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Aspectos práticos da aplicação de caso fortuito e força maior na pandemia de COVID-19: reflexões internacionais recentes

Marina Ferro e Silva

Ante um cenário tão complexo e repentino, que produz consequências jurídicas a cada minuto e em efeito cascata, a tarefa que se impõe aos advogados de negócio de se antecipar impactos ao extenso feixe de relações contratuais de um negócio pode parecer impossível. Algumas atitudes, entretanto, podem auxiliar neste complicado exercício.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Atualizado às 15:36

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O cenário global surrealista desenhado nas últimas semanas pela pandemia do COVID-19 vem fazendo com que, sem prévio aviso ou possibilidade de preparo, muitas pessoas físicas e jurídicas se encontrem impossibilitadas de cumprir obrigações anteriormente contraídas com outrem antes que esta situação dantesca sequer pudesse ser imaginada. A miríade dos impactos causados tende ao infinito, já que a pandemia se dá em assustadora escala global e, de forma democrática, atinge todas as nações, populações e mercados, gerando sucessivos  descumprimentos. Nesta situação, a imediata e quase instintiva reação que todos nós, juristas, temos é invocar o outrora negligenciado instituto do caso fortuito ou da força maior como exceção imperativa ao princípio do pacta sunt servanda.

Entretanto, longe de constituírem uma panaceia para a liberação generalizada do cumprimento das obrigações contratuais, estes institutos merecem importantes matizações em sua aplicação, especialmente em relações transfronteiriças. Atualmente radicada na Espanha, um dos países mais impactados pela pandemia e pelas medidas restritivas que se fizeram necessárias para sua contenção, divido aqui algumas questões práticas e reflexões próprias sobre questões enfrentadas nas últimas semanas na Espanha e em outros países.

Sem a pretensão de prescrever receitas e muito menos de esgotar a discussão sobre temas de tamanha complexidade, compartilho como convite ao debate alguns questionamentos jurídicos contratuais que se fizeram pertinentes ao empresariado nas últimas semanas especialmente em setores industriais afetados por restrições à produção, sem prejuízo das imprescindíveis análises conjunturais e da legislação aplicável a cada caso.

1. Requisitos para a aplicabilidade de caso fortuito e força maior

Os institutos de caso fortuito e força maior, usualmente tratados de maneira indistinta pela legislação europeia e por alguns países de common law, configuram exceções ao princípio regente das relações contratuais e, portanto, tendem a ser aplicados de maneira muito excepcional e restritiva, não só pelos tribunais mas também em sede arbitral. Assim, é prudente advertir que a pandemia e as restrições governamentais que sejam impostas para sua contenção ou supressão não resultam per se na automática aplicabilidade destes institutos, devendo a análise ser realizada caso a caso.

Não só no Brasil é requerida a configuração de alguns elementos comuns para sua aplicação, como a absoluta impossibilidade de cumprimento da obrigação claramente causada pelo alegado evento imprevisível e/ou inevitável. 

Aqui, duas distinções importantes. Em primeiro lugar, o cumprimento da prestação contratual deverá resultar impossível, seja total ou parcialmente, e não apenas ser dificultado. Em um exemplo simples, a inundação de um centro de distribuição de materiais para construção não necessariamente torna a entrega do produto impossível a um cliente, se um outro centro de distribuição puder realizar a prestação, ainda que com algum impacto não substancial no prazo e na forma que sejam expressamente aceitos pelo cliente. Da mesma maneira, faz-se imprescindível evidenciar o nexo causal entre o alegado evento de força maior e a impossibilidade de cumprimento. Por tal motivo, dificilmente o devedor moroso poderá invocar estes institutos para sustentar o continuado ou agravado descumprimento de seus compromissos.

Em geral, ainda é válido, se não absolutamente necessário, que a parte que pleiteia a anistia temporária de seus compromissos comprove ter realizado todos os máximos esforços a seu alcance para diminuir a onerosidade destes eventos e a disrupção causada às relações contratuais de que é parte. A postura proativa de mitigar os efeitos e conter os danos do evento de força maior é pressuposta na atuação do contratante de boa-fé, que, presume-se, tem por intenção cumprir as obrigações que validamente assumiu frente a outrem. 

Vale dizer que muitas vezes a cláusula contratual de força maior, geralmente importada de minutas-modelo, pode afastar as disposições da legislação aplicável a respeito destes eventos,  tornando-se única lei entre as partes a respeito do tema. Neste sentido, há de se tomar cuidado com cláusulas que permitem uma interpretação restritiva dos eventos passíveis de invocação, bem como os prazos de notificação e requisitos para a suspensão contratual.

