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Covid-19: Ensaio sobre algumas cegueiras

Uma pandemia se forma - o mundo fica cego - e há lutas entre grupos, há egoísmo, há violência, há histeria.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Atualizado às 12:04

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Em um breve instante, alguém é acometido de uma moléstia. O não enxergar é branco, e várias pessoas vão se infectando em progressão geométrica. Tudo é desconhecido. Há temor e há múltiplas contaminações: uma epidemia se forma. As pessoas doentes são confinadas por ações do Estado e a cegueira vai se alastrando. Ela traz consigo o desvelamento de características atávicas dos humanos. Uma pandemia se forma - o mundo fica cego - e há lutas entre grupos, há egoísmo, há violência, há histeria. No romance de José Saramago só a racionalidade, sem egoísmo, salvará a sociedade. A vida imita a arte, e a narrativa do Ensaio Sobre a Cegueira invade as calçadas do mundo.

O covid-19 gerou uma pandemia de dimensões globais e as consequências não são apenas aquelas previstas na literatura. Nessa parte do mundo observamos que a economia aponta para um colapso e, no mesmo compasso, é o momento em que os caixões se amontoam em Bérgamo podendo, igualmente, se empilhar nas entradas das comunidades faveladas brasileiras.

Paralelamente a essa dolorosa realidade, milhões de brasileiros podem ficar desempregados. A perspectiva negativista já está quantificada em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha apontando que 79% dos entrevistados acredita que a economia do Brasil será muito afetada pela propagação da doença. 

Ao medo da morte por conta do coronavírus, soma-se o temor da perda de emprego, da miséria e da fome. A pesquisa do Datafolha, publicada em 25.3.2020, aponta que mais da metade dos brasileiros (57%) acredita que sua renda diminuirá nos próximos meses. A crise financeira - para a grande maioria - virá atrelada à crise de saúde pública.

O que está no horizonte de quem pensa a sociedade hoje é o somatório de duas crises que encontram paralelo na história. A procuradora do MP de Contas de SP e professora da FGV, Elida Graziane, fez um alerta que provoca reflexão: "estamos vivendo o equivalente histórico da crise sanitária de 1918 e o equivalente econômico da crise de 1929 e essa decisão de deixar cortar vínculos empregatícios vai acelerar a crise, explodindo a convulsão social".

O RIO É UM VASTO HOSPITAL - A invasão da Influenza hespanhola - A desídia criminosa do governo.

Com estas palavras, o jornal GAZETA DE NOTÍCIAS, no Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1918 denunciava a ineficácia do poder público, a dificuldade social de reduzir o contágio e evitar mortes. 66% da população carioca contaminou-se. Cerca de 2% da população veio a óbito.

De outra banda, conforme esta análise, estamos também vivendo outra grave crise, de natureza outra, que agride empregos, estabilidade econômica e gera desabastecimento e miséria. O paralelo óbvio é o crash de 1929.

A Grande Depressão ou Recessão de 29 tem razões distintas da crise que bate à porta no rastro do coronavírus, uma vez que a origem daquela foi a grande especulação sem correspondente produtivo, e a essa que se avizinha é fruto da ausência de circulação de riqueza, em função das pessoas estarem confinadas. De todo modo, a tendência é de grande desemprego tal e qual em 1929, quando a taxa americana chegou a 27%, com queda de 70% das importações e 50% das exportações daquele país. Com a falência de milhares de empresas e bancos, a produção industrial do ocidente caiu em 1/3 e o salário médio dos que permaneceram empregados chegou a ser reduzido em 50%.

Se é correto que estamos começando a viver duas ondas de crises - na saúde pública e na economia - será necessário analisar experiências históricas, como também técnicas de enfrentamento utilizadas em outros países que padecem dos mesmos fenômenos.

Vamos lembrar que ¼ da população do mundo está em confinamento. Se outras nações estão passando pelo mesmo desalento, deve-se cotejar os fatos, consequências e medidas implementadas e avaliá-las. Seria uma espécie de distinguishing do covid-19.

A questão é: a economia mundial será ou já foi afetada, inexoravelmente. A pandemia já impactou. Naturalmente há consequências nas relações trabalhistas e também nas pequenas e médias empresas que empregam milhões de trabalhadores.

Que solução dar?

Como afirma Mailson da Nóbrega, é preciso primeiro salvar vidas, depois aumentar a circulação de valores, colocando dinheiro nas mãos dos mais vulneráveis, para, em terceiro lugar, estabelecer políticas de proteção das pequenas empresas. O mesmo raciocínio é utilizado por Armínio Fraga, que também vê a necessidade de velozmente se aplicar recursos públicos criando renda para os mais vulneráveis. Linhas de crédito mais flexíveis é a solução do economista para a salvaguarda dos direitos de todos.

Como a causa da crise é a pandemia, é preciso preservar as pequenas e médias empresas em funcionamento, mas observando que a prioridade é salvar vidas. É o que pensa Henrique Meirelles. Já para Mendonça de Barros, é preciso aumentar linhas de crédito, suspender pagamento de tributos e injetar dinheiro na economia. Também foi sugerido que parte da folha fosse paga pelo Estado, com o compromisso de que a empresa mantenha o emprego, copiando o modelo alemão. 

