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Considerações sobre as Leis Estaduais de números 15.304/14 (Pernambuco) e 10.434/15 (Paraíba)

Regulam o fornecimento de veículo reserva aos proprietários de veículos e os seus impactos nas relações entre os consumidores e o mercado automotivo.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Atualizado em 29 de junho de 2017 07:55

Até pouco tempo atrás, nos Estados de Pernambuco e Paraíba, a regulamentação acerca do fornecimento de veículo reserva aos consumidores, cujos automóveis estivessem parados na concessionária dentro do período de garantia, era questão resolvida pelo viés exclusivamente contratual. Em outras palavras, era necessário avaliar o que havia sido ajustado no contrato com a montadora no momento da compra do veículo.

Isso porque algumas montadoras possuem sistemas de atendimento que concedem o benefício do carro reserva aos clientes durante o período de garantia do veículo, atendidas determinadas condições pré-estabelecidas. Dentro do cenário consumerista, a prerrogativa é válida, desde que não sejam impostas condições consideradas iníquas ou em geral abusivas ao consumidor (art. 51, IV,
CDC1).

Com base no mesmo dispositivo, eventuais limitações ao privilégio devem ser destacadas no contrato ou manual do proprietário, com o fito de não impor ao comprador obrigações que o coloquem em desvantagem exagerada. O descumprimento de tais determinações ensejará na declaração de nulidade da cláusula estabelecida.

É prudente salientar que as disposições legais anteriormente mencionadas devem ser analisadas com cautela pelas montadoras. Isto porque, dentro do atual contexto jurisdicional brasileiro - no qual se vê ampla incidência do acesso à justiça através de órgãos como PROCON e Juizados Especiais por parte dos consumidores -, a interpretação da existência ou não de abusividade das cláusulas caberá ao Magistrado, que, em regra, fará uma avaliação casuística do problema.

Sem prejuízo da avaliação das minúcias legais, é fato que fornecer ou não um veículo reserva ao cliente durante o período de imobilização de seu veículo, por qualquer que seja o motivo, tratava-se, até a promulgação das leis estaduais que serão estudadas neste artigo, de uma prerrogativa das empresas, que poderiam optar por um tratamento diferenciado de pós-vendas durante o período de garantia do bem adquirido.

Não obstante, esse cenário foi recentemente modificado nos Estados de Pernambuco e da Paraíba, onde foram promulgadas as leis 15.304 em 4 de junho de 2014, e a de 10.434, em 20 de janeiro de 2015, respectivamente.

Ambas as legislações, conforme constante no resumo original, obrigam as montadoras de veículos, por intermédio de suas concessionárias ou importadoras, a fornecerem carro reserva similar ao do cliente, no caso do automóvel ficar parado por mais de 15 dias por falta de peças originais ou impossibilidade de realização do serviço durante o prazo de garantia contratado.

Dentre os termos estabelecidos na novel legislação, destacam-se os seguintes:

Lei 15.304/2014 - Pernambuco

Art. 1º Ficam as montadoras de veículos, por intermédio de suas concessionárias ou importadoras, obrigadas a fornecerem carro reserva similar ao do cliente, no caso do automóvel ficar parado por mais de 15 dias por falta de peças originais ou qualquer outra impossibilidade de realização do serviço.

Parágrafo único. A obrigação disposta no caput somente é válida durante o prazo de garantia contratada para o veículo.

Art. 2º O descumprimento do disposto nesta lei sujeita o infrator às penalidades dispostas no art. 56 da Lei Federal 8.078, de 11 de setembro de 1990, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis de acordo com a legislação em vigor.

Lei 10.434/2015 - Paraíba

Art. 1º Ficam as montadoras de veículos, por intermédio de suas concessionárias ou importadoras, obrigadas a fornecer carro reserva similar ao do cliente, no caso do automóvel ficar parado por mais de 5 dias por falta de peças originais, ou qualquer outra impossibilidade de realização do serviço.

Parágrafo único. A obrigação disposta no caput é válida durante todo o período de garantia, independentemente do prazo contratado.

Art. 2º O descumprimento do disposto nesta Lei sujeita o infrator às penalidades dispostas no art. 56 da Lei Federal 8.078, de 11 de setembro de 1990, sem prejuízo de outras aplicáveis de acordo com a legislação em vigor.

