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Justiça, democracia e educação em terra brasilis

Há o que se fazer substancial e racionalmente pela melhoria da eficiência do serviço judicial, abarcando outras instituições que atuam direta ou indiretamente no sistema. A educação, bons propósitos e descortino fazem falta.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Atualizado em 12 de abril de 2012 14:55

No último mês, o Brasil perdeu dois dos seus maiores e, talvez, de seus últimos gênios dos tempos atuais. O multifacetado e, com inteira justiça reverenciado, Milton Viola Fernandes, mais conhecido como Millôr Fernandes (27/3), que face à inexatidão do Cartório de Registro Civil, e da duvidosa caligrafia lançada em seu registro de nascimento, cujo traço não completou o "t" e deixou o "n" inacabado, o prenome Milton transmudou-se em Millôr.

Desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, tradutor, pensador e ilustrador, esse carioca ilustre teve ainda tempo de inventar o frescobol. Tido como um dos principais personagens da imprensa nacional, foi um frasista como poucos em sua época no mundo, dele partindo, entre outras, a consideração de que "com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado". Sim, os chineses também já diziam em milenar provérbio que palavras só deveriam ser pronunciadas desde que tenham o atributo de melhorar o silêncio.

Um pouco antes (23/3) se foi outro carioca, esse por adoção, o mestre do humor e não menos talentoso Chico Anysio. Entre a "Escolinha do Prof. Raimundo" e "Chico City" - esse último almejava ser um retrato do Brasil, criou mais de 200 personagens que, há bom tempo, entraram e com todo mérito permanecerão na história da arte popular. Como um antropólogo, Chico saía a campo em busca dos tipos que melhor nos representassem, como lembrou em sua coluna no "O Globo", Arthur Dapieve. Rindo de nós mesmos, castigava os usos e os costumes pátrios no horário nobre. Se esse microcosmo se chamava "Chico City", o Brasil bem poderia trocar de nome para "Chico Country". Tavares era um desses personagens emblemáticos. Picareta que vivia bêbado, passando a rica e nada bonita mulher para trás. Chamava o uísque de "cascavel", por causa do barulho das pedras de gelo contra o copo. E a coitada de "biscoito", sabe-se lá por que. Seu bordão: "Sou, mas quem não é?" Na bandeira do "Chico Country", a frase poderia substituir, com vantagens, o lema "ordem e progresso".

Indo ao propósito do texto, lamenta-se que nem todos, quiçá mesmo a maior parte das pessoas, incluindo alguns (e algumas) que já passaram dos quarenta, e ocupantes de altas funções no cenário nacional, lhe deram a devida atenção. Muitos falam em contexto equivocado e generalizado, especialmente sob a luminosidade incandescente e fugaz, mas nem sempre esclarecedora, dos holofotes da mídia ou mesmo das redes sociais, nesse caso já sem tanta iluminação.

É fato que a fraqueza humana alimenta o ibope e é assunto que a imprensa privilegia em suas manchetes, melhorando a audiência e o seu faturamento. Também é fato que a magistratura brasileira tem sido colocada em suspeição, generalizada até.

Ocupar cargo público é uma grande responsabilidade, que além de sacrifícios, humildade, serenidade, discernimento, compostura e discrição, exige vocação e dedicação para servir com ética e realizar o bem comum.

Nesse momento a magistratura tem sido debatida - para dizer o menos - por cidadãos de todos os estamentos sociais, como poucas instituições já o foram nesse país. Esse fenômeno me parece salutar, especialmente se desse debate público, mas às vezes desconcertado, for possível extrair alguma racionalidade que objetivamente permita o aperfeiçoamento dessa notável carreira e do próprio sistema judicial brasileiro. E não o seu aviltamento ou mesmo destruição pura e simples, risco a que a nação de um Estado que se diz Democrático e de Direito, com aspirações maiores no cenário mundial, não pode se permitir.

Países civilizados fiscalizam sim a magistratura, exigem transparência e punem exemplarmente eventuais desvios, mas sem prejulgamentos, frases de efeito e linchamentos midiáticos em espetáculos pirotécnicos. E, com igual disposição, cuidam de valorizar seus bons magistrados e a carreira que lhes é inerente. Em países social e culturalmente mais avançados, as condições de trabalho da magistratura, nos planos material e instrumental, são homogêneas, e no mínimo, razoáveis.

