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Meu corpo, minha tatuagem, por Eudes Quintino

Meu corpo, minha tatuagem

O Estado não pode apontar um padrão único de estética corporal, pois irá suprimir um dos direitos fundamentais do cidadão, que é justamente a liberdade de praticar atos que sejam compatíveis com as regras previamente estabelecidas.

domingo, 28 de agosto de 2016

Atualizado em 26 de agosto de 2016 12:28

Em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por votação unânime, que o edital de concurso que faça constar proibição de tatuagem a candidato a cargo público, é inconstitucional. O ministro relator Luiz Fux, com impecável técnica jurídica, assim ponderou: "Em respeito ao artigo 37, inciso I, da CF, que expressamente impõe que os cargos e empregos em funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos na lei, revela-se inconstitucional toda e qualquer restrição a requisito estabelecido em editais, regulamentos e portarias se não houver lei dispondo pela matéria. Um policial não pode exteriorizar sinais corporais, como tatuagens, que conflitem com esta ratio, como, a título de ilustração, tatuagens de palhaços, que significam, no ambiente marginal, o criminoso que promove o assassinato de policiais"1.

O comportamento do homem, desde a remota civilização, vai passando por etapas e critérios de ajustamento e aceitabilidade. Partindo sempre da premissa que a humanidade, nos cinco milênios de existência, se encaminha para um aperfeiçoamento, é de se concluir que as normas de condutas de interesse do grupo sejam formatadas pelo próprio grupo, com a consequente homologação estatal.

Assim, cada um leva sua vida de acordo com os critérios escolhidos, compreendendo todas as opções praticadas na sociedade, com sua autonomia e independência, fazendo aquilo que for de seu interesse para alcançar os objetivos de vida propostos, sem, no entanto, colidir com o do alheio. Quer dizer, no universo das diferenças, procura-se um senso comum que seja do agrado de todos, não só no relacionamento entre as pessoas, mas também na estética do próprio corpo.

O corpo humano, instrumento deambulatório indispensável para a realização de todas as tarefas idealizadas pelo cérebro, seu gestor, visível e representativo da vida humana que nele habita, desta forma, passa a ser um latifúndio individualizado, refletindo a sua inconfundível imagem pela qual é identificado perante o grupo. E, como tal, é protegido pelas leis, tanto na sua garantia corporal, como psíquica. Basta ver os inúmeros dispositivos protetivos existentes a respeito. Berkeley afirmava que "não negarei que a mente que move e contém essa massa corpórea, universal, e é a verdadeira causa eficiente do movimento, é a mesma causa, correta e estritamente falando, da sua transmissão"2.

O Estado, no entanto, em algumas oportunidades, antecipa-se ao indivíduo e toma por ele a decisão com relação à disposição do próprio corpo. É o caso, por exemplo, da lei que permite à pessoa capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, porém, se for com relação à outra pessoa, somente mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. É certo que há nítido interesse do Estado em controlar a doação para que não haja o comércio com órgãos, mas não paira nenhuma dúvida a respeito da ingerência do poder público em fiscalizar os atos praticados envolvendo o corpo humano. Assim como, não pode cuidar do extremamente magro e desprezar os excessivamente gordos. Para tais categorias deve proporcionar os cuidados adequados e recomendados para a boa saúde, sem impor restrições ao exercício de seus direitos.

Já com relação à alteração estética realizada no corpo humano, como a que sucede com a tatuagem, não pode exercer um policiamento intensivo e nem se arvorar em coproprietário e estabelecer restrições às pessoas que, como opção, assim procederam e pretendem ingressar nas carreiras públicas, diminuindo-as e desigualando-as, ferindo os princípios da isonomia e legalidade, sem, no entanto, auferir seus conhecimentos pelas provas referentes aos cargos.

Os artigos 7º, inciso XXX, 37 e 39 § 3º, todos da Constituição Federal, recomendam os critérios necessários para que sejam observadas as regras de igualdade de condições na admissão, tanto com relação ao sexo, idade, cor, estado civil e todos os demais direitos já consagrados.

Sendo assim, no âmbito de uma hermenêutica mais adequada à ordenação jurídica brasileira, em nenhuma hipótese o edital pode inserir cláusula que não se coadune com a coerência legislativa, sob pena de ser inexigível a restrição. Neste sentido, a súmula 683 do Supremo Tribunal Federal adverte que eventual restrição só se legitima quando possa ser justificada pela natureza do cargo a ser preenchido.

O Estado não pode apontar um padrão único de estética corporal, pois irá suprimir um dos direitos fundamentais do cidadão, que é justamente a liberdade de praticar atos que sejam compatíveis com as regras previamente estabelecidas. No instante em que o indivíduo faz a opção pela tatuagem, inserindo em seu corpo imagens com significados subjetivos de diversos conteúdos, sem infringir o senso de aceitabilidade do homo medius, não pode ser diferenciado e muito menos ter sua pretensão de acesso a cargo público barrada.

É de ser lembrado, quando do lançamento do biquíni, ocorreu uma repulsa por parte dos conservadores por entenderem que o minúsculo traje de banho mal cobria o corpo e desafiava a moral pública. Hoje, ao contrário, foi criado o burquíni, traje que cobre todo o corpo da mulher muçulmana, com exceção do rosto e mãos. Tais mulheres, consequentemente, não podem sofrer restrições por cobrirem demais o corpo.

São as voltas que o mundo dá.

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1 Proibição de tatuagem para candidatos a cargo público é inconstitucional.

2 Berkeley, George. Obras filosóficas. Tradução, apresentação e notas Jaimir Conte. São Paulo: Ed. UNESP, 2010, p.352.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.

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