Antes de aprofundar a discussão sobre o impacto da legislação e outras consequências da promulgação, vale destacar a diferenciação no prazo que terão as empresas para o fornecimento do veículo reserva: na disposição pernambucana, o período está assim descrito: 152 dias. Ou seja, há contradição entre o prazo estabelecido e aquele escrito por extenso. Já na Lei Paraibana esse problema foi resolvido de forma pragmática: estabeleceu-se o prazo menor, de 5 dias.

Ambas as disposições são válidas durante o período de tempo em que perdurar a garantia do veículo, de modo que, a depender da montadora, a relação legal pode perdurar de 1 até 6 anos. Natural prever que a legislação impactará diretamente nas avaliações técnica e comercial que serão feitas sobre os benefícios de uma garantia estendida, sendo possível prever uma redução desses períodos a médio ou longo prazo, bem como aumento no preço global dos automóveis comercializados.

O impacto das medidas no mercado automotivo também envolverá a preparação de uma frota reserva, que deverá ficar à disposição dos consumidores, fato que terá um elemento logístico complicador nos casos dos veículos importados.

Outra consideração pertinente é o prazo máximo estabelecido para que seja cedido o veículo reserva: vale salientar que o prazo legal para que eventuais vícios sejam reparados é de 30 dias, de acordo com o art. 18, § 1º do CDC. Por sua vez, o termo legal, na legislação pernambucana, é a metade deste período: 15 dias, podendo ser reduzido para 5 dias após retificado o erro material já apontado alhures; na Paraíba, o prazo já o menor possível, de 5.

Outrossim, antes mesmo de esgotado o prazo que a legislação federal autoriza que os carros sejam mantidos imobilizados, será obrigatório que as empresas providenciem um substituto reserva.

É curioso relembrar também que a ultrapassagem do prazo legal de 30 dias para reparo, anteriormente mencionado, já dá ensejo automático à substituição do produto por outro da mesma espécie, restituição do valor pago pelo bem com correção monetária ou abatimento proporcional do preço3. Outrossim, a aprovação da nova lei adicionará nas prerrogativas do consumidor esse novo benefício, não sendo ele alternativo ou excludente.

Outra inovação trazida pelas legislações discutidas é o fato de que ambas trazem, no caput do art. 1º, determinação no sentido de que o veículo reserva deverá ser fornecido sempre que o prazo for extrapolado
por falta de peças originais, ou qualquer outra impossibilidade de realização do serviço.

Numa avaliação teleológica, a expressão "qualquer outra" indica de forma clara que as causas que ensejaram o bloqueio do produto por tempo maior do que o previsto não são suficientes para obstar o cumprimento do comando legal, quaisquer sejam elas. Destarte, foram incluídas no rol hipóteses como veículos gravemente sinistrados, mau uso do consumidor, etc. O substituto temporário deve ser entregue sem ressalvas, bastando para tanto o preenchimento da condição objetiva de ultrapassagem do prazo legal.

Por fim, aponta-se que a punição prevista para a desobediência da norma legal são as já conhecidas penalidades dispostas no art. 56 da Lei Federal 8.078, de 11 de setembro de 1990, o CDC, das quais cita-se como exemplo a multa, suspensão temporária de atividade ou de fornecimento de produtos ou serviços, cassação de licença do estabelecimento ou de atividade, intervenção administrativa, entre outras. Todas essas sanções serão aplicadas pela autoridade administrativa, inclusive cumulativamente.

Ainda em 2014, as legislações nordestinas estimularam a elaboração de um PL federal de autoria do deputado Wilson Filho (PTB-PB) de teor similar às já discutidas, com a ressalva de que o prazo para entrega do veículo seria ainda mais apertado: com apenas 48 horas de imobilização, a subsunção ao artigo já estaria concluída.

O Projeto foi rejeitado em dezembro do mesmo ano pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. Como contra-argumento, o Relator da comissão avaliou que o próprio CDC, aliado à concorrência no setor automobilístico, constituem mecanismos suficientes para assegurar a proteção dos compradores de veículos automotores.

Reflexão pertinente diz respeito à competência legislativa concorrente do Estado de Pernambuco e da Paraíba, uma vez que já existe lei federal que regulamenta a defesa dos consumidores de forma geral, que seria de competência exclusiva da União (art. 24, V e § 1º,
Constituição Federal4).