A produção legislativa, especialmente na Europa Continental, de onde copiamos o sistema da longa tradição romano-germânica da lei escrita como principal fonte do Direito, é enxuta, concisa e de boa qualidade. Vale dizer, a matéria-prima do Direito à disposição da magistratura facilita a eficiência, a celeridade e a qualidade do julgamento. Em comparação, apenas para citar o caso mais recente, a atual redação da Lei Seca impede o Judiciário de atuar como dele legitimamente espera a sociedade, estarrecida, com inteira razão, com a absurda violência no trânsito. Elaborada que foi pelo Congresso Nacional sem qualquer respaldo técnico, apenas para atender a questões pontuais, sem diálogo com juristas experientes. Para surpresa de alguns e inquietude de outros, repercutiu o julgamento da 3ª Turma Criminal do STJ (REsp. 1.111.566), pois ainda que restrita ao exame do caso concreto e por apertada maioria (5 a 4), entendeu pela impossibilidade de criminalizar o motorista por falta do teste do bafômetro ou do exame de sangue, em relação aos quais ninguém pode ser obrigado (por quem quer que seja) a produzir prova contra si próprio (artigo 5º, inciso XXXIX, CR). E, neste sentido, dado que as questões sociais cumprem sejam consideradas, o Poder Judiciário não pode ignorar direitos fundamentais, conquistados ao longo do extenso curso evolutivo da história da civilização mundial. Ou seja, alterações na lei devem ser implementadas a fim de admitir outros meios de prova, inclusive com a inversão do ônus de produzi-la. Mas, de qualquer forma, não alcançarão casos pretéritos.

Na Europa, EEUU e alguns países asiáticos, o número de juízes é compatível com a proporção da população, a complexidade e importância da função de julgar. No Brasil essa relação é de 1 juiz para 25.000 habitantes, na Alemanha, em comparação, é de 1 por 3.863. A previsão dos economistas indica que nossa economia ultrapassará a da locomotiva europeia, no máximo, até 2020 (ano passado já superou a do Reino Unido e nesse ano, passa-se a França). Como explicar, em meio a todas as nossas mazelas, que o crescimento econômico tem sido extraordinário, ainda que ao redor da bagunça, na indisciplina e permeado por crises econômicas, sociais e morais? Mas continuaremos muito longe nos demais indicadores, tão ou mais importantes, por um bom tempo ainda.

A lei de responsabilidade fiscal (LC 101, de 2000), sem dúvida indispensável na moralização do gasto público, abriu mão de um estudo mais consistente ao definir o percentual do orçamento destinado ao Judiciário, até hoje em vigor (6%). Passados 12 anos, percebe-se que esse teto é manifestamente insuficiente para atender às mais elementares necessidades impostas pelo vertiginoso crescimento da demanda judicial. Assim, novos cargos de juízes e serviços auxiliares deixam de ser instalados, ou o administrador vê-se impossibilitado até mesmo de aumentar a carga horária dos servidores para atendimento ao público, impedido de ultrapassar o teto de 6% da receita corrente líquida dos Estados. A bem da verdade, que também sofrem com os orçamentos comprimidos pelo oneroso desequilíbrio na repartição das receitas tributárias, em prol da União Federal, dona do cofre e da máquina que produz e que arrecada mais de 90% dos tributos do país, exigindo, além disso, juros extorsivos pelo serviço da dívida dos Estados membros, em evidente distorção do modelo federativo.

Dos 27 Tribunais de Justiça do país (Justiça Comum Estadual), que juntos concentram também cerca de 90% da demanda judicial, apenas um deles (TJ-RJ), até hoje, conquistou, de fato e materialmente, a autonomia financeira assegurada, de direito e formalmente, na Constituição de 1988.