2. Condição rebus sic stantibus

Outro mecanismo menos referido nestas situações, mas de similar utilidade, é a cláusula rebus sic stantibus, a qual permite o reequilíbrio das prestações contratuais por fato superveniente que torne o contrato excessivamente oneroso para uma das partes. 

Conhecida no Brasil como teoria da imprevisão, este mecanismo já outrora sacramentado pela jurisprudência foi finalmente positivado no direito nacional pelos artigos 317 e 478 e seguintes do Código Civil. De maneira similar, a cláusula rebus sic stantibus é também admitida em alguma medida pela lei ou jurisprudência de grande parte dos países ocidentais, tanto em civil law como em common law.

A cláusula pode apresentar diferentes requisitos, mas geralmente exige uma desproporção absoluta e a onerosidade excessiva e superveniente das prestações para uma das partes, decorrentes de evento imprevisível no momento da contratação e que tampouco seja característico do risco empresário da parte afetada. Este reequilíbrio contratual tende a ser o remédio mais adequado para contemplar os efeitos de uma força maior conjuntural em contratos de médio e longo prazo e/ou que impliquem prestações sucessivas, como contratos de aluguel e de fornecimento.

Importante notar que, conforme os efeitos e as restrições aplicadas para supressão da pandemia se estendam no tempo, a cláusula rebus sic stantibus tende a ter maior aplicabilidade do que a força maior, por diminuir impactos imediatos em obrigações no curto prazo, assim como a relevância que estes impactos possam tomar em contratos de maior duração. Adicionalmente, caso sejam aplicáveis leis de países europeus que consolidem caso fortuito e força maior em uma mesma figura jurídica, com o passar do tempo a situação perde a característica de novidade  e, portanto, de imprevisibilidade, que pode ser requerida de maneira cumulativa com a inevitabilidade para configuração da força maior.

3. Aplicabilidade da força maior a obrigações pecuniárias, cláusulas de take-or-pay e garantias financeiras

Alguns tribunais, como os espanhóis, podem não considerar prestações pecuniárias como suscetíveis da aplicação de caso fortuito e força maior, porquanto fungíveis e não diretamente impedidas por eventos imprevisíveis e  ncontroláveis. Da mesma forma, resulta complexo estabelecer o nexo causal de uma situação de insolvência acelerada por um contexto de força maior, se as condições no momento imediatamente anterior já apontavam para este desfecho. 

Também é controvertida a aplicação da força maior nas obrigações de take-or-pay. Neste caso, o pagamento é a prestação alternativa a que se compromete uma parte por não receber ou consumir um determinado volume ou quantia mínima. Como em geral estas cláusulas não restringem sua aplicabilidade a causas determinadas para que este consumo ou recebimento não ocorra, entende-se que se dão de forma objetiva e, portanto, fazem parte do risco assumido pela parte que se obriga a pagar um mínimo, especialmente se a legislação aplicável questiona a incidência da força maior em obrigações pecuniárias. Não obstante, há argumentos a favor da imprevisível oneração da parte impedida de consumir ou receber: se a parte que usufruiria da prestação está absolutamente impossibilitada de consumi-la, não deveria pagar por tanto. Pode interessar, neste espectro, explorar até onde vai o risco empresário assumido pela parte afetada ao aceitar o take-or-pay: contemplaria este risco, por exemplo, um cenário de pandemia e de total interrupção de atividades por semanas ou meses? Faz-se necessária a análise profunda da doutrina como da jurisprudência aplicáveis à obrigação.

Por fim, merecem análise específica as garantias financeiras e bancárias, como fianças e avais. De qualquer forma, tem sentido que as garantias com caráter acessório tenham a mesma sorte da obrigação principal afetada por evento de força maior ou caso fortuito, ao passo que aquelas que gozam de autonomia em relação à obrigação principal que lhes deu origem permanecem válidas e exigíveis independentemente da situação.

4. Sugestões práticas

Ante um cenário tão complexo e repentino, que produz consequências jurídicas a cada minuto e em efeito cascata, a tarefa que se impõe aos advogados de negócio de se antecipar impactos ao extenso feixe de relações contratuais de um negócio pode parecer impossível. Algumas atitudes, entretanto, podem auxiliar neste complicado exercício:

  • Mapear as relações contratuais que sejam essenciais para a atividade da companhia, tanto em relação a fornecimentos como clientela. Neste sentido, vale classificá-las junto a líderes de negócio por alguns critérios: impacto imediato ou de médio/longo prazo, alto ou baixo, se o cumprimento contratual será dificultado ou impossibilitado, se há contrato escrito ou não, se o negócio será a parte afetada ou a parte que deverá tolerar o descumprimento, ou mesmo se o descumprimento da prestação é potencial ou já consumado.

