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Breves notas sobre o PL 1.179/20: o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) em virtude da pandemia de coronavírus

Embora louvável o cuidado de criar regras transitórias para o enfrentamento das questões que suscitam dúvidas, de maneira a endereçar problemas urgentes e a um só tempo assegurar a estabilidade do sistema de direito privado do ordenamento brasileiro, cabem algumas ponderações que buscam equilibrar a emergência e a prudência.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Atualizado em 14 de abril de 2020 15:53

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As dramáticas consequências da pandemia do coronavírus (a covid-19) já se fazem sentir na sociedade brasileira, e, a exemplo do que tem ocorrido em outros países, os órgãos públicos estão atuando em diversas frentes, em medidas de contenção de danos. No que se refere às relações jurídicas de direito privado, o Senado aprovou em 3/4/20, o texto substitutivo ao PL 1.179/20apresentado pela relatora, senadora Simone Tebet, com objetivo de endereçar especificamente questões civis e comerciais afetadas em virtude da pandemia. Espera-se que o texto seja votado em breve na Câmara de Deputados.

Embora louvável o cuidado de criar regras transitórias para o enfrentamento das questões que suscitam dúvidas, de maneira a endereçar problemas urgentes e a um só tempo assegurar a estabilidade do sistema de direito privado do ordenamento brasileiro, cabem algumas ponderações que buscam equilibrar a emergência e a prudência.

Diante de um cenário de tantas incertezas, é forçoso reconhecer que o Direito, embora tenha sua parcela importante a contribuir no apaziguamento das questões, é impotente para solução de todos os problemas. Assim como a medicina não consegue, ao menos por ora, dar resposta eficaz a todos os doentes da covid-19, ou a Economia consegue impedir o gravíssimo empobrecimento da população e os prejuízos sofridos por empreendedores com o interrompimento abrupto de suas atividades, o Direito não dará conta sozinho, de antever todos os efeitos de uma pandemia que se encontra ainda em fase incipiente e assegurar imediatamente paz social no curso das relações privadas.

É imprescindível a conscientização das pessoas quanto ao seu próprio papel para a prevenção e solução dos conflitos em sociedade, seja pela predisposição a (re)negociar, sempre, seja pela consciência de que devem cumprir todos seus deveres legais ou contratuais (ao menos na medida de suas possibilidades), de forma a contribuir para o curso normal dos fatos  da vida, ou o mais próximo possível.

Mais que nunca, importante agir com espírito de solidariedade, valor fundamental expresso em nosso quadro constitucional (artigo 3º, I, CR). Para além do dever de concretização deste valor, o agir a ele orientado também se afigura remédio poderoso de humanidade para estes tempos sombrios.  Se não é capaz de impedir o aumento da carga viral do Sars-Cov-2, sem dúvida a solidariedade impede a propagação da virulência nas interações sociais, prevenindo eficazmente a hiperbolização de conflitos, e sua posterior judicialização.

Para além dos limites sanitários e econômicos, a pandemia testa, em alguma medida, a solidez de todo o sistema jurídico, das instituições, e de sua capacidade de reagir em momentos de crise dentro de nossa moldura constitucional. Se muitas ações emergenciais são necessárias, inclusive a exigir iniciativa também do Legislativo, de outro lado é preciso ter cuidado para que não sejam aprovadas normas que, no bem intencionado intuito de resolver alguns problemas, na prática criem outros (ou, ainda que não criem, apenas troquem seis por meia dúzia, e contribuam na pletora de informações com as quais todos temos que lidar nos tempos atuais). Não só o Legislativo deve estar atento a este risco, mas também o intérprete, no momento da aplicação das normas, que passam a integrar um sistema unitário e que deve ter coerência. A depender das soluções propostas, criações açodadas de novas categorias jurídicas podem até mesmo agravar o cenário de incerteza provocado pela pandemia. Dentro deste espírito, comentam-se alguns pontos do PL 1.179.

