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O (quase) avanço forçado da telemedicina/telessaúde provocado pela pandemia

O uso da telemedicina vem crescendo em todo o mundo, acompanhando o desenvolvimento de novas tecnologias.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Atualizado em 11 de abril de 2020 10:29

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É natural que algo tão inovador, como uma consulta por vídeo conferência com o seu médico, seja algo que causa estranheza e diversas dúvidas, principalmente a respeito dos tipos de consultas que são permitidas deste modo em relação às diferentes áreas da saúde. Como seria feito o diagnóstico sem que o paciente esteja no mesmo cômodo que o médico? E como ficam os outros profissionais da saúde, como psicólogas, fisioterapeutas e fonoaudiólogos?

E se te dissessem que a telemedicina não é tão recente assim? Na verdade, desde a década de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a importância dessa área médica, em especial para casos em que a distância é um fator crítico para a oferta de serviços ligados à saúde.

Para deixar bem claro, telemedicina é uma área da telessaúde que oferece suporte diagnóstico de forma remota, permitindo a interpretação de exames e a emissão de laudos médicos e receitas para medicamentos à distância. Por meio de uma combinação de equipamentos digitais, softwares, plataforma, internet e especialistas qualificados, é possível compartilhar as informações em uma plataforma de telemedicina.

Os primeiros registros oficiais da telemedicina remetem ao século XIX, na Europa, quando a transmissão de informações médicas ganhou um novo aliado: o telégrafo. Na década de 80 a telemedicina já era utilizada na Europa, especialmente em países que apresentam inverno rigoroso, no intuito de possibilitar o acesso a informações e laudos médicos nos dias de neve. Com o aumento da população idosa nas nações europeias, a tecnologia ganhou ainda mais relevância, facilitando serviços de atendimento a distância, inclusive durante emergências.

Hoje, o uso da telemedicina vem crescendo em todo o mundo, acompanhando o desenvolvimento de novas tecnologias, o que deve ter sido um poderoso recurso para os países europeus que mais sofreram com o vírus. Por outro lado, no Brasil, em 2005 a União encomendou para o SUS o "Projeto de Telemática e Telemedicina" em apoio à Atenção Primária no Brasil, uma ação que usou a telemedicina para ajudar na capacitação de profissionais de 900 pontos de atenção primária no país. Mas, desde então, o progresso nesta área caminha lentamente.

A partir de agora, perceba a verdade na afirmação do escritor e publicitário, William Feather - de que, "se não avançarmos junto com o mundo e nos adaptarmos, o mundo nos forçará a fazê-lo".

Recentemente, em fevereiro do ano passado, houve uma tentativa, por parte do Conselho Federal de Medicina (CFM), de modernizar o conceito de telemedicina e ampliar os serviços ofertados através dessa especialidade.1

Entretanto, a norma causou polêmica e acabou, portanto, revogada após alguns dias para revisão. Enquanto isso, ficamos com legislações restritas e atrasadas, como a resolução CFM 1.643 de 2002 e uma portaria do Ministério da Saúde de 2011, 2.546/11.

Um ano depois, e não estamos preparados. O mundo é acometido por uma pandemia em razão de um vírus que se propaga quase triplicando o número de casos por contaminado, que impregna no ferro, no tecido por horas e é igualmente transmitido pela aproximação de um metro e meio.

O cenário pandêmico tem alavancado a utilização de tecnologias em diversas áreas e com a área da saúde não seria diferente.

O covid-19 possui um grau de contágio como nunca antes visto e coloca em risco grave a vida de cidadãos que dependem de tratamento contínuo, como quimioterapia e hemodiálise, de medicamentos e terapia para evolução neurocognitiva, sendo aqueles, em muitos casos, pacientes de risco em relação ao covid-19.

Foi com essa preocupação que no dia 31 de março de 2020, foi aprovada a PL 696/2020, para que haja o fomento à telemedicina e telessaúde, nesse momento frágil em que vivemos, detalhando as orientações para garantir o mínimo de ordem na relação médico x paciente.

Parecia bom demais pra ser verdade, até que o projeto de lei circulou pelo legislativo, foi enxugado e alguns desses avanços que o momento exige, foram barrados. Como pro exemplo, a inclusão apenas da classe dos médicos como profissionais aptos a realizarem a teleconsulta, excluindo as demais áreas da saúde.

Nesse caso, como ficariam os portadores de TEA (transtorno do espectro autista), por exemplo, e outros pacientes que necessitam de fonoaudióloga, psicoterapia e fisioterapeuta?

Apesar de bem intencionado, com o viés de evitar contaminação e desafogar o ambiente dos hospitais e clínicas, o decreto final merece duras críticas, em relação ao "quase avanço". Contudo, esse não é o intuito deste artigo (pelo menos não a princípio). 