Esta classificação permitirá um rápido diagnóstico e planejamento da estratégia jurídica de ação: invocar força maior ou caso fortuito, buscar um acordo para suavizar prestações, questionar, se alegados, os impactos do evento no cumprimento pela outra parte, ou até mesmo preparar-se para um eventual litígio futuro.

  • Analisar cuidadosamente os contratos formalizados para as transações mapeadas. Em se tratando de contratos com algum aspecto internacional, a primeira análise é a da lei aplicável, que nem sempre vem expressa ou é clara,  specialmente em relações formadas por múltiplos documentos. Em segundo lugar, verificar se existe cláusula de caso fortuito e força maior e, em caso afirmativo, sua interpretação conjunta com a lei aplicável: é excludente ou cumulativa a previsões genéricas da lei correspondente? Recomendável, ainda, ver se tem caráter simplesmente enunciativo ou exaustivo de eventos listados e se a pandemia neles se encaixa, além de prazos para notificação e rescisão. Outras cláusulas de imediato interesse são as de notificações, garantias, gastos derivados do contrato, responsabilidade e indenizações.

Identificados os principais riscos, é recomendável traçar o potencial "efeito dominó", como por exemplo seu  impacto em contratos com instituições financeiras sujeitos a quebra de garantias (covenants) e aceleração do vencimento, bem como apólices de seguro e cobertura correspondente e sua capacidade de mitigar em alguma medida efeitos derivados da situação.

  • Informar aos empregados em linha de frente como lidar com estas situações, dando ferramentas para a atuação rápida e eficaz. Cabe explicar que a aplicação das exceções ao cumprimento contratual, ainda que por um evento que afete a todos os países e negócios, não pode e não deve ser indiscriminada nem generalizada. Entre os públicos-alvo da mensagem, certamente vale incluir personagens chave de equipes de compras/suprimentos, serviço ao cliente e até mesmo operadores.

Também importante ressaltar a estas equipes a necessidade da atuação proativa da empresa em mitigar estes impactos ao máximo, além de deixar registros internos que comprovem estes esforços e eventuais obstáculos supervenientes ao cumprimento de obrigações contratuais (como, por exemplo, um caminhão de concreto que não pode realizar uma entrega porque a obra do cliente em questão não tem autorização pertinente para funcionar durante restrições de quarentena).

  • Considerar com cautela a emissão de comunicados gerais a clientes e fornecedores. Especialmente pelo caráter genérico destas comunicações, convém a análise cuidadosa de seu conteúdo, lembrando sempre que não  ecessariamente terão efeito de comunicação de força maior, especialmente se houver contrato formalizado entre as partes.
  • Incluir disposições específicas sobre a pandemia em contratos que sejam formalizados a partir deste momento. Ainda que a imprevisibilidade não seja necessariamente um item essencial à invocação de força maior, custa ao raciocínio lógico que o empresário probo e diligente se furte a considerar esta patente e inescapável condição em suas futuras contratações. Importante direcionar no contrato possíveis falhas de cumprimento ocasionadas por atuais e futuras restrições, ainda que o horizonte temporal do documento seja a médio prazo. 

Acima de tudo, o exercício de análise deste contexto sobre a dinâmica das obrigações exige um raciocínio transversal, que de nenhuma maneira prescinde, mas ao contrário exige, de forma central, a consulta à legislação aplicável, precedentes, práticas de negócio, particularidades de determinados mercados, especialmente regulados, e mais do que nada, a verdadeira intenção da parte contratante: qual o ônus que se pode ou que convém suportar antes de apelar  ao descumprimento? Felizmente, em tragédias de tão ampla repercussão, a solidariedade humana tende a despontar e facilitar renegociações, acordos e composições. Oxalá também seja essa a sorte das relações de negócio na atual conjuntura, as quais serão tão brutalmente fragilizadas com as extremas e necessárias medidas impostas para o resguardo do bem maior, a saúde pública.

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*Marina Ferro e Silva é advogada no Brasil pela Universidade de São Paulo e na Espanha pela Universidad de León. Especializada em Ciências Jurídicas Avançadas na Universidad Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha), com trajetória em departamentos jurídicos de multinacionais.

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