Em primeiro lugar, é louvável a iniciativa de estabelecer regra sobre prescrição e decadência, como previsto no artigo 3º do PL, que considera os prazos impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência da lei e até 30 de outubro de 2020. Se, para algumas situações, como na disciplina das obrigações, por exemplo, a lei brasileira já prevê algumas saídas que orientam as partes (por exemplo, por meio dos artigos 317, 393, 478 e 479 do CC, referentes, respectivamente, à teoria da imprevisão, à força maior, e à onerosidade excessiva, cada qual que pode, preenchidos os pressupostos específicos, ser utilizada por partes contratantes em determinadas situações de conflito), de outro lado, para outras hipóteses, há de fato lacuna legal, como em matéria de prescrição e decadência.  Estes institutos visam a segurança jurídica, e em circunstâncias normais exige dos interessados prontidão e ação, sob pena de perda da possibilidade de exercício de direitos. 

Todavia, neste momento em que, inclusive em cumprimento de um dever de isolamento social, as decisões e ações ficaram obstadas praticamente desde que reconhecido o estado de calamidade pública, é importante que os prazos que correm contra os titulares de direitos subjetivos violados não os impeçam de agir futuramente, como medida de justiça2. Para que a solução legal que tenta corrigir este problema não seja fonte de conflitos de interpretação futura, foi importante o substitutivo apontar uma data certa para encerramento do impedimento ou suspensão, a saber, 30/10/20, mas também ressalvar que hipóteses específicas de suspensão e impedimento não ficam prejudicadas, conforme previsto no § 1º.

Os artigos 6º e 7º tratam da resilição, resolução e revisão de contratos e são particularmente problemáticos ao modificarem institutos já consagrados nas relações privadas. A pretensão do legislador parece ser tornar previsíveis as relações privadas em tempos incertos e conferir segurança ao contratante, garantindo-lhe que as condições contratadas não serão modificadas com o agravamento dos efeitos da pandemia. Entretanto, algumas modificações podem não fazer sentido, especialmente nas hipóteses em que o Direito posto já traz resposta considerando eventos de imprevisão, e ao trazer novas respostas, pode haver dúvida, afinal, sobre qual solução cabe em cada caso.

O artigo 6º procura criar um marco temporal para os efeitos da pandemia e deseja impedir que retroajam para relações que antecederam seu início. Na justificativa ao PL, consigna-se que "os efeitos da pandemia equivalem ao caso fortuito ou de força maior, mas não se aproveitam a obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia". Naturalmente, a pandemia não pode ser invocada como razão de descumprimento anterior à sua própria ocorrência, mas a este resultado interpretativo já seria possível chegar com as regras vigentes do CC, independente do PL 1.179/20.

De outro lado, o artigo 6º olvida-se das relações de trato sucessivo, ou mesmo negociações que já se encontravam em fase avançada e apenas seriam formalizadas por agora, além dos contratos que envolvem certa aleatoriedade nas prestações como por exemplo contratos vinculados à moeda estrangeira como alguns casos de leasing e swap, compra e venda de safra futura, aluguéis cujo percentual incide no faturamento (caso das lojas de shopping, cujo funcionamento foi obstado para conter os avanços do vírus). Todos esses contratos, ainda que firmados antes do reconhecimento da pandemia no início do mês de março, serão gravemente afetados por ela, possivelmente além da previsibilidade do maior dos pessimistas.

Assim, a verificação de qualquer desequilíbrio e eventual remediação precisa ocorrer em atenção à correspectividade das prestações e considerando parâmetros como o momento em que firmado o contrato ou mesmo as tratativas, o contexto e a natureza da prestação em relação ao atual momento de crise.

Mesmo para negócios jurídicos firmados após o reconhecimento da pandemia pela OMS e em que já sentidos alguns efeitos (ainda que mitigados) da crise, é possível, ainda que excepcionalmente, cogitar de imprevisibilidade. Naturalmente, torna-se mais difícil (mas não impossível) que se alegue força maior ou onerosidade excessiva com o agravamento da crise, que já é previsto por especialistas. Sem prejuízo, a norma estabelecer um marco temporal absoluto e sem se atentar às particularidades que alguns contratos possuem pode ser contraproducente, inclusive por induzir à indisposição para (re)negociação, este o verdadeiro instrumento de prevenção de litígios nas atuais circunstâncias.

