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Decisões judiciais têm consequências, necessariamente

Os atos decisórios têm consequências práticas. Consequências que se projetam no caso concreto e nas políticas públicas ou formas de organização da sociedade.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 18:36

"Ser consequente é a máxima obrigação do filósofo."

Immanuel Kant

Recentemente o decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), passou a vigorar acrescido de vários artigos. Aqui se comentam os comandos legais introduzidos pelo novo Art. 20 dessa lei.

"Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão."

Esse dispositivo tem o objetivo de ancorar as decisões de ordem pública nos contextos da realidade em que os atos e fatos objeto do julgamento se inserem. A redação desse artigo pode ser vista semanticamente como redundante, ao se referir simultaneamente a esferas administrativa, controladora e judicial, posto que toda decisão controladora será necessariamente administrativa ou judicial. Entretanto, a referência explícita à esfera controladora deve ser vista como uma concessão do rigor semântico à clareza das intenções do legislador, que pretendeu deixar evidente que a referida norma se aplica não apenas aos órgãos diretamente administrativos, mas igualmente aos órgãos administrativos de controladoria e corregedoria que controlam a administração pública. Exemplificativamente, os Tribunais de Contas, a Controladoria Geral da União e os órgãos semelhantes ou equivalentes.

O dispositivo se impõe a essas três ordens decisórias para determinar que as respectivas decisões não serão tomadas exclusivamente com base em valores abstratos. Ao dizer que as decisões não serão tomadas com base em valores abstratos sem que se considerem os contextos de realidade, o dispositivo está determinando que as decisões se fundamentarão, sim, em valores abstratos, posto que toda norma jurídica é, por definição, uma determinação de conduta ou de abstenção baseada em valores abstratos. Mas, enfatiza a nova lei, as decisões não poderão ser tomadas exclusivamente com base nos valores abstratos e deverão obrigatoriamente considerar os efeitos práticos que tais decisões causarão nos fatos efetivos da vida real.

Essa disposição tem o alcance extraordinário de aproximar a teoria da prática. Aproximar a ideia da praxis. A vida não é só teoria e não é só pragmatismo. Pragmatismo sem interação teórica com os valores abstratos pode facilmente descambar para o cinismo amoral e aético. Teorização sem vínculos com a realidade pode resultar em alienação, com aprisionamento no mundo imaginário. O administrador, o controlador e o juiz que decidem não são seres fora da realidade, que decidem episódios alheios a qualquer realidade.

Em teoria, toda norma jurídica se impõe por si mesma, pela força intrínseca dos seus valores abstratos. Mas, as decisões que objetivem dar concretude à norma jurídica e seus valores abstratos se aplicarão sempre sobre uma determinada realidade da ordem prática do mundo.

O que o legislador determinou é que as decisões administrativas, aqui incluídas as decisões de controle da própria administração, e as decisões judiciais precisarão aplicar as normas jurídicas considerando os efeitos práticos que tais decisões causarão no mundo real.

O Direito, como conjunto de princípios, conceitos, costumes, normas e leis destinado a ajustar, ou tornar justas as relações sociais, é natural e necessariamente holístico. Tem que ser formulado em trezentos e sessenta graus, visto de todos os pontos de vista em direção a todos os pontos de vista. Toda decisão administrativa ou judicial resulta da realidade e transforma a realidade. Portanto, e o dispositivo que aqui se comenta assim o determina, só se legitima se considerar os efeitos positivos ou negativos que causar no mundo real. Considerem-se alguns exemplos práticos.

Frequentemente, decisões administrativas e judiciais em casos nos quais se examinam vícios na formação dos contratos administrativos, têm determinado, imediatamente e sem qualquer fundamentação da necessidade e conveniência dessas medidas, a suspensão ou rescisão desses contratos, como resultado de apreciação dos valores abstratos violados. Tais decisões são tomadas sem que se considerem as suas consequências práticas. E, muitas vezes as consequências práticas violam outros valores abstratos e outros legítimos interesses públicos.

Imagine-se um contrato que diga respeito a uma importante e urgente obra pública. No curso da obra se descobre que esse contrato resultou de fraude na licitação. A apreciação exclusivamente dos valores abstratos que informam o julgamento deveria levar necessariamente à anulação do contrato. O filho do pecado é pecado.

Entretanto, a anulação de um contrato de obra pública afeta outros valores abstratos. O princípio da celeridade ficará prejudicado pelo tempo de paralisação da obra e pelo tempo a ser consumido na organização e realização de uma nova licitação. O princípio da economicidade também poderá ser afetado, porquanto uma nova obra, depois de algum tempo de paralisação da obra anterior, com as readaptações necessárias para a continuação e recuperação do que se deteriorar, poderá custar muito mais caro do que o preço resultante da primeira licitação viciada. A se computar, também, o custo social da ausência da obra durante o período de seu atraso.

