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MP 966: O outro lado da norma - A proteção do agente público honesto pode salvar vidas

Qualquer agente público ou privado que cometer crimes contra a Administração continuará sofrendo as mesmas consequências e não terá nenhum benefício advindo da medida provisória.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Atualizado em 20 de maio de 2020 10:39

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O Poder Executivo Federal editou a medida provisória 966, de 14 de maio de 2020, que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19. 

Pelo texto da norma, o agente público somente poderá ser responsabilizado civil e administrativamente se agir ou se omitir com dolo ou erro grosseiro na prática de atos relacionados com o enfrentamento da emergência de saúde pública da pandemia e no combate aos efeitos econômicos e sociais dela decorrentes. 

Além disso, afirma que o agente público não responderá automaticamente por erro decorrente de opinião técnica que tiver adotado como razões para a prática do ato, bem assim que o "mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso" não implica em sua responsabilização.

Complementa afirmando que erro grosseiro é aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave e que, para sua aferição, se deverá levar em conta os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; a complexidade da matéria e das atribuições exercidas por ele; a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão e, por fim, o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento a pandemia e das suas consequências, inclusive as econômicas.

Não tardou para que se precipitassem críticas à medida provisória, afirmando-se ora se tratar de oportunismo, ora de uma "anistia prévia", ora de algum ato com desvio de finalidade sobre o qual recairia até mesmo vícios de constitucionalidade, o que não nos parece correto.

Primeiro, a medida provisória não afastou qualquer responsabilidade de agentes públicos na esfera criminal, tampouco - nem poderia - exonerou o presidente da República de responder por eventual crime de responsabilidade previsto no artigo 85 da Constituição Federal e na lei 1.079/50.

Qualquer agente público ou privado que cometer crimes contra a Administração continuará sofrendo as mesmas consequências e não terá nenhum benefício advindo da medida provisória.

Segundo, a norma não excluiu a responsabilidade dos entes públicos prevista no artigo 37, § 6º da Constituição Federal, a qual independe de prévia responsabilização - civil ou administrativa - do agente causador do dano e mesmo da demonstração de culpa. Portanto, qualquer pessoa que se sentir lesada pelo Poder Público por atos relacionados com a pandemia poderá continuar exercendo seu direito de buscar tutela jurisdicional de natureza indenizatória.

O que a medida provisória pareceu pretender foi a proteção do agente honesto, aquele que, tateando no escuro, tem que tomar decisões urgentes relacionadas à pandemia, sem juízo possível de certeza e que, por isso, não deveria ter que responder a processos e ser punido, salvo por erro grave e inescusável.

E o receio de sofrer punições futuras decididas no pós-crise em gabinetes com ar condicionado não pode ser descartado. 

Dados da Controladoria-Geral da União (2018) indicam que nos últimos 16 anos foram expulsos dos quadros do Governo Federal nada menos que 7.014 servidores públicos. Enquanto isso, o Mapa da Improbidade elaborado pela Procuradoria-Geral da República (2018) indica que apenas o Ministério Público Federal já havia ajuizado 8.771 ações de improbidade administrativa, o que não inclui a atuação dos demais legitimados para o ingresso dessa ação, como os Ministérios Públicos estaduais e os demais entes públicos.

O número total de ações é certamente maior, considerando que de acordo com o Instituto Não Aceito Corrupção - INAC, utilizando dados do Cadastro Nacional de Condenados por Ato de Improbidade Administrativa e por Ato que Implique Inelegibilidade - CNCIAI do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, apenas entre 1995 e 2016, foram julgados 6.806 processos judiciais de improbidade. 

A partir das informações disponíveis não seria incorreto supor que outros milhares de servidores responderam a processos disciplinares e receberam sanções menos graves ou foram absolvidos das imputações após longo e pesaroso procedimento, considerando que  dados também obtidos pelo INAC revelam que a média do tempo de tramitação das ações de improbidade, apenas na primeira e segunda instâncias, foi de 6 anos e 8 meses.

Mesmo com a expressividade desses números, eles representam uma ínfima parte da quantidade total de agentes públicos no país, sugerindo que o risco concreto de ser apenado com sanções graves é relativamente pequeno. Entretanto, a simples percepção do risco - que é agravada pela forma como as punições são divulgadas e enfatizadas - é suficiente a esmorecer o ânimo do administrador em adotar uma postura audaciosa e de inovação, que busque eficiência e seja menos preocupada com formalismos.

A ausência de parâmetros minimamente conhecidos e aceitáveis sobre como os órgãos de controle avaliarão a conduta do agente, ainda mais diante da vagueza de normas polissêmicas, cláusulas gerais e princípios jurídicos de baixíssima densidade semântica são fonte de calafrios em qualquer agente honesto e que preze por seu nome e patrimônio no momento de decidir sobre a coisa pública.  