Para solução de eventuais conflitos resultantes de desequilíbrio, inadimplemento, e outras questões relacionadas à crise, sobretudo nas relações de natureza econômica, importante apoiar-se na experiência. A professora Paula Forgioni defende que o mercado constrói seus padrões de conduta, por meio de jogadas anteriores de seus agentes que formam uma "memória de experiência". Essa memória é conhecida pelo agente econômico no momento em que contrata. Quando o empresário atua no mercado, sabe-se de antemão quais os riscos e consequências do descumprimento da norma, sem ter de infringi-la. No mercado, aprende-se com a experiência dos outros3.

Os efeitos do Coronovírus já eram sentidos na China desde Dezembro de 2019 e ainda assim projeta-se um crescimento no PIB do país nesse ano. Dificilmente pode-se dizer o mesmo para a atividade econômica dos países que atualmente são devastados pela pandemia. Pode-se falar que a reclusão atualmente vivida, a interrupção dos transportes públicos, o encerramento forçado de diversas atividades econômicas tidas como não essenciais era previsível? E, ainda que em alguma media previsível, por quanto tempo e quais os efeitos, exatamente? Quem deve arcar com a impossibilidade de cumprimento da prestação decorrente das medidas de precaução adotadas? São questões que o PL não soluciona, e em verdade nem poderia, pois só poderão ser respondidas na análise de cada caso concreto. A legislação é emergencial mas também deve ser prudente. As normas gerais já vigoram, e há muito tempo, em nosso país. As exceções sempre ocorrerão, e devem contar com a prudência do intérprete, na junção da norma abstrata aos fatos da vida, aí sim fazendo surgir a norma concreta.

O artigo 7º por sua vez afasta peremptoriamente as alegações de aumento da inflação, variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário como fatores imprevisíveis, mas nada mais são que efeitos da pandemia, tida por muitos como imprevisível.

A exemplo, a alta cambial como elemento que desequilibra um contrato já foi objeto de diversos precedentes do STJ. Inclusive, no início dos anos 90 havia um posicionamento de que configuraria caso fortuito, ou melhor, nos termos do PL, "evento imprevisível". Munido desse precedente, um contratante que se sentiu prejudicado por nova alta do dólar em 1998 interpôs recurso especial4 para revisar contrato de compra e venda de safra futura. A conclusão do STJ foi que justamente porque houve disparada cambial no início da década, novo aumento seria previsível, notadamente por conta de guerras que ocorriam na época. O "aprender com a experiência dos outros" ressaltado por Paula Forgioni mostrou-se relevante inclusive para (des)configurar o fortuito naquele caso concreto.

Se, por um lado, o precedente do STJ é importante para apontar na direção de que oportunismos não devem ser tolerados, que contratantes não se apoiem no argumento da pandemia para descumprir contratos, muitos deles reconhecidamente de risco, em que houve alocação consciente pelas partes, por outro lado, parece-nos arriscada uma previsão geral dizendo de antemão que em toda e qualquer hipótese relacionada à pandemia de coronavírus não se poderá invocar a imprevisibilidade em qualquer caso que se relacione com aumento da inflação, variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário.  Ainda que o §1º faça expressa ressalva que a regra não se aplica a relações consumeristas ou aos contratos de locação, pode haver muito mais exceções do que somente aquelas previstas pelo legislador.

Sobre o artigo 8º, parece demonstrar preocupação com a circulação de pessoas e mercadorias em tempos de pandemia. Impedir a troca ou devolução de produtos entregues a domicílio significará menor circulação de consumidores para devolver os produtos ou dos entregadores para retirarem os produtos objeto do arrependimento. Também demonstra uma preocupação do legislador em manter as companhias com fluxo de caixa, ao menos durante o período transitório da pandemia.  Entretanto, tal como previsto no PL original, que suspendia o direito de arrependimento em qualquer hipótese, a manutenção da atividade produtiva se daria às custas do consumidor, parte notadamente vulnerável e protegida pelo CDC.

Justamente porque estará em isolamento social, atendendo às orientações da Organização Munidial de Saúde e de demais autoridades, é que o consumidor fará com mais frequência compras longe do estabelecimento comercial. Pelo artigo 49 do CDC, o consumidor tem o direito de arrependimento, sem necessidade de justificativa, em até 7 dias. A regra não é absoluta e já comporta exceções, como no caso de produtos personalizados ou bens consumíveis, como alimentos.  Portanto, o substitutivo ao PL acertou ao apenas deixar clara a regra que já existia e impedia o arrependimento em relação a bens perecíveis e de consumo imediato.

