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A crise de uma geração

As medidas do Congresso para combater a pandemia.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Atualizado às 10:42

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É impossível deixar de notar a ironia: ao enfrentar um vírus que não podemos ver, compreendemos o quanto as coisas que não são visíveis são as que realmente importam. O afastamento social, apesar de isolar fisicamente, aproxima as pessoas de maneira surpreendente e impõe uma série de desafios às instituições democráticas. O tempo de resposta delas à crise será um termômetro das mudanças que veremos. Abaixo, detalho alguns dos desafios e examino as premissas de algumas ações já anunciadas.

Nenhuma pessoa viva assistiu a abalo tão severo e súbito no mercado e nas relações comerciais. Setores inteiros da economia completamente paralisados, por tempo indeterminado. Apesar da crise, a maior parte da sociedade reconhece a quarentena, mesmo amarga, como o único remédio a alcance enquanto não se desenvolve uma vacina1.

A apreensão com o futuro, antes de impedir qualquer ação, nos impele a tomar iniciativas, devendo cada um desempenhar a parte que lhe cabe na esfera respectiva de atuações. É necessário que as instituições se movam na velocidade que a sociedade precisa.

Nós advogados aprendemos cedo que nenhuma lei, por mais perfeita e acabada que possa ser, é capaz de prever todas as infinitas possibilidades e situações concretas que podem suceder. A realidade é sempre muito mais rica. Ninguém, ou quase ninguém2, conseguiria antecipar o cenário que se descortina.

A situação é extraordinária, e como tal deve ser tratada3. Cabe ao Congresso Nacional papel fundamental nesta combinação desafiadora de acontecimentos.  Deve ser rápido no agir, mas com responsabilidade: cada dia a curva inclina para cima4. Precisa atuar pontual e transitoriamente: a rigidez de certas normas não é por acaso, embora a flexibilização seja tentadora, justifica-se no curto, mas é prejudicial no longo prazo.

Desde que adaptadas à nossa realidade, pode-se tomar como modelo medidas legislativas adotadas em outros países que estão alguns passos à nossa frente no combate à pandemia5.

É importante que o Congresso crie uma espécie de blindagem recíproca, nas palavras precisas do Min. Bruno Dantas, do TCU, pois se é justificável que durante a crise podemos agir de forma excepcional, é preciso haver espaço para a readequação legislativa quando for retomado o curso da normalidade.

Vários projetos estão em andamento no Senado e na Câmara, e alguns já podem ser destacados pela relevância e precisão na forma como tratam estas circunstâncias excepcionais.

No que diz respeito às regulações no âmbito do Direito Privado, foi apresentado dia 30/3 o Projeto de Lei 1.179/20 do Senado Federal6, de autoria do Senador Antonio Anastasia. Trata-se de projeto baseado em iniciativa do Min. Dias Toffoli que, juntamente com o Min. Antônio Carlos Ferreira, do STJ, e o Professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., coordenaram um grupo de juristas que elaboraram, em curtíssimo espaço de tempo, um anteprojeto para regular relações transitórias de Direito Privado.

Verifica-se como bastante adequadas algumas premissas básicas adotadas no projeto: (1) não modifica nenhuma norma em vigor, prevendo apenas suspensão momentânea da eficácia de algumas, ora até 31 de outubro, ora até 31 de dezembro, de modo a garantir a blindagem acima referida - ao assim convencionar, evitam-se jabutis na nova legislação, o que já é grande prenúncio ; (2) não estabelece efeitos retroativos, fixando como marco inicial a declaração do estado de calamidade pública (20/3/20), reconhecido através do Decreto Legislativo 6/20; (3) distingue relações paritárias daquelas assimétricas; (4) não busca antecipar a resolução de eventuais litígios que possam surgir decorrentes da imprevisibilidade, ficando estes a cargo do Judiciário, que encontrará a solução na aplicação dos art. 478 a 480 do Código Civil; e, por fim, (5) deixa claro que não haverá moratória ou diferimento de obrigações no âmbito do Direito Privado7, o que representaria verdadeiro congelamento da economia, já extremamente tensionada em razão da quarentena.

