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A Declaração de Direitos da Liberdade Econômica é mais um instrumento ideológico, do que propriamente jurídico

É despropositada a tentativa de buscar regulamentar situações e limites gerais para a atuação regulatória do Estado em nome da proteção da liberdade econômica.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Atualizado em 9 de maio de 2019 16:47

A pretensa "Declaração de Direitos da Liberdade Econômica", trazida pela medida provisória 881/19, é mais uma tentativa de afirmação ideológica do Governo Bolsonaro, do que propriamente um instrumento de direito regulatório, de conteúdo jurídico relevante. As "normas" criadas para proteger a livre iniciativa e o livre exercício de atividade econômica chegam a ser inócuas na modelação do papel regulatório do Estado, diante de seu alto grau de abstração e da ausência de objeto na definição de suas diretrizes. 

Como se verifica, as normas contidas na "Declaração de Direitos da Liberdade Econômica" se inserem como normas gerais, no âmbito do Direito Econômico (art. 1º, §3º). Todavia, os direitos elencados em seu artigo 3º, como afirmadores da liberdade econômica, não se impõem coercitivamente contra o papel interventivo do Estado. Não trazem inovações normativas no Direito brasileiro, frente às nuances regulatórias de que usa o Estado atualmente, para condicionar, no seu poder de polícia administrativa, direitos de liberdade econômica, em nome da proteção a um interesse público juridicamente protegido.

Por ser uma lei geral, é sabido que normas especiais trazidas em outras leis que regulam determinados tipos de atividades econômicas, anteriores ou posteriores à edição dessa medida provisória, irão prevalecer normativamente em face dos direitos de liberdade econômica ali elencados.

É despropositada a tentativa de buscar regulamentar situações e limites gerais para a atuação regulatória do Estado em nome da proteção da liberdade econômica. A livre iniciativa é um fundamento da República, sendo que a própria Constituição, em seu art. 5º, concretizou como cláusula pétrea, o princípio da liberdade condicionada, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5º, I, da CR/88).

Em seguida, a Constituição, no art. 170, parágrafo único, resguardou ao Estado o poder da intervenção prévia, nos casos delimitados por lei. Este dispositivo constitucional é uma norma dotada de plena eficácia, independentemente de regulamentação legal: é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, exceto nos casos em que o Estado assim entenda ser necessária a prévia intervenção, o que o fará em casos específicos definidos em lei. Por isso, não é adequado juridicamente uma lei (neste caso, uma medida provisória) pretender regulamentar o mencionado fundamento constitucional, como se fosse uma norma de eficácia contida, mesmo sabendo que é o casuísmo que irá definir, através de leis específicas, as hipóteses em que a livre iniciativa será preterida, em face da licença prévia, para resguardo de um determinado interesse público. Isto é que ocorre com todas as atividades de interesse geral e outras atividades econômicas, em que há leis específicas que outorgam poderes à Administração Pública para exercício da intervenção prévia, sempre que for necessário. Por isso, entendemos inadequado pretender restringir as hipóteses de prévia intervenção apenas às situações de segurança nacional, segurança pública, sanitária ou saúde pública, tal como elencadas no §1º, do artigo 3º, dessa medida provisória.

Enfim, leis especiais, com um nível um pouco maior de concreção e com objeto mais delimitado, é que estabelecerão as hipóteses de intervenção prévia atribuídas à função administrativa, em proteção a interesses públicos mais diversos do que a segurança pública, segurança nacional ou salubridade pública, por exemplo. E tal limitação regulatória dependerá, certamente, da estratégia pública adotada por um determinado governo para atingir os objetivos da República, trazidos no artigo 3º, da Constituição, a saber, (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Assim, todas as exceções à regra geral da livre iniciativa, descritas nos incisos do artigo 3º, "proclamadores" da Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, não terão o condão jurídico de impedir outras exceções mais específicas estabelecidas em leis especiais. Tal taxatividade restritiva somente ocorreria se os direitos da liberdade econômica, trazidas nessa medida provisória, fossem elencados no ordenamento constitucional, o que não é o caso.

Em alguns casos, a pretensa Declaração de Direitos da Liberdade Econômica busca apresentar hipóteses totalmente carecedores de amparo jurídico, especialmente quando pretende resguardar a autonomia de vontade de negócios jurídicos empresariais, mesmo quando conflitantes com normas de ordem pública, aplicáveis às referidas relações. Esse é o caso, do inciso VIII, do art. 3º, de gritante inconstitucionalidade, especialmente porque a Constituição estabeleceu a seguinte premissa fundamental: o cidadão pode fazer tudo o que a lei não proíba e não pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei (art. 5º, I, da CR/88). Por isso, é violador da ordem constitucional estabelecer que a autonomia de vontade deverá prevalecer frente a normas impositivas e limitadores da liberdade de contratar.

Talvez a única inovação jurídica constante da Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, e passível de ser utilizada, trata-se do direito constante do inciso IX, do artigo 3º, que prevê o direito ao recebimento de um prazo expresso que estipulará o tempo máximo para análise de pedido de liberação de atividade econômica, findo o qual, "importará em aprovação tácita para todos os efeitos". Tratando-se de lei que preveja a necessidade de prévia intervenção da Administração Pública para liberação de uma atividade econômica, havendo prazo para apreciação do pedido, definido prévia ou posteriormente, a referida situação de "aceitação tácita" realmente necessitaria de norma legal disciplinando dessa maneira. Por isso, esse direito poderia ser utilizado para dar segurança jurídica ao início de atividades econômicas, quando diante de rotineira morosidade administrativa, salvo se, uma lei especial expressamente vedar a aceitação tácita, o que prevalecerá frente a esse dispositivo.

Enfim, a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, trazidas nessa MP 881/19, carece de técnica jurídica adequada para se impor como um marco limitador da atividade regulatória do Estado. Prestará, ao nosso ver, apenas para afirmar a ideologia liberal pretendida por este governo, o que certamente não poderá vincular as estratégias assumidas por outras gestões vindouras para fazer cumprir com as finalidades da República.

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*Murilo Melo Vale é advogado e professor de Direito Administrativo. É mestre e doutorando em Direito Administrativo pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Público. Visiting Scholar na Universidade de Coimbra, Portugal. 

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