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A contribuição de Miguel Reale

O aniversário de Miguel Reale, que hoje se comemora, é sempre uma grata oportunidade para celebrar o vigor de uma inteligência privilegiada, que se mantém atualizada no seu permanente interesse pelo Brasil e pelo mundo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2003

Atualizado às 08:37

A contribuição de Miguel Reale para a interpretação e aplicação dos princípios gerais da Constituição

 

Celso Lafer*

 

O aniversário de Miguel Reale, que hoje se comemora, é sempre uma grata oportunidade para celebrar o vigor de uma inteligência privilegiada, que se mantém atualizada no seu permanente interesse pelo Brasil e pelo mundo.

 

Miguel Reale não é, como disse no poema Confissão, "homem de uma nota só". A sua vocação é a do homem plural, aberto às múltiplas dimensões da cultura e da vida. No exercício desta vocação Reale tem a coragem intelectual de sustentar, sem ingenuidade, a capacidade sintetizadora-nomotética - do Espírito, apta a integrar, sem reducionismos simplificadores, a diversidade da experiência.

 

No campo da filosofia do direito, é no vigor desta capacidade sintetizadora que reside a originalidade do tridimensionalismo de Reale, que não é uma simples e eclética verificação da correlação entre fatos, valores e normas mas uma construção teórica de alta envergadura. Esta construção está permeada por uma visão da natureza crítica da filosofia como um sempre renovado questionamento de pressupostos; vê-se alimentada por uma original reflexão sobre o papel epistemológico da experiência e é instigada pela noção de conjetura, inspirada por Kant. Daí em Reale, o juízo conjetural da plausibilidade, ponte entre o pensar o significado do Direito e o conhecer o Direito Positivo.

 

O tema da interpretação é um dos campos de maior relevância da Teoria Geral do Direito e é muito significativa a contribuição de Miguel Reale à hermenêutica jurídica, em função da correlação por ele estabelecida entre ato normativo e ato interpretativo. Nesta breve nota, escrita para celebrar com afetuosa admiração os seus 93 anos, quero realçar a relevância do seu tridimensionalismo no trato dos princípios gerais que hoje permeiam ratione materiae a aplicação da Constituição de 1988.

 

Os princípios gerais são, como diz Alexy, mandatos de otimização. Positivam valores. Os valores, como explica Reale, se referem à realidade mas a ela não se reduzem. Por isso têm como notas objetivas, tanto a realizabilidade - ou seja, o necessário suporte da realidade - quanto a inexauribilidade. Esta aponta para o significado vetorial do dever-ser que se projeta para o futuro.

 

A função dos princípios gerais, para recorrer a Bobbio, é a de propiciar e estimular a expansão, não apenas lógica mas axiológica, do ordenamento jurídico.

 

Os princípios gerais caracterizam-se por não serem, regra geral, mutuamente excludentes no plano abstrato. Suscitam, no entanto, na sua aplicação ao caso concreto, a hipótese de antinomias e numerosas dificuldades muito distintas na sua complexidade, daquilo que ocorre na aplicação de regras específicas. Para dirimir estas dificuldades a hermenêutica jurídica contemporânea vem elaborando o método de ponderação, ao qual o STF vem dando uma contribuição própria, à luz da especificidade do Direito brasileiro. A ponderação, no seu balancing, discute a proporcionalidade e leva em conta a adequação e a necessidade. A interpretação e a aplicação dos princípios gerais é, portanto, uma atividade contextualizada, que requer o exame das circunstâncias e que exige a conciliação de princípios numa dialética de mútua-implicação e polaridade, na linha de Reale, na qual operam complementações e restrições recíprocas.

 

A ponderação é um parar para pensar os problemas postos pela experiência jurídica. Neste parar para pensar, o tridimensionalismo jurídico de Miguel Reale tem um caráter heurístico. Com efeito, o método de ponderação na interpretação e aplicação do Direito Constitucional é multifuncional. Esta multifuncionalidade pressupõe tanto o ângulo interno da Constituição (as normas inseridas no ordenamento) quanto o ângulo externo, ou seja, a concomitante abertura para os fatos sociais e os valores. Em síntese, concluindo, é na interação entre Fato, Valor e Norma, a intuição inaugural da obra jusfilosófica de Miguel Reale, consolidada pela sua reflexão sobre a experiência jurídica, que se pode encontrar uma fecunda vis directiva para a hermenêutica dos princípios gerais.

 

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*Professor da USP, ex-ministro do governo Fernando Henrique Cardoso, autor de vários livros e artigos sobre direito (principalmente direito internacional), direitos humanos, relações internacionais e teoria política, obras que foram publicadas em diversos países.

 

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