Desde a entrada em vigor dessa Carta Política, o Poder Judiciário está estruturado, no aspecto formal, para representar o papel que dele se espera na República, na qual os Poderes se encontram separados. Mais do que a violação à norma e o desrespeito aos valores, a simples ameaça de agressão aos direitos dos cidadãos, pessoas físicas ou jurídicas, interesses individuais, coletivos ou difusos, são submetidas ao Judiciário, que se presta para a sua proteção, inclusive daqueles que o atacam e desejam que os magistrados percebam remuneração equivalente ao salário mínimo. Conquanto seja indiscutível a gravidade de um magistrado ser indiciado ou mesmo privado de sua liberdade cautelarmente em inquérito policial mediante atuação da Polícia Federal, por exemplo, deve-se ter em mente que tais providências se realizam por ordem e comando de outro magistrado (relator prevento), que o julgará, em colegiado, na ação penal subsequente. Tal resulta do chamado direito constitucional de petição que impõe ao Judiciário, e somente a ele, como Poder cuja função é prestar a jurisdição, fundamental parcela da soberania do Estado. Porém, embora com papel decisivo, não somos o único ator da complexa engrenagem que se convencionou chamar de Justiça, circunstância convenientemente omitida nas discussões travadas a respeito de sua notória morosidade que, diga-se de passagem, não é exclusividade brasileira. E essa engrenagem constantemente emperra por ineficiência também de outros personagens, cuja responsabilidade não é trazida à tona do debate democrático.

Além disso, a Constituição assegurou o aumento da cidadania e implementou uma série de "remédios judiciais" para dar eficácia e efetividade aos direitos e garantias nela consagrados. Uma notável gama de novos direitos e obrigações, com destaque para a Lei do Bem de Família, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei da Ficha Limpa, a Lei da Improbidade Administrativa, a Lei de Investigação de Paternidade, as leis referentes à união estável, o Estatuto do Idoso, a efetividade conquistada pelos direitos fundamentais e personalíssimos, os juizados especiais cíveis estaduais e federais, etc. A evolução do mundo moderno, com acelerado desenvolvimento da tecnologia de informação; a intensa judicialização das ações de massa, relacionadas, na sua maioria, com planos econômicos; as privatizações nos setores de telefonia e energia elétrica; o aumento da criminalidade organizada e da violência urbana - tudo isso tem contribuído para o acréscimo da demanda judicial.

Ainda que com o crescente aumento da produtividade média dos juízes, algo em torno de 9% ao ano - taxa similar ao crescimento das economias mais fortes do planeta, China e Índia, p. ex. - estima-se que o resíduo da primeira instância, que desde há algum tempo é duas vezes maior que a capacidade de julgamento dos seus juízes, em 2013 irá corresponder a 2,4 vezes o total de processos terminados. No contexto atual, do ponto de vista estatístico, estamos enxugando gelo, apenas.

Majoritariamente, há um bom tempo, trabalhamos no limite. Rompê-lo será, além de desvantajoso, perigoso à própria nação, não mais somente à Instituição ou à saúde dos magistrados. Ao menos em Minas Gerais, magistrados que não comparecem aos fóruns diariamente, ou que não residam na comarca, constituem casos isolados.

Juízes são homens e mulheres de todos os segmentos sociais que prestaram concurso público e, aprovados, depois de dois anos, adquirem as garantias constitucionais que lhes assegurem a independência e imparcialidade. Essas e outras garantias, em verdade, são da própria sociedade, não dos juízes. Como refere Augusto Ferrza de Arruda, os vulgos e os não tão vulgos assim, bem como a imprensa comprometida com a farsa da faxina moral da magistratura (ainda remanesce em alguns o princípio marxista de que os juízes, todos, não são mais do que garantidores, ou instrumentos do regime de dominação imposto pela classe dominante), "exigem" que o juiz decida sempre bem, pois não se trata mais do que seu dever. Não somos máquinas, todavia, para corrigir eventuais equívocos, há o princípio do duplo grau de jurisdição. Sucede, ainda, que o apreço de uma causa bem decidida invariavelmente é creditado ao "notável" advogado ou ao "combativo" representante do Ministério Público. Ao decidir mal, todos os ônus, impiedosamente, são descarregados unicamente no juiz, a título de despreparo ou descaso.