Este talvez o grande mérito do Projeto: não flertar com a suspensão das obrigações no âmbito das relações privadas, o que causaria a verdadeira paralisação da economia brasileira. O modelo adotado na Alemanha8, que permite o não cumprimento de obrigações, é certo, não funcionaria aqui, já que a pandemia seria utilizada como desculpa a justificar indistintamente, em qualquer situação, o não cumprimento de obrigações9. Não se pretende dizer que determinadas situações não poderão justificar a aplicação da teoria da imprevisão, mas isto será dirimido, caso a caso, no Judiciário, aplicando-se para tanto os art. 478 a 480 do Código Civil10. De qualquer forma, o Projeto excetua a alta da inflação e a variação cambial das hipóteses de discussão dos referidos artigos.

O Projeto pode e será naturalmente aprimorado no âmbito de discussão das duas casas legislativas, e certamente alguns outros tópicos importantes poderão ser acrescentados. Percebe-se, por exemplo, que o Projeto não tratou de questões processuais, sabendo-se que o Judiciário está com prazos suspensos e, consequentemente, com sua funcionalidade comprometida. Seria possível, por exemplo, permitir a realização de mediações online, por meio de empresas a serem autorizadas pelo CNJ, como  forma de desafogar o Judiciário, ao mesmo tempo em que novos recursos seriam aportados na economia de forma rápida, e sem contato físico entre as partes.

Ainda na esfera das relações privadas, deve ser discutido tema mais sensível, relacionado às relações laborais, que é a possibilidade de suspensão parcial do contrato de trabalho, assegurando-se um pagamento mínimo e um período de estabilidade posterior, especialmente para aquelas empresas que se viram forçadas a encerrar suas atividades por decisão do governo. Este tópico polêmico já havia sido tratado em Medida Provisória pelo presidente Jair Bolsonaro, mas foi revogado pelo próprio. Talvez o Congresso veja necessário rediscutir o tema e permitir a flexibilização, assegurando garantias mínimas ao trabalhador. 

O Congresso já demonstrou agilidade na aprovação relâmpago da lei que instituiu a Renda Mínima Emergencial, que criou benefícios  para trabalhadores informais de baixa renda.

No âmbito do Direito Público, dentre as medidas emergenciais mais urgentes a serem adotadas, e que parece ser consenso entre tributaristas e empresários, é o diferimento do pagamento de tributos11, especialmente aqueles que incidem sobre as relações de trabalho. O Estado é o segurador em última instância da sociedade, é quem tem capacidade de suportar os ônus em situações de limite. Isso deve ser feito já. Com a economia paralisada, a folga nas obrigações tributárias permitiria que fossem honrados os compromissos das relações entre particulares, salvaguardando empregos. Não se defende absolutamente uma moratória, mas a postergação do vencimento dos tributos, para posterior pagamento de forma parcelada. Tal medida pode ser realizada através de Projeto de Lei simples.

Por outro lado, sabe-se que volta a pauta a discussão sobre criação de novos tributos. A tributação de grandes fortunas e sobre a distribuição de dividendos é discussão antiga, que sempre esteve no horizonte, e pode ganhar força diante das circunstâncias. Sem entrar na polêmica sobre a justiça fiscal de medidas, é preciso fazer uma advertência: de nada adiantará ao Congresso dar com uma mão e tirar com a outra: diferir temporariamente o pagamento de tributos e ao mesmo tempo criar outras fontes de tributação.

Através de Projeto de Emenda à Constituição, apelidada PEC da Guerra, o Comitê de Gestão da Crise será regulamentado, fixando-se suas competências, seu escopo e os limites de sua atuação, bem como criando formas e instrumentos de fiscalização e controle (competência originária seria do STJ para avaliar a legalidade dos atos do Comitê). A alteração deverá constar no âmbito das ADCTs (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), a fim de garantir a temporariedade.

Outra alteração que será discutida, também através de Projeto de Emenda Constitucional, podendo ser uma emenda específica ou inserida no âmbito da descrita no parágrafo anterior, é a que possibilita ao Banco Central a compra de ativos financeiros, públicos ou privados, bem como títulos do Tesouro. Tal medida, baseada na autorização dada ao FED americano, visa injetar recursos na economia de forma direta, sem custo de intermediação por outras instituições financeiras. É iniciativa que, se aprovada, mudará o paradigma dos limites de intervenção do Banco Central na economia, devendo o legislador ter o cuidado de estabelecer que se trata de medida excepcional, flexibilizada apenas durante o período de exceção da crise.      

