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Abuso financeiro - desvio e malversação da verba alimentar destinada ao sustento dos filhos

Entre os direitos decorrentes do exercício do poder familiar encontra-se o de exercer a guarda do filho, que, por consequência lógica, está ligado ao direito de usufruir e administrar os bens deste.

terça-feira, 28 de março de 2017

Atualizado às 08:04

O pleno exercício do poder familiar compete a ambos os pais, em igualdade de condições1, qualquer que seja a sua situação conjugal2. O pai ou a mãe, divorciado ou solteiro, que contrair novo casamento ou estabelecer união estável não perde, quanto ao filho do relacionamento anterior, os direitos relativos ao exercício do poder familiar3. A suspensão ou perda do poder familiar em relação aos filhos menores só ocorrerá pela morte do rebento ou por decreto judicial4.

O Código Civil (CC) prevê que, enquanto no exercício do poder familiar, pai e mãe são usufrutuários e têm a administração dos bens do menor sob sua autoridade5, salvo em relação aos legalmente excluídos6.

Ocorre que, entre os direitos decorrentes do exercício do poder familiar encontra-se o de exercer a guarda do filho7, que, por consequência lógica, está ligado ao direito de usufruir e administrar os bens deste, lembrando que qualquer que seja o regime de guarda, usualmente, todos os genitores têm a obrigação de prestar alimentos ao filho, o dever de sustento e educação. Oportuno lembrar que do mesmo modo que a verba alimentar não pode fomentar o ócio, desestimular o estudo e o trabalho e gerar o enriquecimento ilícito do menor, muito menos poderá gerar tais resultados em relação a terceiros, principalmente em seus ascendentes, pois a estes cabe o dever de sustento dos filhos e não o direito de serem sustentados por eles.

Na guarda unilateral, em caso de excepcional limitação ao pleno exercício do poder familiar, um dos pais é privado dos mencionados direitos de guarda, usufruto e administração, sendo estes substituídos pelo direito à convivência8 com o filho e pelo direito e pela obrigação9 de supervisionar e fiscalizar os interesses da prole em todos os assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica, bem como a educação e manutenção do rebento.

Já na guarda compartilhada, como a responsabilidade e o exercício dos direitos e deveres do pai e da mãe, concernentes ao poder familiar do filho comum é exercido em igualdade de condições10, em geral, sem nenhuma limitação, cristalino fica que o usufruto e a administração dos bens do menor são obrigações carreadas a todos os genitores, indistintamente. Ressalve-se que o Judiciário poderá estabelecer de forma diversa tais atribuições11, carreando-as exclusivamente a um dos pais, principalmente quando constatada a existência de motivos graves que justifiquem tal medida12. Nesta situação atípica, a referida limitação ao exercício do poder familiar deverá constar expressamente na decisão judicial e deverá ser precedida da indispensável fundamentação válida13, sob pena de nulidade14.

Demonstrado a quem cabe o usufruto e a administração dos bens do filho menor, incluída aí a verba alimentar, necessário se faz investigar como se dá o exercício de tal usufruto e administração no que diz respeito aos alimentos prestados in pecúnia.

Quanto ao usufruto dos bens do menor, o mesmo não se aplica à verba alimentar prestada em dinheiro, uma vez que esta tem que ser destinada, exclusivamente, a fazer frente às despesas que assegurem ao filho sua subsistência, saúde, educação, vestuário, etc., permitindo seu sadio e pleno desenvolvimento físico, psíquico e mental, não podendo, desta feita, tal verba ser usufruída, em proveito próprio, por outra pessoa, quem quer que seja. Ainda que o usufruto fosse aplicável aos valores recebidos à título de alimentos destinados ao filho, mesmo assim estaríamos diante de usufruto impróprio, onde o usufrutuário tem a obrigação de ao final devolver coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade, com seu preço/valor devidamente atualizado, ou seja, qualquer montante utilizado em benefício de outrem que não o menor teria que ser devolvido a este, o legítimo proprietário, acrescido de, no mínimo, correção monetária.

No que tange a administração dos bens do menor, incluída aí a pensão alimentícia, doutrina e jurisprudência são unânimes ao apontar que tal administração deve visar unicamente o interesse do filho, tendo o administrator que exercer sua função com a máxima transparência, eficiência e responsabilidade, visando sempre o bem estar do rebento, não sendo franqueado ao gestor à prática de atos que extrapolem a simples gerência e conservação do patrimônio do representado15, sendo também vedado16 a este dispor, como lhe aprouver, em interesse próprio ou de outrem, de valores e de quaisquer outros bens pertencentes ao menor.

O CC é omisso no que tange às regras que o administrador deve observar em sua gestão, porém, tal lacuna normativa é simples de ser contornada, uma vez que o administrador dos alimentos, tal como o tutor, é gestor de bem alheio, pois a verba alimentar integra o patrimônio pessoal do filho menor.