Dito por quem já foi advogado, promotor de Justiça e juiz de Direito, sem qualquer demérito às duas primeiras (bem como às demais) importantes atividades, a responsabilidade de julgar não deve jamais ser reduzida a um ato mecânico ou simples dado estatístico, em que pese reconheça a importância dessa ferramenta na gestão e planejamento estratégicos. É ato de enorme responsabilidade, pessoal e intransferível, que exige, a meu aviso, dedicação exclusiva, meditação, conhecimento técnico, sensibilidade social e estudo aprofundado. Atributos que se acumulam e se aperfeiçoam após muitos anos de exercício da função. Por isso, a vocação não admite dúvida, nem conveniências. Entre outras habilidades contemporâneas, como a de administrar e gerir métodos, procedimentos, equipe de servidores, atender à imprensa, cobra-se a capacidade e disposição de bem ponderar valores.

Trabalhamos, dia após dia, lidando e solucionando os problemas e dramas que afligem indivíduos, empresas e o próprio Estado. Geralmente, sem a devida proteção pessoal e nos mais carentes rincões do país. O início da carreira, após aprovação em rigoroso concurso público - a ideia é que apenas os melhores cuidem do bem comum, por isso a exigência do concurso público, senão na totalidade, em 99% dos cargos -, cuja taxa média de aprovação não passa de 2%, se dá em longínquas e desaparelhadas comarcas, longe da família, situação que costuma perdurar anos, pois a 5 carreira também é lenta. O esforço mental é alto e o desgaste, dele decorrente, se acumula também no tempo, pois ao contrário do cansaço físico, não desaparece com uma simples noite de sono. Magistrados são agentes políticos e, ao mesmo tempo, órgãos do Estado encarregados de prestar a jurisdição. No estudo de processos e na elaboração de decisões, é comum trabalhar às noites, feriados, finais de semana e mesmo em férias, em rotina solitária, ignorada e incompreendida. Nas férias, por sinal, não há substitutos (às vezes, apenas ocasionalmente e para análise de casos urgentes), dado que esses, os substitutos eventuais, já sobrecarregados, estão acumulando funções. Disso resulta, ao término do período que por definição universal seria destinado ao descanso obrigatório - ao menos para quem, por arbítrio pessoal, não optou por alguma profissão liberal -, em mais acúmulo de trabalho, pois a distribuição de novas petições, arrazoados e processos, por óbvio, não é interrompida ou redirecionada. E desse acúmulo adicional, ao contrário de outras profissões, não se tem como evitar, é compulsório. É vedado desenvolver negócios próprios, assim como ter outro posto, salvo um único de professor. Da mesma forma, não há direito a horas extras. Do subsídio, com ênfase alardeado pela mídia, compulsoriamente fica retido na fonte, mensalmente, cerca de 39% de seu total, equivalentes a IRPF e contribuição previdenciária pública. Vale dizer, o que efetivamente é percebido, o líquido correspondente, é de 61%. Sua recomposição, assegurada por norma constitucional expressa, uma vez por ano, não é feita há seis anos. Ou seja, nessa altura o Estado vem se locupletando ilicitamente de 35% da remuneração acumulada da magistratura. E isso gera distorções, e com elas, a tentação de contorná-las, afinal, estamos no Brasil, país da institucionalização do jeitinho para romper as amarras burocráticas. É mais uma armadilha, maliciosa e astuciosamente concebida. Os congressistas não votam a recomposição anual dos subsídios, pois têm, somente eles, a válvula de escape da polpuda verba de representação de gabinete. A discricionariedade que prevalece na relação de emprego público é que faz impossível comparar o seu estatuto legal ao dos trabalhadores do setor privado ou os regimes previdenciários respectivos. Essas e muitas outras peculiaridades da função exercida pela magistratura a distingue, de forma marcante, de outras atividades e profissões, sejam elas públicas ou privadas.

Não se pode, portanto, comparar ou equiparar o que não é igual, equívoco alimentado como frequência pela mídia e replicado pela turba.

No Brasil, quase todo litígio é judicializado. Quando surge uma situação nova, a primeira providência do legislador é criar uma ação e instituir um novo processo. O que revela falta de inteligência, pois a máquina judicial é cara, complexa e congestionada, cabendo acioná-la apenas quando a conciliação restou infrutífera ou nas situações que exigem a produção de provas complexas, como a pericial, por exemplo.