No que se refere à ressalva feita com relação a medicamentos, porém, se considerada a data de vencimento, cabe a ponderação de que nem sempre o produto será perecível a ponto de obstar o direito de arrependimento, salvo se exigido o acondicionamento sob condições especiais (por exemplo, de temperatura, em que o fornecedor não tem controle sobre os meios de preservação do produto, ainda que responda por sua qualidade), ou na venda de produtos controlados (sujeitos a entrega de prescrições médicas).

Como última breve nota em contribuição que não se pretende de forma alguma exaustiva às reflexões sobre o PL 1.179, registre-se o apoio à iniciativa de retirar a eficácia, em matéria concorrencial, como previsto no artigo 17 do substitutivo ao PL, desde 20/2/20 e até 30/10/20 ou enquanto durar o estado de calamidade pública (em princípio até 31/12/20, conforme o Decreto-legislativo nº 6, de 20/03/2020), a aplicação do inciso IV do art. 90 da lei 12.529/11, para permitir a celebração de contratos associativos, consórcios ou joint ventures independentemente de submissão ou aprovação prévia pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Sem embargo à expressa menção também dos incisos XV e XVII, esta pareceu-nos desnecessária, pois os próprios dispositivos (específicos sobre a venda de mercadorias ou prestação de serviços abaixo do preço de custo, bem como para cessão parcial ou total das atividades da empresa) ressalvam a possibilidade de ação dos agentes econômicos mediante justificativa.

É também oportuna a previsão contida no § 1º de referido artigo 17 do substitutivo, com relação às demais infrações do artigo 36 da lei 12.529/11, de que qualquer apreciação por órgão competente (portanto o Cade ou o Judiciário), a partir de 20 de março de 2020, deverá considerar as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia. Tal previsão contribui para que, na prática, algumas sanções fiquem suspensas, de forma a dar mais liberdade de ação aos agentes econômicos, inclusive para que possam cooperar entre si, com vistas ao atendimento das necessidades da escassez de serviços e produtos, evitando o grande risco de desabastecimento.  

Cria-se um parâmetro para que no futuro certas ações que sob condições normais seriam interpretadas como de conluio, não sejam consideradas como ilícito concorrencial em razão da natureza crítica do período da pandemia.  Ressalve-se, contudo, que as alterações legais não podem ser interpretadas como isenção legal ao direito antitruste, e permissão de qualquer prática sem preocupação com as consequências concorrenciais, mas sim que o intérprete deve considerar as circunstâncias especiais em que estamos vivendo.  Justamente neste espírito, foi incluído no substitutivo um §2º ao texto original do PL, que estabelece que a suspensão da eficácia do inciso IV do art. 90 da lei de Defesa da Concorrência não impede a possibilidade de análise posterior do ato de concentração, bem como da apuração de infração à ordem econômica na forma do art. 36, para avaliação de necessidade e legitimidade dos atos ao combate ou à mitigação das consequências decorrentes da pandemia do coronavírus. Evita-se, assim, que as condições excepcionais que estão sendo criadas para enfrentamento da covid-19 e suas consequências sejam fonte de práticas oportunistas.

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1 Acesse aqui.

2 Para uma referência mais detalhada do tema, remete-se a artigo de autoria de  Aline de Miranda Valverde Terra e Daniel Bucar: acesse aqui.

3 FORGIONI, Paula A. Teoria Geral dos Contratos Empresariais, 2. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, pp. 101/102.

4 STJ. REsp 803.481/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/06/2007, DJ 01/08/2007, p. 462.

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*Micaela Barros Barcelos Fernandes é doutoranda em Direito Civil, mestre em Direito da Empresa e Atividades Econômicas, mestre em Direito Internacional e da Integração Econômica, pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa. Sócia do escritório Demori Claudino Advogados e membro das Comissões de Direito Civil e de Direito da Concorrência da OAB - Seção RJ.

*Danielle Fernandes Bouças é mestre em Direito Civil, pós-graduada em Direito Civil, pós-Graduada em Direito Processual pela Universidade Cândido Mendes. Advogada associada de Bumachar Advogados.

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