Isso implica a necessidade de agir sempre com razoabilidade a fim de ser preservada a função social e sobrevivência da empresa que, em última análise, visa proteger os empregos e a economia, mas mantendo o foco, mais que tudo, na injeção de dinheiro público para a sustentação do equilíbrio social e econômico, e salvar vidas!

Considerando todos esses dados e essas posições de economistas das mais variadas escolas econômicas, é imperioso voltar o olhar para o governo brasileiro e entender, efetivamente, quais foram as medidas implementadas até o momento.

Podemos observar:

(i)            prorrogação do prazo para pagamento dos tributos federais no Simples Nacional - aprovado em 18 de março de 2020, através da resolução CGSN 152/20 do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN);

(ii)           até o dia 30 de setembro de 2020, a alíquota do Imposto de Importação de mercadorias médico hospitalares necessárias ao combate da pandemia será de 0%. Foi também determinado aos órgãos aduaneiros de fiscalização, controle e licenciamento de importações que adotem tratamento prioritário para a liberação de mercadorias médico-hospitalares;

(iii)         renegociação extraordinária, até 25 de março de 2020, de débitos inscritos em dívida ativa da União (PGFN) - A portaria 7.820/20, estabeleceu condições especiais para regularização de créditos tributários inscritos em dívida ativa da União, ajuizados ou não. A mesma Portaria determina a suspensão de medidas de cobrança administrativa por parte da PGFN;

A última medida implementada pela União, com o objetivo de trazer resposta ao empresariado brasileiro, foi a MP 927/20. Polêmica, em certa medida com razão, parece ter a MP o objetivo de preservar o máximo de emprego e de postos de trabalho existentes no Brasil.

Em seu artigo 3º eis o rol de alternativas:

I - o teletrabalho;
II - a antecipação de férias individuais;
III - a concessão de férias coletivas;
IV - o aproveitamento e a antecipação de feriados;
V - o banco de horas;
VI - a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;
VII - o direcionamento do trabalhador para qualificação; 
VIII - o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.

O item mais combatido da MP 927, o inciso VII, estabelecia a suspensão do contrato de trabalho pelo prazo de 4 (quatro) meses sem qualquer contrapartida financeira para o empregado, prevendo como única obrigação do empregador o fornecimento de curso ou programa de qualificação profissional1.

O citado inciso e o artigo 18 da MP 927/20 já não estão mais em vigor vez que suspenso, quase imediatamente, pelo Governo. Logo, o impacto financeiro mais imediato trazido foi o diferimento no recolhimento do FGTS relativo às competências de março, abril e maio de 2020, em que o recolhimento poderá ser efetuado em até 6 parcelas mensais, a partir de julho/2020.

Tímida, extremamente tímida, a atuação do Estado Brasileiro até agora considerando que a ONU encaminhou ao Brasil, e aos demais países do G-20, carta alertando para o risco de uma pandemia a classificando como "apocalíptica"2.

O Presidente dos EUA, Donald Trump - em quem o Presidente Bolsonaro rotineiramente se espelha - juntamente com Senadores dos partidos Republicano e Democrata chegaram na madrugada da quarta-feira (25) a um acordo sobre um plano federal de estímulos para injetar US$ 2 trilhões de dólares para aliviar os impactos do coronavírus na economia do país.

Trata-se do maior programa de transferência de renda da história. O valor equivale a aproximadamente R$ 10,2 trilhões de reais, o que representa um montante maior do que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em valores correntes, que em 2019 totalizou R$ 7,3 trilhões.

Entre outras medidas, o plano americano prevê remuneração direta à maioria dos americanos, ampliação de benefícios de seguro-desemprego, dinheiro para estados e um programa para pequenas empresas poderem remunerar funcionários que precisam ficar em casa, para conter o contágio do coronavírus no país.

Impulsionado pela declaração do presidente americano, segundo a qual os EUA deveriam retomar os postos de trabalho muito em breve, o Presidente Bolsonaro reverberou, na noite do dia 24/3 - em pronunciamento deslocado da posição dos governadores e das orientações da OMS - que os brasileiros deveriam, imediatamente, voltar ao trabalho e ignorar o que voltou a chamar, temerosa e irresponsavelmente, de uma "gripezinha".

E este pronunciamento ocorre no exato momento em que a Itália já usa drones com som para perseguir nas ruas quem desobedece ao confinamento, paralelamente à aplicação de multas.

É caso de dizer: Os brasileiros jamais fugiram a luta, "capitão"! O que o povo quer e precisa saber é qual será a atuação do Estado brasileiro. Qual é o "plano" para a economia do Brasil?

