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Ensino à distância não pode ser o 'bode expiatório' da falta de qualidade do Direito

A vida virtual trouxe consigo a desconfiança, a insegurança e a sensação de que nós poderíamos ser substituídos por um holograma daquilo que nós batalhamos e nos esforçamos para ser.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Atualizado às 09:02

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A pandemia trouxe à rotina diversas práticas que eram consideradas, em outros tempos, medidas mais do que excepcionais. No âmbito pessoal, o happy hour invadiu as plataformas digitais, cada pessoa construiu a sua própria academia dentro de casa e uma ida rápida ao mercado virou uma aventura que, para muitos, confesso, simula um episódio de The Walking Dead.

Já no cenário profissional - e, aqui, coloco o chapéu de advogado - marcar uma reunião virou sinônimo de compartilhar o link para acesso à sala virtual do Zoom, Meets, Teams ou qualquer outra plataforma que lhe agrade mais - o cardápio é sim, grande -. ao passo que o escritório passou a conviver em simbiose com a mesa da cozinha, com o quarto ou com a sala. Luxo é ter um cômodo para chamar de escritório. Isso sem contar que participações esporádicas de membros da família em reuniões consideradas "sigilosas" ou mesmo intervenções caninas integram com certa frequência o mundo dos negócios.

A realidade é outra e foi uma necessidade alterá-la. Nem poderia ser diferente ao olharmos para o ensino jurídico, sendo justamente nessa fatia importante da nossa vida, que gostaria de dividir algumas reflexões com o leitor. Troco, assim, de chapéu e passo a falar como professor-advogado, com os inúmeros significados que podemos dar para essa expressão.

Na porta de entrada da terceira década da minha vida e com a oportunidade de sustentar a posição de professor de direito empresarial de uma das mais tradicionais faculdades de direito do Estado de São Paulo, esboço um sorriso ao relembrar a minha trajetória acadêmica e docente. Olhando para frente, vislumbro um futuro com aprendizado, diversos alunos, discussões de alto nível e, ao que tudo indica, com muito YouTube. O distanciamento social nos trouxe, definitivamente, o ensino à distância (EAD) ou ensino remoto, a depender da modalidade, para a nossa vida de professor. Quem imaginaria isso em um segmento que, no passado, os professores eram chamados de "lentes" pelo fato de, literalmente, lerem em sala de aula o conteúdo a ser ministrado.

A vida virtual trouxe consigo a desconfiança, a insegurança e a sensação de que nós poderíamos ser substituídos por um holograma daquilo que nós batalhamos e nos esforçamos para ser. O receio é legítimo e nem poderia ser diferente, sendo que me destino, aqui, apenas aos verdadeiros professores e não aos que aderem ao tão mencionado "pacto da mediocridade" - aquele que é como "O Jogo", criado na Inglaterra no início dos anos 2000, que não pode ser mencionado ou mesmo explicado, já que pensar nele implicaria a imediata derrota.

Temos a preocupação de nos aprofundarmos nas questões materiais que discutiremos com os alunos, refletir sobre metodologias de ensino participativas - ou o chamado "Aprendizado Centrado no Aluno" (ACA), como preferem alguns -, promover os melhores métodos de avaliação para termos a certeza de que os alunos estão, de fato, aprendendo. Mas nunca pensamos que teríamos que ser youtubers! E, vejam, falo isso como um aventureiro e recém-criador de um canal, que se viu surpreso ao ser questionado recentemente sobre seu conhecimento sobre marketing digital, sendo que nem pude utilizar a desculpa da idade para justificar que não estava entendendo nada. Sim, é verdade a parte de que estou na porta dos trinta anos.

Temos que nos afastar desse receio indevido do desconhecido e ter claro que a plataforma ou o veículo de entrega do processo de ensino e aprendizagem não pode ser confundido com a real aferição dos objetivos de aprendizagem. Enquanto o método a ser utilizado em sala de aula é uma escolha do professor, é justamente com este último - a real aferição dos objetivos de aprendizagem, que remete ao chamado Assurance of Learning (AOL) - que deveríamos nos preocupar, sendo a discussão mais antiga e a sua importância muito maior.

Vivemos em uma realidade marcada por algo em torno de 2.000 cursos de direito no Brasil, com um aumento quantitativo exponencial que não é acompanhado, vergonhosamente, por um aprimoramento qualitativo. Vivemos em uma realidade em que grande parte dos nossos professores não são capazes de identificar quais são os reais objetivos de aprendizagem - de forma técnica e adequada - de suas respectivas disciplinas ou mesmo qual o verdadeiro objetivo do curso de direito, se deve ter uma abordagem reflexiva ou profissionalizante, dentre tantos outros debates de maior profundidade. Vivemos em uma realidade em que o "selo de aprovação" de uma entidade profissional é etiquetado -  pasmem! - como prova de qualidade de ensino.

Não deveríamos dar tanta atenção aos problemas do ensino virtual - que são diversos, é verdade - se isso significar mascarar e deixar de lado a discussão dos outros tantos defeitos do nosso ensino jurídico. E sinto que isso está acontecendo: muitas das insuficiências que têm sido discutidas sobre essa era remota são, na verdade, as mesmas deficiências que historicamente são vivenciadas pela nossa área cotidianamente: falta de preparo e interesse dos alunos, qualidade das exposições dos professores que estão aquém do esperado, falta de preocupação social do conteúdo ministrado, ensino voltado exclusivamente para a aprovação em exames profissionais. Esses não são problemas (exclusivos) do EAD ou ensino remoto! E utilizar essa modalidade de ensino como bode expiatório é reconhecer que estamos protagonizando "O Jogo".

Se, de todo modo, questionarem-me diretamente sobre a compatibilidade do ensino jurídico com a modalidade EAD ou remota não poderia titubear para responder. Superadas as questões de infraestrutura essenciais que deem amparo para a implementação das metodologias de aprendizagem escolhidas e eleitas pelo professor como adequadas para o seu uso, tais como acesso à internet de qualidade que possibilite a consulta de materiais e o acompanhamento de eventuais conteúdos "ao vivo", não vejo qualquer incompatibilidade.

Ora, o ensino remoto ou EAD é composto por inúmeras modalidades, a exemplo de aulas gravadas; discussão em fóruns de discussões; material de leitura e exercícios; vídeo aulas ao vivo (ou simplesmente lives); simulações online; uso de plataformas para debates em grupo; podcasts etc. Não tenho dúvidas de que os objetivos de aprendizagem - desde que devidamente determinados - podem ser tranquilamente alcançados por meio dessas ferramentas de ensino.

Isso significa que sou defensor assíduo de métodos não presenciais? Longe disso.

Se o questionamento for sobre a equivalência ou igualdade do cenário presencial ou remoto, seria obrigado a dizer que a experiência universitária vai muito além do conteúdo partilhado pelo docente em sala de aula, caso o real intuito da faculdade de direito, sobretudo na graduação, seja a formação de agentes transformadores da realidade social.

Sabemos bem que muitas das experiências de aprendizagem que temos decorrem de conversas nos corredores, manifestações estudantis no espaço universitário, sem contar os debates que refletem a vida real e deixam Tício, Mévio e Caio onde realmente deveriam estar: como notícias históricas e que não deveriam, definitivamente, orientar o ensino jurídico em pleno Século XXI. Mas, não podemos falar sobre isso, já que, se o fizermos, perderíamos "O Jogo". Mas que jogo é esse mesmo?

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*Pedro A. L. Ramunno é professor de Direito Empresarial da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e criador do canal Ramunno Academy. 

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