O formalismo é um traço cultural. O gosto pela retórica bacharelesca e pelo espetáculo ritualístico, a religiosidade de pompa e circunstância, a reverência aos "doutores" e a conformidade dos seguidores, é uma praxe colonial ainda presente em nosso cotidiano. É mecanismo político de controle do poder por uma minoria. As faculdades de Direito foram criadas para formar uma categoria de funcionários burocratas e assim, passados mais de 200 anos, parece que continuam. Quando a norma suprime uma formalidade, alguns insistem nela. E dá-lhe recurso. De tudo se pode recorrer e a multiplicidade de recursos que podem ser interpostos em um único processo e a necessidade de um pronunciamento fundamentado sobre cada petição abarrotam os tribunais com uma quantidade descomunal de julgamentos.

Os indivíduos, as empresas e o Estado brasileiro - esse, por sinal, o maior demandista de todos - não tem a cultura de buscar um acordo judicial que ponha fim ao conflito de interesses, preferindo recorrer enquanto houver recurso cabível e esperar pela decisão final da autoridade judiciária. Menos ainda buscar, antes, métodos de resolução alternativa de conflitos. As concessionárias de serviços públicos, os bancos e algumas empresas tiram vantagem da morosidade que eles próprios costumam criticar, pois o atraso na prestação jurisdicional lhes permite retardar pagamentos ou celebrar acordos em melhores condições, além de retrair a incidência de reclamações em juízo. O processo, vítima de leis instrumentais arcaicas (mesmo após tantas "reformas" que rendem fama aos doutos), continua, como sempre o foi no Brasil, vantajoso ao devedor, que não é penalizado de forma adequada quando perde a demanda, mesmo após estendê-la muito além do razoável, onerando o custo das transações.

O mau exemplo vem, mais uma vez, da Administração Pública, que a par de ainda deter privilégios processuais a essa altura inconcebíveis, como prazos desde dobrados a quadruplicados, obrigatoriedade de intimações pessoais, imunidade de execução e, talvez, o mais nefasto de todos, o malfadado reexame necessário, insiste em descumprir as decisões judiciais, transferindo para o Judiciário a responsabilidade pela cobrança dos tributos, como se magistrados fossem fiscais ou coletores. Sim, a Constituição não permite a execução judicial nas dívidas do Estado, também não prevê outro meio eficaz de motivá-lo a pagar o que deve. Neste cenário, os precatórios judiciais, sem dúvida, representam o maior calote público desse país, escândalo de irresponsabilidade fiscal silencioso. As agências reguladoras não exercem função fiscalizadora e normatizadora de uma série de atividades vitais, nem atuam sobre as relações massivas, o que gera uma quantidade infinita de reclamações em juízo; essas ações repetitivas, de objeto homogêneo ou coletivo, continuam sendo tratadas de forma artesanal, com processamento individualizado das medidas, importando em maior congestionamento.

Presume-se que ninguém fiscaliza a omissão e negligência dessas agências.

Afinal, quem fiscaliza o fiscal?

Como outros países latino-americanos, formalmente vivemos numa democracia, mas a índole democrática parece não ter sido ainda assimilada por nossa nação, a exemplo daquelas. Além de transparência, seguramente necessária no âmbito das relações, sejam elas públicas ou privadas, democracia pressupõe o constante exercício de direitos e deveres recíprocos, o respeito às regras estabelecidas, devoção ao bem comum, em prol da coletividade, e descentralização, do poder e do saber. Alex de Tocqueville anotava que numa democracia a melhor maneira de governar é por meio da descentralização administrativa, que evita e impede a coletivização da obediência por temor ou indiferença. Aliás, não é essa a luta do Estado de Direito democrático? A luta contra poderes, administrativos ou não, despóticos e unilaterais? Mas continuamos rondando o "centralismo democrático" de outro senão de Lénin.

Talvez por isso aponta-se o dedo sem olhar para si próprio, em ritual que se repete em diferentes ideologias, seja à direita, seja à esquerda.

O Judiciário tem sido um alvo fácil de políticos espertos e de alguns formadores de opinião, nem sempre, uns e outros, bem intencionados. E indefeso, pero que, jamais indefensável.

