma metamorfose do mesmo absurdo.

O subprocurador vai além! Nem isso precisa! Os médicos legistas agora são etilômetros ambulantes. Médicos podem determinar com precisão se uma pessoa se encontra com 0.6 decigramas de álcool por litro de sangue ou não. Pelo visto todo médico teve implantado um aparelho biônico capaz de fazer essa varredura da quantidade de álcool no sangue ou no ar aveolar.

O legislador é peremptório, o crime se perfaz quando se ultrapassa a dosagem indicada por lei. O caráter repressivo da conduta só é possível acima desse número, abaixo não!

Mas, o que é o direito dos outros? O que é o direito do alter, daquele que não representa o nós, o todo, a totalidade. Silencia-se a voz do outro, do oprimido, do cidadão, na busca de uma esperança de realização cega da lei3. E aí, o Estado ganha, ganha uma fortuna com multa, ganha uma fortuna com apreensão de veículos!

Agora voltando mais um pouco no passado, quando houve a alteração da tipificação penal da embriaguez ao volante a Advocacia Geral da União se manifestou com suporte de um parecer técnico produzido pela Polícia Rodoviária Federal4 para dizer que quem se recusar a fazer o teste do etilômetro responderá por desobediência.

Este parecer foi encomendado com urgência para resolver o problema do princípio ou da surreal garantia de não ser obrigado de produzir provas contra si e nele se define que:

"Fazendo uma análise em abstrato, não existe na Constituição, de forma expressa, dispositivo prevendo que ninguém seja obrigado a produzir provas contra si"5.

Enquanto alguns tentam majorar as garantias, como é o caso de Amilton Bueno de Carvalho6: Buscar na legislação, via interpretação qualificada, abertura de espaços que possibilitem avanço das lutas populares, revendo, conceitos estabelecidos, através da crítica constante. O que se percebe no Brasil é outra coisa.

O que o aparato repressivo penal busca, sim, é seu alargamento. Hoje temos milhares de tipos penais. Os promotores, delegados, policiais e até juízes dilatando a fúria inquisitorial que existia na inquisição, isso não é aceito no Estado Democrático de Direito.

Controlar o cidadão em todos os seus atos, no que pensa, era a expectativa de Jeremy Bentham7 através do panopticon. Além dele temos também a identificação do como deve ser um governo, por Carl Schmitt que visava controlar inclusive aquilo que o cidadão pensa para se manter a ordem8.

O discurso do absurdo vai se especializando. O parecer da Polícia Rodoviária Federal, que pretendia subverter o crime de desobediência não colou. A manifestação na Câmara do promotor de justiça de delitos no trânsito, para que a verificação do etilômetro se transformasse num banho de sangue também não.

O mais novo parecer da Procuradoria Geral da União quer subverter a letra da lei na embriaguez ao volante fazendo do Judiciário um legislador, no sentido de alterar a lei, indo além do que a interpretação mais nefanda permite.

Pela lei de Introdução ao Código Civil o cidadão só é obrigado a saber todas as leis que entram em vigor e não a interpretação irreal daquilo que a lei define como proibido.

O que temos? Só o princípio da legalidade se esvaindo, já que não mais importa à totalidade proteger o cidadão e sim, remoer Jeremy Bentham no panopticon e só o que teremos é que o processo penal não mais seja necessário.

Remontem as guilhotinas; preparem as fogueiras: a caça às bruxas está lançada. Para que processo? Para que garantia? Nada pode limitar a segurança da coletividade!

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1 MIGALHAS. Prova da Embriaguez. Publicado em 24 de maio de 2011 (clique aqui).

2 TAMARIN, Eduardo. Promotor sugere realização de exame de sangue para medir teor alcoólico de motorista (clique aqui).

3 LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. 2 ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 109.

4 COUTINHO, Filipe. AGU sustenta que recusar teste do bafômetro é crime.

5 ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO, Análise acerca da legalidade do uso do etilômetro.

6 CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1992, p. 90.

7 BENTHAM, Jeremy. Panopticon (clique aqui).

8 SCHMITT, Carl. La dictadura. Madrid: Revista de Occidente, 1968.

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*Professor de Introdução ao Direito e Processual Penal UCAM, pesquisador do Grupo de Estudo Matrizes Autoritárias do Código de Processo Penal, coordenador Regional/RJ do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal. Advogado do escritório Gamil Föppel Advogados Associados com foco de atuação no Rio de Janeiro

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