É importante chamar atenção para as mudanças que, de fato, vão impactar a realidade dos pacientes - enquanto durar a crise - e não "chover no molhado", como dizem popularmente:

  1. Serão válidas as receitas médicas apresentadas em suporte digital, como celulares, e-mail, desde que possuam assinatura eletrônica ou digitalizada do médicodispensando a apresentação física. Agora, aquele paciente que faz uso contínuo de medicamentos, terá meios para evitar uma interrupção que pode causar um retrocesso no tratamento ou prejudicar sua saúde e convívio social;
  2. O médico deverá informar o paciente sobre as limitações que cercam o uso da telemedicina e esclarecer a forma de cobrança dos honorários; 
  3. Atribui a tarefa de regulamentar a telemedicina, para o Conselho Federal de Medicina, mas só quando o cenário voltar ao normal, conforme art. 6º do decreto oriundo da PL mencionada, assinado em 31.3.2020, pelo Senado Federal.2 

De todo modo, uma visão mais otimista deixa uma impressão de que as coisas estão começando a mudar, mas ainda parece que a quebra dos paradigmas será realizada da forma mais dura, através das consequências que a população mais carente vai sofrer. E infelizmente, há um distanciamento tão grande entre o povo e o legislativo, que uma reação tardia rumo a uma evolução que precisamos, pode ser tarde demais pra muitos.

Não fomentar o uso da telessaúde em outras áreas da saúde, é admitir que o papel do psicoterapeuta ou fonoaudiólogo é menos importante no cuidado de certos quadros de debilidade, o que não é verdade. Perceba que, no tratamento do autismo, por exemplo, é o neurologista que faz o laudo e passa a conduta, mas quem é responsável pela evolução do paciente em um árduo trabalho que não pode ser interrompido e dura anos, não são os médicos, mas sim os outros profissionais da saúde.

Neste exato momento, existem cerca de 2 milhões3 de autistas no Brasil que tiveram seus atendimentos suspensos com o confinamento e começam a regredir nos quesitos, sociais, emocionais de comunicação e processo cognitivo.

Apenas os mais privilegiados que dispõem de condições financeiras para arcar com clínicas de atendimento especializadas de ponta, é que puderam manter tratamento por meio da teleconsulta. Essas clínicas utilizam de sistema de comunicação de áudio e vídeo, que auxiliado dos pais ou responsáveis, manejam dar continuidade às atividades e exercícios que possibilitam gerar o feedback do especialista à distância.

Por parte da ANS, agência que regula a atividade dos planos de saúde, houve a recomendação às operadoras, em 30.3.2020, no seu site, para que providenciem as adequações necessárias em suas redes para disponibilizarem atendimento remoto aos beneficiários. Todavia, não é o que se observa na prática, já que os olhos não estão sendo voltados ao atendimento interdisciplinar dos pacientes.

Apesar da louvável tentativa dos parlamentares que deram início à PL 696/2020, a telessaúde enfrenta desafios que restringem seu pleno desenvolvimento. 

Entre eles, visões sistêmicas que envolvem tanto as perspectivas social e econômica da saúde, como as diferentes dimensões da criação e do reforço de vantagens competitivas - industrial, tecnológica, comércio exterior, recursos humanos, entre outras -, e levem em conta a forte interdependência e complementaridade entre as diferentes atividades no âmbito do sistema produtivo, e não o foco em atividades específicas.

Ademais, deve-se considerar que a telemedicina tem uma natureza interdisciplinar, isto é, seu desenvolvimento demanda diversas áreas do conhecimentomédica, TIC, microeletrônica, informática, telecomunicações, equipamentos, entre outras -, o que reforça a necessidade de uma perspectiva sistêmica e de ações conjuntas e coordenadas entre diferentes instâncias decisórias, com a participação da indústria, da academia, de instituições científicas e tecnológicas, de associações de classe, entre outros agentes relevantes no processo de inovação.

Com efeito, o aspecto primordial da telessaúde é o seu potencial de democratizar o acesso aos serviços de saúde, quebrando a barreira da distância física, representando, do ponto de vista social, uma atividade essencial, em especial agora que enfrentamosnovos desafios nunca antes confrontados em um país imenso em território, como o Brasil.

Por fim, é certo de que deveremos contar com o apoio das instituições e veículos de mídia para seja cobrado o prometido avanço na telessaúde, como um todo - não só a telemedicina - e a população esteja ciente das limitações, dos recursos que já estão disponíveis, ajudando-as a se prepararem para as dificuldades em decorrência do covid-19, e de eventuais pandemias que possam voltar a assolar o planeta, possibilidade que não se descarta.

Desta vez, foi quase!

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1 Resolução 2.227/18 aprovava a realização de teleconsultas - consultas entre médico e paciente a distância.

2 Telemedicina

3 https://www.usp.br/espacoaberto/?materia=um-retrato-do-autismo-no-brasil

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*Lucas R. Dohmen é advogado sócio no escritório Abrahão & Dohmen Advogados.

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