O espírito criativo do legislador não deve se limitar a estas medidas. Pode por exemplo criar medidas tributárias de estímulo de setores específicos da indústria hospitalar. A um só tempo estimularia  a economia e fomentaria a produção de material extremamente necessário para a contenção da doença.

Não se pretende que as medidas descritas acima anulem ou compensem totalmente o declínio da economia causado pelo coronavírus.  As coisas não vão continuar como eram. Está ao alcance do legislador encontrar meios para aliviar os efeitos deletérios sobre a economia e, também, de preparar o caminho para uma retomada, quando ela for possível.

Vivemos a crise que vai definir nossa geração.  Se o valor do futuro é o que podemos esperar dele, as iniciativas legislativas servem não só para mitigar os problemas do presente, mas para aumentar nossa expectativa quanto a dias melhores. Tanto quanto injeção de recursos na economia, a sociedade precisa de estímulo para acreditar que será capaz de atravessar a crise.

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1 Cientistas estimam que levará algo entre 12 e 18 meses para que uma vacina seja desenvolvida, testada, produzida em larga escala, distribuída e aplicada em toda população mundial. A primeira vacina está sendo testada apenas 63 dias após o sequenciamento genético do vírus (clique aqui).

2 Sempre genial, em 2015,  Bill Gates profetizou, em apenas 8 minutos, tudo que está nos acontecendo agora. 23 milhões de pessoas visualizaram (clique aqui).

3 O filósofo francês Edgar Morín: "O inesperado surpreende-nos. É que nos instalamos de maneira segura em nossas teorias e idéias, e estas não têm estrutura para acolher o novo. Entretanto, o novo brota sem parar. Não podemos jamais prever como se apresentará, mas deve-se esperar sua chegada, ou seja, esperar o inesperado. E, quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e idéias, em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo" 

4 A Câmara aprovou o Sistema de Deliberação Remota, regulamentando a possibilidade de votações à distância, essencial para conferir rapidez nas votações evitando as aglomerações..

5 Um dos mais profundos estudiosos de Direito Civil do Brasil, o Professor Otávio Luiz Rodrigues Junior, iniciou uma série de artigos sobre Direito comparado no que diz respeito à legislação de combate ao coronavírus.

6 Clique aqui. A íntegra pode ser acessada no seguinte link: https://static.poder360.com.br/2020/03/projeto-lei-1179-30mar2020.pdf.

7 Com exceção da possibilidade de diferimento do pagamento do aluguel residencial, que poderá ser pago parceladamente em 5 prestações, a partir de 31 de outubro de 2020, medida que pela controvérsia pode eventualmente ser rejeitada.

8 Na Alemanha foi adotada a possibilidade de moratória das obrigações privadas, conforme o Prof. Otávio Luiz indicou em seu artigo:

"As obrigações pecuniárias, decorrentes de contratos firmados anteriormente a 8 de março de 2020, poderão se sujeitar às seguintes regras: (i) o devedor que alegar a impossibilidade temporária de prestação, poderá dilatar o termo para cumprimento das obrigações até 30 de setembro de 2020; (ii) desde que em razão de causas relacionadas à pandemia. Neste caso, deve-se cumprir um dos seguintes requisitos: (a) no caso de pessoas naturais, o comprometimento dos meios necessários à subsistência do devedor, seus dependentes; (b) no caso de pessoas jurídicas, o pagamento implique a não conservação da viabilidade econômica de suas atividades. Ademais, cumpre ressaltar que não é realizada distinção entre obrigações pecuniárias e não-pecuniárias no texto, sendo possível presumir que tais regras serão aplicadas também a obrigações não-pecuniárias.

Essa possibilidade excepcional de diferimento do termo das prestações será excepcionada se: (a) gerar prejuízos intoleráveis ao credor; (b) conflite com as regras de Direito Internacional aplicáveis ao comércio de mercadorias, o que se pressupõe aqui a Convenção de Viena para compra e venda de mercadorias. Presente a hipótese (a), o devedor passará a poder exercer a pretensão de resolução do contrato sem incorrer em multas ou quaisquer outras penalidades."

9 Mesmo sem a disposição legal, é alta a probabilidade de que isso ocorrerá. Avaliações extraoficiais apontam para mais de 300 ações judiciais com fundamento na pandemia, propostas com intuito de discutir relações contratuais anteriores.

10 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

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t*Caio Cesar Vieira Rocha é advogado sócio-fundador do escritório Rocha, Marinho E Sales Advogados.

 

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