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O impacto das normas jurídicas: Medidas precipitadas podem agravar a crise

É preciso salvar vidas e, para isso, são tomadas medidas duríssimas que, no Brasil, felizmente contam com o apoio da grande maioria da população.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Atualizado às 12:38

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"Para todo problema complexo existe uma solução clara, simples e errada"
H.L. Mencken 

A enorme crise mundial causada pela pandemia da covid-19 traz para cada indivíduo, para toda a sociedade e para todos os governos um enorme desafio. É preciso salvar vidas e, para isso, são tomadas medidas duríssimas que, no Brasil, felizmente contam com o apoio da grande maioria da população. Essas medidas, embora absolutamente necessárias, já têm e terão cada vez mais um enorme impacto na economia. O mundo inteiro espera que, em paralelo ao problema de saúde pública, viverá uma enorme recessão, que causará desemprego e desalento, aprofundando problemas sociais graves e, evidentemente, gerando mais problemas de saúde.

No Brasil, esse quadro é agravado pelo momento econômico por que passamos (em que estávamos dando início à retomada do crescimento), pelas questões sociais, pela insuficiência e não universalização dos serviços públicos, pelo desemprego, pela falta de reservas das pessoas e das empresas, pela absoluta ausência de recursos do Estado, em todos os níveis da federação, e pela falta de unidade e diálogo em busca de soluções adequadas e coordenadas.

Preocupa que, diante dos enormes desafios que enfrentamos, algumas medidas legislativas e regulatórias, tão simples quanto equivocadas, sejam adotadas para solucionar problemas complexos, o que poderá aprofundar as dificuldades que, inevitavelmente, todos passaremos, ao desorganizar ainda mais a economia e as cadeias produtivas e, até mesmo, ao comprometer a prestação dos serviços públicos. Medidas inadequadas podem tornar mais difícil a superação dos problemas econômicos, quando a pandemia passar.

Vejam duas questões complicadíssimas.

A primeira delas: a alta acentuada de alguns preços no período de crise.

É inegável que o momento atual pode incentivar ações oportunistas de alguns fornecedores de produtos e serviços, com aumento considerável de seus preços, especialmente quando relacionados a produtos que se tornaram mais requisitados como, por exemplo, o famoso álcool gel, ou máscaras de proteção. Também é inegável que os mecanismos normais do mercado podem ser insuficientes para reequilibrar os preços durante a crise. De fato, o que se espera, segundo as regras normais da lei da oferta e da procura, é que o aumento de preços acentuado incentive a entrada de outros fornecedores no mercado, aumentando a oferta e, consequentemente, atendendo a demanda crescente e trazendo os preços de volta a um ponto de equilíbrio. Sendo a crise muito aguda, pode não haver tempo para essa entrada de novos fornecedores, e os preços tendem a continuar subindo por um bom tempo.

Qual a solução para isso? "Criminalizar" o fornecimento de certos produtos, ainda que essenciais, sujeitando todos os comerciantes a um controle do preço praticado, a uma fiscalização permanente? Parece uma solução óbvia, fácil. Mas qual a sua consequência? Medidas mal calibradas podem ser um desestímulo à produção e comercialização de tais produtos, que faltarão nos mercados regulares, e tenderão a ser objeto de um mercado paralelo, marginal e mais restrito. O efeito pode ser pior que o problema.

E quanto aos demais preços? É certo que esse momento excepcional levará a um grande rearranjo nos mercados, com a elevação acentuada de alguns preços e a queda de outros. Segundo nota publicada na imprensa, o preço da gasolina baixou muito, mas ainda assim a demanda caiu em quase 50%. Por quê? Porque as pessoas estão em casa e seus carros estão parados. Não há demanda. Por outro lado, alguns serviços serão mais requisitados (serviços de entrega, por exemplo). É necessário evitar esse rearranjo dos preços ou isso significa que o mecanismo de mercado está funcionando adequadamente? E, caso se entenda que alguma medida deve ser tomada, para evitar certos abusos, qual será ela?

De acordo com algumas leis estaduais já editadas às pressas e certos projetos de lei, os preços de produtos e serviços não podem ser majorados sem justa causa, durante a crise sanitária. Em outras palavras, congelamento. Qual a consequência dessas medidas? No mundo todo, em todos os tempos, o congelamento de preços teve apenas uma consequência certa: escassez de oferta, desabastecimento. As cadeias produtivas se rompem, os produtos não chegam aos consumidores. Para alguns, surgem mercados paralelos, marginais, e com preços mais elevados. Há também projetos legislativos prevendo reduções compulsórias de preços de alguns serviços, de forma generalizada e independentemente dos contratos em vigor e dos custos fixos dos prestadores desses serviços. Ao final da crise, alguns talvez não sobrevivam. Em ambos os casos, o efeito pode ser pior que o problema.

E há ainda um segundo problema grave e complicado no horizonte. Como farão as pessoas que não tenham dinheiro para pagar as contas de luz, gás, telefone? Ficarão sem acesso aos serviços públicos? Para atender a essa mais do que justificável preocupação, têm sido adotadas ou propostas medidas impedindo, de forma linear, o corte de serviços públicos para consumidores inadimplentes. Qual a consequência dessas medidas? A receita das concessionárias de serviços públicos tenderá a zero. Como elas farão para pagar seus empregados, fornecedores? Se a distribuidora de gás ou luz elétrica não tem nenhuma receita, como ela pagará aos produtores de gás e energia? Se os produtores não receberem, como produzirão? Será que a cadeia produtiva que permite a prestação de serviços essenciais será rompida? Qual será o custo no futuro mais ou menos distante? Produtores e concessionárias quebrados, falhas nos sistemas. O efeito pode ser pior que o problema.

E, cabe a pergunta, será mesmo que todos os consumidores estão em situação idêntica e precisam dessa moratória? É verdade que há muitos desempregados e desalentados, é verdade que há uma quantidade enorme de pessoas que vive na economia informal, recebendo hoje o que comerá amanhã, é verdade que há prestadores de serviços e comerciantes que serão privados de suas receitas essenciais. É verdade que essa situação tende a piorar com a crise. Mas também é verdade que a fonte de receitas de muitas pessoas não é direta e imediatamente afetada pela crise. Seja na iniciativa privada, seja no serviço público, seja na ativa ou em regime de aposentadoria, muitas pessoas ainda têm alguma receita. E terão que escolher, no período de crise, o que fazer com seus escassos recursos. Será que é bom para a sociedade que se incentive o não pagamento generalizado exatamente dos serviços públicos, que precisarão ser prestados sempre, pois são essenciais?

Assim como as questões acima, há diversas outras que estão sendo debatidas e são objeto de leis, decretos e projetos de lei. Algumas propostas têm amparo na Constituição, outras não, o que deve ser visto caso a caso. Há certamente boas propostas e medidas urgentes a serem tomadas. Mas é necessário algum cuidado, é imprescindível alguma reflexão.

Apesar da situação excepcional por que passa todo o mundo, é importante ter cautela. Medidas simples e precipitadas podem até ser populares à primeira vista, mas são em alguns casos capazes de agravar os problemas econômicos e até mesmo dificultar a retomada da vida normal, quando o tsunami passar.

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t*Pedro Paulo Salles Cristofaro é sócio de Chediak, Lopes da Costa, Cristofaro, Simões Advogados e professor da PUC-Rio.

 

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