Se a exigência for apenas a de que um filho seu não fuja à luta; que os soldados saiam à paisana para o campo de batalha, há oportuna e imperiosa necessidade de fazer referência e louvar o brilhante artigo publicado pelo Ministro do STJ, Rogério Schietti, intitulado "A Futura Responsabilização Pelas Mortes Da Pandemia"3 que, ao final, encerra uma assertiva clara ou uma premonição "Por sua vez, será inevitável cobrar, com o rigor das leis, nacionais ou internacionais, a conta de quem se tenha colocado como um consciente entrave para a minoração dos efeitos dolorosos de que todos iremos padecer".

O exercício do múnus público implica, também, em responsabilidades daí inerentes.

Na escolha das nossas opções, faz-se mister observar o que vem acontecendo em muitos outros países. A Itália experimentou o mesmo movimento que o Brasil agora deseja fazer.

Há um mês, ainda em fevereiro, quando as estatísticas italianas registravam 17 mortos, o governo italiano decidiu mudar a estratégia de combate ao covid-19. À época, o país contava com 650 infectados, em sua maioria, nas regiões da Lombardia e Veneto. O que fez o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte? revogou o isolamento social, principalmente no que diz respeito à frequência nas escolas e reuniões festivas, ao argumento que esta proibição "contribuía para gerar o caos".

Na Lombardia, os bares que haviam sido fechados por precaução foram reabertos dois dias depois. Quando as mortes começaram a subir exponencialmente, houve reversão da estratégia decretando-se quarentena obrigatória.

Era tarde demais!

Na semana passada, com imensa tristeza, a Itália percebeu-se outra vez no epicentro da pandemia na Europa, e hoje conta com mais de 7.500 mortes, superando o numero de óbitos na China.

Apenas nos últimos três dias, depois de duas semanas da quarentena obrigatória iniciada em 9 de março, o número de novos casos da doença começou a crescer a um ritmo menor, abaixo de 10% de novos casos por dia. Em 24 de março de 2020, exatamente no dia em que o Governo brasileiro apontava para o recuo das medidas de isolamento social, o primeiro-ministro italiano pediu que todos os países fossem rigorosos na luta contra a covid-19.

Todos os dados apontam para a seriedade do enfrentamento no campo da saúde. Destaca-se, por exemplo, a quantidade de leitos hospitalares ao redor do mundo. A média do planeta é 3,2 leitos para cada 1.000 habitantes e o Brasil está abaixo dela, de acordo com a OMS4.

A Itália tem 60% mais leitos de hospital para cada mil habitantes do que o Brasil, e mesmo assim sofre, sofre muito com a epidemia do coronavírus. O número do Brasil, vale dizer, diminuiu 12,6% em dez anos. Caiu de 2,23, em 2010, para 1,95.

A omissão no caso dessa pandemia tem o custo de uma ou milhares de vidas. Vidas têm valor inestimável.

Nesse momento de crise, mais uma vez o Congresso Brasileiro toma para si a responsabilidade. Já se tem notícia de uma PEC, de autoria do Deputado Ricardo Izar (Progressista/SP) que "Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispondo sobre medidas emergenciais de financiamento do combate à pandemia internacional do coronavírus", prevendo redução, temporária, de 20% (vinte por cento) de jornada de trabalho dos ocupantes de cargos eletivos, dos membros do Ministério Público e dos ocupantes de cargos comissionados de todos os Poderes em 20%, com adequação proporcional dos subsídios e vencimentos à nova carga horária e de um projeto de lei, de autoria do Deputado Carlos Sampaio (PSDB/SP), no mesmo caminho.

De fato, se há perspectiva de violenta crise que se espraia dentre os trabalhadores do setor privado, nada mais natural do que a repartição do necessário ônus entre todos.

A OCDE, por meio de seu Secretário-Geral, Angel Gurría, assinala para a necessidade de implementação de medidas de recuperação mundial e convoca países a atuarem de forma coordenada em uma espécie de Plano Marshall.

Agora é a hora da responsabilidade!

Não amanhã!

Não em uma semana.

Ontem é tarde demais.

A Cegueira deliberada não pode ser executada, porque a vida não é um ensaio!

Uma vida é vida em excesso, Capitão!

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1 Deve-se ressaltar que a legislação trabalhista já previa o lay off que é um recurso de suspensão de contrato de trabalho. No entanto, o que diferencia os institutos é que a MP não previa o pagamento de bolsa qualificação pelo FAT (que paga um valor médio dos últimos 3 salários recebidos pelo trabalhador e nenhuma parcela pode ser inferior ao salário mínimo, hoje de R$ 1.045,00).

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/03/24/em-carta-a-bolsonaro-e-g-20-onu-fala-em-risco-de-pandemia-apocaliptica.htm

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-futura-responsabilizacao-pelas-mortes-da-pandemia/

https://super.abril.com.br/saude/grafico-a-quantidade-de-leitos-hospitalares-ao-redor-do-mundo/ 

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t*Anna Graziella Santana Neiva Costa é advogada, pós-graduada em Direito Constitucional e em Ciência Jurídico-Políticas; MBA em Direito Tributário; pós-graduanda em Direito Eleitoral e membro da Comissão Especial Eleitoral do Conselho Federal da OAB; mestranda em Ciências Jurídico-Políticas.

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