Ao contrário dos demais Poderes, não tem coordenação estratégica, verba para adular a imprensa (nem deve tê-lo), 99% de seus cargos, tanto na atividade-fim como na atividade-meio, são providos por concursos públicos, o que também é um bom princípio republicano, mas, apenas se constata, em relação aos demais Poderes, lhe subtrai o ganho político das nomeações.

Seu orçamento, ao menos nos Estados membros, é insuficiente para acompanhar a crescente demanda por seus serviços, o que só faz engrossar, ano após ano, o estoque de insatisfação daqueles que procuram a Justiça, produzindo caldo fácil para manipulações de toda ordem, especialmente em contexto em que a perspicácia escasseia. Não depende apenas de si próprio para melhorar sua eficiência nos planos material e instrumental e, no jogo político, sofre, ora com a simples má-vontade, ora com a intencional retaliação alheia, eventualmente contrariada com o teor de alguns julgamentos. Desde o final dos anos 30 e início dos 40, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, criou-se norma constitucional com o propósito de exercer algum controle sobre o Poder Judiciário, o único verdadeiramente independente. Por ela, vinte por cento (1/5) da composição de todos os tribunais do país (órgãos de cúpula) é composta de profissionais alheios à carreira da magistratura, no caso, advogados e membros do Ministério Público, nomeados que são - ou seja, não concursados - pelos Chefes do Executivo (Governadores ou Presidente da República, conforme o tribunal). A partir da nomeação, tornam-se magistrados com todas as prerrogativas inerentes. Percebe-se que a carreira da magistratura é interrompida nos Tribunais dos Estados (Tribunais de Justiça) ou nos Tribunais Regionais Federais, conforme se trate da magistratura estadual ou federal, pela ordem.

Nos Tribunais Superiores, tribunais políticos por opção do modelo constitucional adotado, especialmente o Supremo Tribunal Federal (a cúpula da cúpula), o provimento é exclusivamente por nomeação do Presidente da República, jamais por promoção. E nessas nomeações, já indisfarçavelmente nos últimos tempos, tem prevalecido não o critério puramente político desejado pelo modelo constitucional entre nós adotado, mas algo que tangencia o político-partidário, em flagrante distorção do sistema. O Senado Federal, embotado pela hipertrofia do Executivo e refém do jogo político, tem sido, aqui também, extremamente cordato, para dizer o menos. Lado outro, o Judiciário é o Poder mais fiscalizado da República, seja interna, seja externamente. E é bom que o seja, me apresso em dizer. Advogados (aqui atuando como profissionais liberais ou em razão de cargos públicos que detém), partes e o Ministério Público, em todos os processos em que atuam fiscalizam cada procedimento e decisão proferida pelo juiz da causa. Os sindicatos dos servidores do Judiciário, mais invasivos, também o fazem. Os concursos de ingresso na carreira da magistratura tem a participação obrigatória de advogados e representantes do Ministério Público. As Corregedorias de Justiça, a OAB, a imprensa, os Tribunais de Contas e, por fim, o CNJ, todos fiscalizam tanto o juiz da causa, como o Poder do ponto de vista institucional.

Mas sua força, como Poder da República, reside em dois aspectos. Um objeto prosaico: a caneta do magistrado, cuja tinta fica dispersa em milhares de processos diluídos em sua imensa capilaridade territorial em país com dimensões continentais, geralmente em causas individuais processadas artesanalmente. É um Poder que, além de desarmado, não é molecularizado, por que não conversa entre si, no sentido de compartilhar experiências bem sucedidas. O segundo aspecto resulta em bem incorpóreo que jamais poderá ser apreciado financeira ou patrimonialmente, por isso que de valor inestimável. É a ciência da ética que como conceito, genericamente, em que pese sua importância, é relativamente fácil de ser injustamente destruído: a autoridade moral da magistratura.

