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A nova ordem dos processos no Tribunal: colegialidade e garantias no CPC/15

As regras previstas nos arts. 929 a 946 do NCPC são retratadas por um nome velho e traiçoeiro. Velho porque remonta a uma denominação clássica do Direito Processual Civil, e é traiçoeiro porque não traduz com fidelidade a importância e o significado teórico do tema ali regulado.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Atualizado em 2 de março de 2017 09:43

1. O tema e seu real significado: o procedimento nos Tribunais1

As regras hoje constantes dos arts. 929 a 946 do CPC/15, reunidas sob o Capítulo "Da Ordem dos Processos no Tribunal", são retratadas por um nome velho e traiçoeiro. É velho, em primeiro lugar, porque remonta a uma denominação clássica no nosso Direito Processual Civil, que já figurava com pequena diferença no CPC/39 ("Da ordem do processo na superior instância"), passou pelo CPC/73 e que agora chega, quase intacta e com o peso da tradição, no CPC/15. E é traiçoeiro, ou simplesmente não muito adequado, porque não traduz com fidelidade a importância e o significado teórico do tema ali regulado. O que verdadeiramente está em jogo naquele segmento do Código é o procedimento nos Tribunais, seja o procedimento dos recursos, seja o procedimento relativo a incidentes e ações de competência originária. É, em última análise, o conjunto de formas que cercam a condução do processo por um órgão singular ou colegiado no Tribunal, com (i) a sequência encadeada de atos e (ii) as exigências formais relativas a cada ato, considerados individualmente. Assim, e mais uma vez apesar da denominação, incorreria em incauto erro quem reduzisse a matéria tratada nos arts. 929 a 946 à mera sucessão ou "ordem" entre os processos à espera de julgamento, algo que a redação original do art. 12 do Código até virtuosamente pretendeu impor, em um compromisso com a impessoalidade lamentavelmente quebrado com a lei 13.256/16, e que apenas guarda parcial pertinência com o art. 936, quanto à ordenação dos feitos na sessão.

Se é da forma e da sequência dos atos nos Tribunais que se ocupa o tema ora versado, há muitas razões a justificar seja ele submetido a exame crítico sob o ângulo teórico. O primeiro fator de importância consiste no propósito de mudar uma cultura. É que o Estado não presta "um favor" ou "dá esmola" com o tratamento dispensado aos jurisdicionados na fase recursal. A realidade do Poder Judiciário brasileiro é a de que, conforme se ascende na hierarquia judiciária, menor respeito merecesse o cidadão na sua interação com a autoridade. Essa é uma cultura que perpassa o Poder Judiciário e tem reflexos inclusive nas regras legais, que em muitos casos, sobretudo no CPC/73, não guardavam a necessária harmonia com as garantias fundamentais do processo, institucionalizando julgamentos-surpresa, tolerando que as partes não fossem comunicadas sobre a realização do julgamento colegiado ou comprimindo de forma geral a amplitude do contraditório2. Essa lógica, porém, precisa ser quebrada. Como aponta a Corte Europeia de Direitos Humanos, é até questionável e incerto se há um dever dos Estados de criar recursos contra toda e qualquer decisão judicial, com as conhecidas polêmicas que aqui também reverberam sobre a garantia do duplo grau de jurisdição. Se, porém, o Estado cria, por lei, um recurso, a facultatividade que porventura existisse na criação não pode servir de motivo para mitigar o devido processo legal e a eficácia das garantias fundamentais do processo, que devem ser respeitados no procedimento recursal tal como em qualquer outra etapa do exercício da jurisdição3. E o CPC/15 oferece um importante instrumental para romper com essa cultura, remodelando as bases do processo judicial em atenção a uma concepção democrática da Justiça civil, que esteja verdadeiramente a serviço do cidadão, e não da autoridade.

O segundo fator de importância do tema é uma espécie de balanço, que deve e merece ser feito. Ao definir o procedimento para os recursos nos Tribunais, o legislador é inspirado a atingir algumas metas, algumas virtudes teóricas que ficam subjacentes às duas espécies de procedimento: o procedimento completo, que conduz ao julgamento colegiado, e o procedimento abreviado ou sumário, que conduz ao julgamento monocrático. O julgamento monocrático se destina, essencialmente, a promover a celeridade no processo, ao passo que o procedimento que conduz ao julgamento colegiado, muito mais complexo, visa a assegurar (i) o reforço da cognição judicial, (ii) a independência dos membros julgadores e (iii) a contenção do arbítrio individual, que podem ser tidas como as virtudes teóricas da colegialidade4. Assim, é preciso apurar em qual medida o caminho estabelecido pela lei é capaz de efetivamente contribuir para o atingimento desses fins, promovendo tais virtudes teóricas, ou se, ao contrário, as formas erguidas pelo sistema processual servem antes de obstáculo ou de entrave ao que de mais proveitoso se poderia auferir do julgamento nos Tribunais. E o ponto repercute sobre importantes institutos, a começar por uma das diretrizes gerais do Código de 2015, com o novo perfil atribuído ao precedente judicial e, mais amplamente, aos padrões decisórios elencados no art. 927. Como adiante se verá, há impactos profundos das regras do procedimento nos Tribunais em um sistema que se calca na força vinculante de pronunciamentos judiciais, porque intimamente relacionadas, por exemplo, aos cuidados com que o precedente é formado sob o ângulo formal e, mais ainda, em como o texto do acórdão que o retrata é redigido, com consequências para a esfera de todos os demais jurisdicionados, para o bem ou para o mal.

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1. Texto, acrescido de notas e atualização, de conferência pronunciada no Rio de Janeiro, em 07.mar.2016, no Congresso Internacional de Direito Processual Civil realizado pela Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro.

2. Para um panorama do problema sob a égide do CPC/73, v. SOKAL, Guilherme Jales. O julgamento colegiado nos tribunais: procedimento recursal, colegialidade e garantias fundamentais do processo, Rio de Janeiro: Forense/São Paulo: Método, 2012. Muitas das ideias ali lançadas são agora retomadas nas páginas que se seguem.

3. GRECO, Leonardo. Princípios de uma teoria geral dos recursos, In: Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP da UERJ, vol. V, 2010, p. 23-4 (Disponível em <Clique aqui> ).

4. Sobre o ponto, e mais longamente, v. SOKAL, Guilherme Jales. Op. cit., p. 81-108.

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*Guilherme Jales Sokal é advogado, procurador do Estado do RJ e mestre em Direito Processual pela UERJ.

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