Portanto, em face de uma licitação viciada, e antes de determinar a suspensão ou paralisação da obra, a decisão administrativa ou judicial deverá, segundo o art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657, (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) que aqui se comenta, considerar as consequências práticas do que vier a ser decidido. Caso a suspensão ou anulação do contrato aumente o custo social da obra, em valores de tempo, dinheiro e frustração do interesse público, a decisão precisará considerar as alternativas que permitam corrigir os vícios da licitação, com a eliminação do sobre preço por exemplo, e com punição pecuniária, penal, administrativa e política das condutas ilícitas, na forma da lei, sem necessariamente determinar a suspensão ou a paralisação da obra.

Tome-se outro exemplo. É relativamente comum os administradores públicos receberem recomendações do Ministério Público para praticar, ou não praticar, determinado ato discricionário de administração. Também é, infelizmente, muito comum que o representante do Ministério Público que não tenha a sua recomendação atendida ingresse com ação de improbidade contra o administrador que não lhe prestou obediência. Comprovado, na fase de esclarecimentos que o §7º do art. 17 da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade), que a atitude recomendada não era legalmente possível, ou não era a mais indicada, ou era apenas uma das opções possíveis entre os atos discricionários da administração, e que o administrador público tinha motivos e deveres para agir de forma diversa daquela que lhe fora recomentada, o juiz deve rejeitar a ação de improbidade, conforme manda o §8º do mesmo artigo da Lei. Entretanto, sem considerar as consequências práticas dessa decisão, muitas e muitas vezes os juízes decidem receber a petição inicial, sob um vago pretexto de que "in dubio pro societatis", na expectativa de que no curso da instrução o autor da ação consiga provar que o administrador tinha o dever legal de aceitar a recomendação. E que, não aceitar recomendação do Ministério Público constitui ato de improbidade. Doravante, e segundo a lei aqui comentada, antes de decidir dar sobrevida à ação de improbidade, apesar de esclarecimentos do acusado que demonstrem ser o pedido inviável, o julgador deverá avaliar as consequências práticas dessa decisão.

No caso, o recebimento de qualquer ação de improbidade tem duas consequências práticas inevitáveis: causa o bloqueio patrimonial do acusado, e causa o seu estigma social, já que passa a ser visto publicamente como alguém que está sendo acusado, com a concordância inicial e preliminar do juiz, de não ter probidade para administrar a coisa pública, ou seja, de não ter a honestidade que se exige do administrador público. O bloqueio patrimonial é sempre muito grave, mas pode ser revertido. A desonra é gravíssima e nunca pode ser inteira e totalmente reparada. Lembremo-nos de Shakespeare, no ato III, de "Otelo"1. Na ordem prática das consequências de interesse público deverá o juiz considerar que o recebimento indiscriminado de ações de improbidade afasta os homens honrados, e os preocupados com a própria honra, da administração pública. Interessa ao bem comum que os homens preocupados com a própria honra também se sintam atraídos pela gestão da coisa pública.

A atitude "pro societatis" não se esgota em punir os que a lesaram. Também implica em atrair para a administração pública os homens que prezam a própria honra. Portanto, quando a nova lei diz que a decisão judicial deverá considerar suas consequências práticas, se estabelece que se deverá levar na devida conta o fato de se estarem afugentando da administração pública os administradores competentes e honestos que eventualmente não queiram passar anos e anos sendo publicamente expostos como réus em ações de improbidade.

O mesmo conflito de valores de interesse social se aplica relativamente ao hábito de se chamar a todo político de ladrão. Há decisões judiciais, até do Supremo Tribunal Federal, sustentando que quem se aventura na atividade política deveria estar preparado para sofrer acusações injustas, muitas vezes erroneamente tomadas como exercício regular do direito de expressão. Ser, ou não ser vítima de injustiça, é um fenômeno social. Ser ou não ser vítima de agressão ilegal contra a própria honra é frequentemente um fenômeno judicializado.

Ante a agressão injusta à honra de um político, a decisão judicial deverá, diz a nova lei, antes de afirmar que o político já deveria contar com isso, considerar as consequências da tolerância com o agressor. E, parece inegável que a consequência mais grave, outra vez, é afastar da atividade política os que presem a sua reputação.

O legislador não ficou no campo programático. O parágrafo único do art. 20 determina que a decisão administrativa, de controladoria, ou judicial deverá, na motivação que é sempre condição essencial de sua validade, demonstrar a necessidade e a adequação daquilo que se decide:

"Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas".

Os atos decisórios têm consequências práticas. Consequências que se projetam no caso concreto e nas políticas públicas ou formas de organização da sociedade. O que a nova lei determina é que o ato decisório seja um ato que considere por inteiro o contexto social e eleja, entre as alternativas possíveis, aquela que contribua para a construção de uma sociedade mais justa e mais eficiente na preservação e utilização de seus recursos materiais e humanos.

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1 O bom nome para o homem e a mulher,
Meu caro senhor, é a suprema joia da alma
Quem rouba minha bolsa, rouba uma ninharia,

É qualquer coisa, nada;
Era minha, será dele, tem escravizado a milhares;
Mas quem rouba meu bom nome
Tira-me algo que não o enriquece
E me empobrece deveras"

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*Celso Cintra Mori é advogado contencioso em SP.Membro do Conselho do Instituto dos Advogados de São Paulo (ex-vice-presidente). Ex-conselheiro da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo e da Secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil. Ex-presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados.

 

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