As críticas, quando construtivas, são mais do que necessárias, fazem bem a qualquer instituição, pública ou privada, pois contribuem para o seu aperfeiçoamento. Nada, nem ninguém, é à prova de falhas. Por isso que o agente público, seja ele qual for, deve estar preparado para recebê-las, inclusive com humildade. Porém, assinalo que no Judiciário as apurações iniciais ou já investigações externas iniciadas, vale dizer, do CNJ, encontrou indícios de atipicidade em não mais de 0,4% do total do contingente de 17 mil magistrados. Esse percentual não é alterado significativamente quando incluídos na base de cálculo também os servidores do Judiciário. Lembro que atipicidade não significa, necessariamente, ilícito civil ou administrativo, menos ainda fato penal em tese imputável.

Ou seja, objetivamente, 99,96% do Poder Judiciário nacional, entre magistrados e servidores, não apresenta sequer indícios de atipicidade em suas condutas. E quem o diz, ainda que indiretamente, é o próprio CNJ.

Qual instituição brasileira, pública ou privada, pode apresentar esse padrão de correção e lisura, quando submetida a esse mutirão fiscalizatório permanente?

Ocorre que o viés das críticas tem sido invariavelmente tendencioso, generalizado e o enfoque que o embala, potencializado. Sim, não sobra muito espaço para argumentos racionais em ambiente em que a tonalidade dos movimentos é imbuída de coloração embotada e propósitos, diga-se, com parcimônia, porosos. Há instituições (e alguns profissionais que a integram) que são exímios na fiscalização de tudo e de todos, desde que fiquem excluídos do olhar (e da cobrança) alheio. Justamente nelas residem as autênticas caixas-pretas tupiniquins, em que pese sua natureza jurídica, maliciosamente omitida. E não estou a me referir ao Judiciário.

A turba, ingênua, embalada pela imprensa majoritária, que deveria, mas raramente informa com precisão, neutralidade e profundidade, aplaude, como aplaudiu, por exemplo, o episódio da caça aos marajás, descobrindo-se após enganada num jogo de cena para desviar a atenção do que pior acontecia no país. Como aplaudiu, com o decisivo apoio das mídias e de alguns "âncoras" com pose de entendidos em horário nobre e editorialistas, provavelmente merecedores de polpudos contracheques, a bandeira desfraldada por fortíssimo segmento nacional, pelo fim do recesso forense, tido como outro "privilégio" da magistratura, a pretexto de agilizar os julgamentos. Pois bem, a Constituição foi novamente alterada e em vão, ainda que alertados pela magistratura, os congressistas e a opinião pública (ou terá sido a opinião publicada?) cuja resistência à mudança foi imediatamente identificada como exemplo nefasto do corporativismo. O que se viu então foi justamente o contrário, especialmente nos órgãos colegiados da segunda instância. Com o impedimento de se concentrar as férias, senão de todos, mas da maioria, a períodos restritos do ano, essas passaram a ser diluídas em todos os meses.

Os julgamentos em colegiados, feitos em turmas integradas geralmente por três ou cinco magistrados, ficou seriamente comprometido, pois, de ordinário, à exceção do vogal, relator e revisor, fixados que são no momento da distribuição do recurso, não podem ser trocados ou substituídos em razão de férias, sob pena de ofensa ao princípio constitucional do juiz natural.

Aguarda-se agora, foi já inclusive prometido pela mesma poderosa instituição, a "luta" pela alteração da alteração no texto da Lei Maior de uma nação que se pretende ser levada a sério no restante do mundo, mas que não prima pela coerência, menos ainda pela boa memória.

Em muitos aspectos, para além da índole autoritária, o traço cultural da nossa "gente distinta" não é dos melhores.

As elites e, por vezes a classe média também, não são pródigas em bons exemplos. O velho ideal colonial de colher frutos sem plantar, no anseio de recolher recompensas imediatas e fáceis, a não-assertividade nas relações interpessoais, reforçada pela prática da cooptação e pela troca de favores, permanecem vivíssimos em nosso cotidiano. Não por acaso, no Brasil Imperial do latifúndio escravista, o trabalho era considerado como algo aviltante. Há tolerância para com a apropriação privada ou corporativa dos recursos, dos cargos e dos benefícios públicos. Há reduzida disposição para assumir riscos, envolver-se em conflitos e aceitar responsabilidades. O mandonismo, o clientelismo, o nepotismo, o favoritismo e o paternalismo. Por isso, cabe reconhecer que a sociedade brasileira - autoritária, discriminatória, patriarcal, hierarquizada, centralizadora, predatória e desperdiçadora - espelha seus traços nas instituições que a compõem de maneira capilar. Características que formatam o traço histórico-cultural da nação e repercute em todas as esferas, públicas e privadas.