Como sabido, a competência dos estados é concorrente para legislar sobre determinadas matérias, dentre elas o direito consumerista, nos moldes do artigo 24 da CF/885, sendo certo que nesse âmbito (competência concorrente) a União expede normas gerais que não podem ser contrariadas pelos demais entes federados, que, por sua vez, podem suplementar tal normatização por meios legislativos próprios e dentro da gama de seus interesses. Na ausência de normas gerais da União, os demais órgãos fracionários da Federação podem exercer tal competência de forma plena, mas, sobrevindo legislação federal (obrigatoriamente de caráter geral), suspende-se a eficácia dos demais regramentos, no que contrariem a normatização federal.

A discussão certamente envolve a análise da profundidade das legislações pernambucana e paraibana, que apesar de não terem violado frontalmente o CDC, estão desalinhadas do regramento geral no que tange aos prazos necessários para que os vícios de produto sejam sanados pelas empresas (mínimo de 30 dias na Lei Federal), à natureza duplamente punitiva que a cumulação das normas ensejará e a inexistência de hipóteses em que o benefício não será concedido (como no caso do art. 12, § 3º do CDC, que dispõe as situações em que o fornecedor não será responsabilizado por eventuais problemas enfrentados pelo usuário, como no caso de mau uso6).

O debate foi levado sobre a questão foi levado ao STF com o ajuizamento de uma ADI contra a Lei Pernambucana pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA), pela Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (FENABRAVE) e pela Associação Brasileira das Empresas Importadoras e Fabricantes de Veículos Automotores (ABEIFA), de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, ainda pendente de julgamento7.

Na ação, outros argumentos suscitados pelas organizações envolvem a ofensa ao princípio da igualdade, uma vez que não haveria especificidade regional que autorizasse tratamento diferenciado aos consumidores que decidam adquirir veículos no Estado de Pernambuco (art. 5º, CF8) e a violação ao princípio da livre concorrência e da livre iniciativa. Também foi suscitado o erro material constante na Lei acerca dos prazos, já debatido anteriormente neste artigo.

Além das consequências já delineadas neste texto, as entidades discorrem ainda sobre o impacto da exigência legal do fornecimento do veículo reserva nos estoques das importadoras, eis que por conta do Programa INOVAR-AUTO9, as importações de veículos sem o adicional de 30 pontos percentuais é limitada à quota aprovada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

Nesse contexto, é importante que as inovações sejam tratadas com cautela. Em que pese o aumento de prerrogativas dos consumidores seja em regra bem vista pelo público em geral - exigentes por cada vez mais melhorias nos produtos e serviços -, patente que a imposição de regras que envolvam grande mudança na sistemática das relações consumeristas, sem prévio diálogo e estudo amplo, pode resultar em efeitos não previstos e até prejudiciais para ambas as partes, como talvez seja o caso estudado.

Para evitar situações como essa - em que um aparente benefício pode vir a se tornar um transtorno na relação usuário-fornecedor - é imprescindível, acima de tudo, que os impactos das mudanças sejam objeto de ampla discussão entre os setores favoráveis e desfavoráveis da medida dentro da sociedade, bem como que eventuais modificações estejam em pleno alinhamento com a legislação federal, responsável pela elaboração de normas gerais de grande parte dos setores sociais.

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1. Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

2. SIC

3. Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
§ 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço.

4. Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
V - produção e consumo;

5. Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
§1o - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

6. Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;
III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

7. ADI 5158

8. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

9. O Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto) é o regime automotivo do Governo Brasileiro que tem como objetivo a criação de condições para o aumento de competitividade no setor automotivo, produzir veículos mais econômicos e seguros, investir na cadeia de fornecedores, em engenharia, tecnologia industrial básica, pesquisa e desenvolvimento e capacitação de fornecedores. Criado pela Lei n° 12.715/2012, o programa possui validade para o período de 2013 a 2017.
O Programa estimula a concorrência e a busca de ganhos sistêmicos de eficiência e aumento de produtividade da cadeia automotiva, das etapas de fabricação até a rede de serviços tecnológicos e de comercialização. Os incentivos tributários do Programa estão direcionados a novos investimentos, à elevação do padrão tecnológico dos veículos e de suas peças e componentes e à segurança e eficiência energética veicular. Para habilitação ao Programa, as empresas deverão se comprometer com metas específicas, tais como investimentos mínimos em P&D (inovação), aumento do volume de gastos em engenharia, tecnologia industrial básica, etc.


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*Ana Carolina Sarmento Vidal Meneses é advogada, pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco e sócia na empresa Queiroz Cavalcanti Advocacia desde 2015.

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