Utilizando a analogia17 chega-se à dedução que o gestor deverá observar no desempenho de sua missão, no mínimo, as seguintes regras: realizar seu trabalho com zelo e boa-fé18, sempre em proveito dos menores; receber19 a pensão alimentícia e demais quantias devidas à criança ou adolescente e providenciar a realização das despesas necessárias para prover a subsistência e educação destes20; não poderá adquirir para si ou se apropriar de quaisquer espécies bens pertencentes ao menor21, bem como dispor de tais bens a título gratuito22; não poderá conservar em seu poder dinheiro pertencente ao menor, além do estritamente necessário para fazer frente às despesas ordinárias com o sustento e educação deste23; os valores pertencentes ao menor depositados em estabelecimentos bancários só poderão ser retirados, sacados ou transferidos para atender, puramente, as despesas com sustento e educação do filho.

A observância das regras acima expostas, bem como a necessidade da gestão ser exercida com a transparência, eficiência e responsabilidade, são indispensáveis para garantir o resguardo dos interesses e direitos do menor, sendo certo que se o administrador deixar de lado seus deveres de zelo e boa-fé, passando a gerir o patrimônio do filho em proveito próprio, relegando os interesses do menor à segundo plano, tal conduta fatalmente acarretará graves prejuízos ao filho.

Ao apropriar-se, ainda que de pequena parcela, dos valores recebidos pelo menor a título de pensão alimentícia para uso em proveito próprio, além de praticar a apropriação indébita de tal numerário, o genitor malversador estará descumprindo com sua responsabilidade parental, pois, como visto, aos pais, simultaneamente, cabe o dever de sustentar os filhos e não o direito de serem sustentados por estes.

Pai ou mãe que se apropria para si dos alimentos destinados ao filho pratica ato semelhante ao do genitor que não cumpre sua obrigação de prestar alimentos, uma vez que as consequências geradas por tais atos são as mesmas, quais sejam, o filho não terá suas necessidades vitais satisfeitas, podendo até mesmo passar por privações e carências extremas.

O descumprimento da obrigação alimentar acarreta rigorosas sanções, cíveis e criminais, aos alimentantes, devendo da mesma forma ser penalizado o genitor que se apropria dos alimentos destinados à subsistência do filho, sendo que, tal qual se dá em relação aos alimentantes, o ato de apropriação não pode ser justificado, nem as correspondentes sanções afastadas, pela simples alegação de desemprego temporário ou permanente.

O genitor que se apropria, para benefício próprio ou de outrem, dos valores destinados ao sustento do filho comete o ilícito conhecido como abuso financeiro e econômico, violência patrimonial, que consiste na exploração imprópria ou ilegal e no uso não consentido de recursos financeiros e patrimoniais, que acarreta o não atendimento das necessidades básicas da criança ou adolescente, primordiais para o desenvolvimento saudável deste.

Importante salientar que a vulnerabilidade dos menores se equipara ou até mesmo se revela superior a de alguns idosos e mulheres, sendo oportuno ressaltar que nas leis 10.741/03, estatuto do idoso (art. 102), e 11.340/06, Maria da Penha (art. 7º, IV), o mencionado abuso financeiro, de tão grave, foi tipificado, respectivamente, como crime e como forma de violência doméstica e familiar.

Tal abuso é tão maléfico que com o decorrer do tempo o genitor malversador passa a se apropriar de parcela cada vez maior do valor destinado ao sustento do filho, abdicando de sua própria carreira profissional para viver tão somente às custas do infante, o que, invariavelmente, causa o desenvolvimento de uma simbiose psicológica patológica entre o filho e tal genitor, o que acarreta sérios danos ao desenvolvimento psicológico do menor, danos estes que podem ser irreversíveis, causando grandes impactos e prejuízos na vida adulta deste, pois crianças e adolescentes expostos a tal situação tendem a se tornar adultos inseguros, tímidos, complexados e com baixa autoestima.

O que desencadeia tal simbiose é a inversão de papéis, o genitor começa a se apropriar dos recursos do filho, renunciando paulatinamente a seu dever de cuidado para com o menor, passando a buscar de forma primordial o atendimento de suas próprias necessidades em detrimento das do filho. Em contrapartida, o menor passa a se sentir responsável pelo constante bem-estar do malversador, a tomar conta deste, desqualificando suas próprias necessidades em benefício das daquele. Tal patologia, não raras vezes, tem como consequência o distanciamento do filho em relação ao outro genitor, não administrador, uma vez que o menor passa a enxergar que tal relacionamento pode representar, de alguma forma, uma espécie de traição ao malversador, a quem, instalada a simbiose, a criança passa a se sentir obrigada a proteger, cuidar e a zelar pelo seu total bem-estar.

Assim, demonstrados os malefícios que a malversação dos alimentos, abuso financeiro e econômico, violência patrimonial, pode trazer ao desenvolvimento físico e psíquico dos menores, necessário se mostra que o Judiciário abra os olhos em relação a tal grave questão, lembrando sempre do mandamento constitucional que determina a apreciação de qualquer lesão ou ameaça a direito24, balizando o juiz sua conduta no princípio da intervenção precoce25, intervindo logo que a situação de perigo seja conhecida, devendo, em tais casos, afastar qualquer formalismo processual, dando a maior efetividade possível ao princípio da instrumentalidade das formas26.