Essa elite, pródiga em apontar o dedo, é a mesma que, com certa naturalidade, persegue, para si ou para a parentalha, uma "boquinha" em cargos públicos de confiança; compra produtos sabidamente falsificados; sonega tributos; evade divisas; movimenta "caixas dois", próprio ou alheio; pratica o crime de descaminho; mantém atividades de fachada, em setores tidos como estratégicos, para fazer uso indevido de financiamentos com juros camaradamente subsidiados pela viúva nacional ou simplesmente na aquisição de bens de consumo (veículos e máquinas) por meio de isenções fiscais; simula valores irrisórios na aquisição de imóveis; vota em políticos que desviam merendas escolares de crianças; ressuscita politicamente aqueles já condenados por improbidade ou corrupção; capta ilicitamente o sufrágio; destrói matas e florestas nativas, protegidas pela lei como reservas de preservação permanente; faz lobby para contraventores, posando como promotora da moralidade sob o escudo de mandato eletivo; corrompe ou calunia servidores; fornece amostras diárias de incivilidade e arrogância, inclusive aos próprios filhos, no trânsito e nos luxuosos condomínios onde habita; subtrai sinal de TV por assinatura; não recolhe o seu lixo ou o atira nas vias públicas; etc.

Também atacam e aplaudem fervorosamente quem "corajosamente" ataca. Sem que isso importe em descurar da atividade correcional que lhe é inerente, desde que condicionada ao devido processo legal, direito de todo cidadão, o primeiro papel do CNJ é aumentar a produtividade, reduzir a irracionalidade do sistema e ampliar a sua transparência. Interessa a todos, particularmente à magistratura, que o CNJ também trate de melhorar a eficiência do sistema judicial e como visto acima, há um caminhão de boas providências aguardando nesse campo, já há cerca de sete anos. Melhorar a produtividade e a eficiência, sem que isso importe em prejuízo na qualidade das decisões judiciais, tornando o sistema mais efetivo a toda população, é o grande desafio cuja superação é anseio legítimo que se espera desse órgão.

Queremos, por exemplo, o processo judicial totalmente eletrônico, padronizado e compartilhado, da primeira à última instância, na Justiça Comum, seja dos Estados, seja Federal. O uso massivo do papel e todos os muitos e caros inconvenientes que produz no sistema judicial e ao meio ambiente, deveria já ter sido exterminado. Iniciativa que formal e materialmente cabe ao próprio CNJ. Consertar o que é preciso na carreira da magistratura e protegê-la dos ataques oportunistas é indispensável a fim de que a mesma possa, cada vez em maior número e frequência, atrair bons valores, pessoas vocacionadas e capacitadas, com a índole do bem, em benefício e proveito da própria nação, pois a existência da primeira se explica no propósito de bem servir essa última.

À magistratura não interessa quem não tenha vocação de servir com eficiência, compostura e práticas verdadeiramente republicanas.

Esse trabalho de planejamento, coordenação e gerenciamento, embora essencial, talvez não renda tão forte atenção dos holofotes midiáticos instantâneos, dado que seus resultados de sustentabilidade demandarão tempo maior de maturação e, por consequência, de percepção pela sociedade como um todo.

Como se vê, muito há o que se fazer substancial e racionalmente pela melhoria da eficiência do serviço judicial e, mais amplamente, judiciário, esse último abarcando outras instituições que atuam direta ou indiretamente no sistema.

Sim, a educação, bons propósitos e descortino fazem falta. Sua notória e estrutural deficiência explica boa parte dos males que continuam assolando o país, muito após Stanislaw Ponte Preta, ou mesmo a repetição dos mais de 200 tipos de Anysio, num país de sem-tipos.

O país carece de mais seriedade e responsabilidade, sob pena de se repetir, continuamente, não na ficção do gênio humorista, mas no cotidiano, o antigo, porém ainda atual bordão do Tavares: "Sou, mas quem não é?".

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* Marcelo Guimarães Rodrigues é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais






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