O mesmo apelo feito ao Judiciário também necessita ser direcionado ao Ministério Público, devendo este sempre adotar, de ofício ou por solicitação dos interessados todas as providências cabíveis em face de tais irregularidades, ilegalidades ou abusos de que tenha conhecimento27, principalmente quando os autores de tais atos ilícitos forem os ascendentes das vítimas, sob pena de, por sua inércia, ser acusado e denunciado pelo crime de prevaricação28. Aqui se faz oportuno recordar que compete ao Ministério Público, por lei29, promover a prestação de contas de quaisquer administradores de bens de crianças, inclusive quando tal administração é encargo atribuído aos pais.

Ao Judiciário não cabe outra alternativa senão reconhecer o interesse e a legitimidade do genitor não administrador, na condição de legítimo representante legal do filho, ainda que não detenha a guarda da criança ou adolescente, para pleitear que tais lesões ou ameaças aos direitos do menor sejam devidamente apreciadas, censuradas, cessadas e sancionadas pelo Poder Judiciário Justiça. De igual forma, dúvidas não restam a respeito da legitimidade do genitor malversador para figurar no polo passivo destas eventuais demandas, uma vez que este é quem terá que suportar os efeitos e reflexos da decisão judicial a ser proferida.

As sanções, cíveis e criminais, as quais o genitor malversador está sujeito, podendo estas ser aplicadas, quando necessário, de forma concomitante e simultânea, são as seguintes: encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico30, advertência31, perda da guarda32, suspensão ou até mesmo perda do poder familiar33 34,destituição do encargo de administrador dos alimentos35, restituir ao patrimônio do menor, devidamente corrigidos, os valores desviados, apropriados de forma indevida36, multa de três a vinte salários mínimos, aplicando-se o dobro em caso de reincidência37 e, eventualmente, apurados os indícios pelo Ministério Público, ser denunciado pela prática dos crime de abandono material38, abando intelectual39 e apropriação indébita40.

Desta forma, ante a gravidade das consequências as quais os menores estão sujeitos pela malversação da verba alimentar destinada ao sustento destes, abuso financeiro e econômico, violência patrimonial, fica evidenciada e justificada a necessidade de que tal administração sempre se dê da forma mais transparente e aberta possível, devendo a regular e periódica prestação de contas por parte do administrador, mesmo a extrajudicial, ser tida como regra, independente do regime de guarda em vigor, uma vez que a todos os genitores é atribuída a obrigação e o direito de pedir prestação de contas, com a finalidade de permitir a supervisão e fiscalização do atendimento aos interesses dos filhos, em todos os assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a educação, sustento, manutenção e saúde física e psicológica destes. É dever e obrigação do Judiciário, Ministério Público, Conselho Tutelar e demais autoridades competentes sempre investigar e desvendar o que o administrador da verba alimentar tenciona esconder quando se recusa a prestar contas pormenorizadas de sua gestão, de como e de que forma ele aplica, utiliza e conserva os valores sob sua responsabilidade, numerário este que integra o patrimônio exclusivo dos menores. Afinal, como diz o ditado, "quem não deve, não teme"!
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1 ECA. Art. 21.
2 CC. Art. 1.634.
3
CC. Art. 1.636
4
CC. Art. 1635, V.
5
CC. Art. 1.690, I e II.
6
CC. Art. 1.693, I a IV.
7 CC. Art. 1.634, II.
8
CC. Art. 1.589.
9
CC. Art. 1.583, §5º.
10
CC. Art. 1.583, §1º.
11
CC. Art. 1.584, §3º.
12
CC. Art. 1.586.
13
NCPC. Art. 489, §1º, I a IV.
14
CF. Art. 93, IX.
15
STJ. AgRg no Ag 1.065.953/SP.
16
STJ. REsp 1.110.775/RJ.
17
Decreto 4.657/1942. Art. 4º.
18
CC. Art. 1.741.
19
CC. Art. 1.747, II.
20
CC. Art. 1.747, III.
21
CC. Art. 1.749, I.
22
CC. Art. 1.749, II.
23
CC. Art. 1.753.
24
CF. Art. 5º, XXXV.
25
ECA. Art. 100, Parágrafo único, VI.
26
STJ. REsp 1037429/SP.
27
Lei nº 8.625/93. Art. 43, VIII
28
CP. Art. 319.
29
ECA. Art. 201, IV.
30
ECA. Art. 129, III.
31
ECA. Art. 129, VII.
32
ECA. Art. 129, VIII.
33
ECA. Art. 129, X.
34
CC. Art. 1.638, IV.
35
CC. Art. 1.584, §4º e art. 1.586.
36
CC. Art. 186, art. 187 e art. 927.
37
ECA. Art. 249.
38
CP. Art. 224, caput e Parágrafo único.
39
CP. Art. 246.
40
CP. Art. 168.

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*Fernando Salzer e Silva é advogado e procurador do Estado de Minas Gerais.

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