Desafiar fórmulas preconcebidas é desestimulado pelo próprio sistema de controle da Administração Pública, como o que se resulta da função pedagógica do Tribunal de Contas da União, que usualmente é distorcida  e produz uma "métrica" que repele outras aplicações distintas do ordenamento sobre licitações e contratos, ou seja, produz "um efeito bloqueador de novas práticas administrativas, criando um efeito perverso"1. 

Além do risco da ousadia, salvo raras exceções, não há na Administração Pública políticas de estímulo à inovação e à eficiência, ao que se agrega o eventual despreparo dos agentes públicos envolvidos com questões de alta complexidade e a notória assimetria de informações entre o público e o privado, o que tende a trazer maior insegurança para a tomada de decisões, que por isso mesmo se inclinam para o lado mais burocrático, mais formalista e menos eficiente.

O administrador público vem, aos poucos, desistindo de decidir. Ele não quer mais correr riscos. Desde a edição da Constituição de 88, que inspirou um modelo de controle fortemente inibidor da liberdade e da autonomia do gestor público, assistimos a uma crescente ampliação e sofisticação do controle sobre as suas ações. Decidir sobre o dia a dia da Administração passou a atrair riscos jurídicos de toda a ordem, que podem chegar ao ponto da criminalização da conduta. Sob as garras de todo esse controle, o administrador desistiu de decidir. Viu seus riscos ampliados e, por um instinto de autoproteção, demarcou suas ações à sua "zona de conforto"2.

Se esse estado de coisas já oferece altos riscos para a coletividade em tempos de normalidade, o receio de decidir quando se está diante de uma pandemia é ainda mais alarmante. Sem dúvida, o medo de como o controle se fará posteriormente pode inibir o agente público e, neste caso, custar vidas. Diante da tragédia sem precedentes nos tempos modernos, a inércia tem um alto preço e a escolha é simples: eficiência ou morte. 

E a providência inserida na medida provisória, aliás, sequer tem ares de ineditismo. A evolução do ordenamento jurídico já vinha construindo balizas para amenizar a insegurança do gestor diante do risco de sanções decorrentes de interpretações divorciadas da realidade do caso e da boa-fé do agente público tomador de decisão que, diante de seu conhecimento e naquele momento, parecia adotar a postura mais eficiente e vantajosa para a Administração.

A lei 13.665/18 agregou dispositivos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro-LINDB que já serviam como um lenitivo protetor ao agente contra o arbítrio no julgamento de sua conduta e emprestou racionalidade, razoabilidade, previsibilidade e um mínimo juízo consequencialista às decisões administrativas, por exemplo, ao prever que a "motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta", inclusive "em face das possíveis alternativas" (art. 20, parágrafo único) e, ainda, quando designou que na interpretação de normas sobre gestão pública, "serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo" e que na avaliação sobre a regularidade de sua conduta, deve-se considerar as "circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente' (art. 22, § 1º).

Além disso, resolvendo vivas divergências sobre o assunto, o art. 28 da lei já estabelecia que o agente público responderia pessoalmente "por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro", restringindo as hipóteses de responsabilização.

Antes disso, o Supremo Tribunal Federal já temperava a tendência punitiva que impede a criação da solução ótima para o caso concreto, como quando afirmou no julgamento do MS 35.196 que atribuir "responsabilidade integral ao parecerista" poderia resultar em que ele "estaria menos propenso a trazer teses inovadoras, ainda que razoáveis, das quais poderia advir soluções mais adequadas ao interesse público in concreto. Em vez de viabilizar políticas públicas, o advogado público se tornaria um mero burocrata, atando-se a procedimentos mais longos, difíceis e custosos. Esse engessamento não corresponde a um retorno em moralidade pública, mas em ineficiência".

Precedentes judiciais dessa qualidade e as alterações legislativas que buscaram dar alguma previsibilidade na apreciação posterior de atos do agente público podiam até não resolver, por si, o receio generalizado de se tomar decisões na Administração Pública, mas vêm formando um saldo positivo de acontecimentos com capacidade de influenciar a cultura do medo instaurada e a incentivar a adoção de posturas mais corajosas e fora de standards concebidos para situações diversas ou genéricas.

O próprio Poder Executivo Federal já tinha enviado ao Congresso Nacional, em 19 de março de 2020, o PL 791/20, prevendo um mecanismo de proteção da confiança e de segurança jurídica ao tomador de decisão.

O PL, que altera a lei 13.979/20, cria o Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle formado2 pelo STF, CNJ, PGR, CNMP, TCU, AGU, CGU e DPU, e institui procedimento inédito previsto no Art. 7º-I.

Segundo ele, finalizado o processo de contratação relacionado ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (covid-19), sem prejuízo de sua imediata execução, o advogado-Geral da União poderá submeter o ato de contratação à avaliação do Ministro da CGU e de Ministro do TCU designado por seu presidente que, recebendo o aval dessas autoridades, será ainda submetido a homologação pelo Presidente do STF, após ouvido o procurador-Geral da República.

Em acréscimo, o projeto - em sentido mais amplo que a atual medida provisória - assegura que os "agentes públicos que participarem da contratação somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa e criminalmente nos casos de dolo ou fraude intencional, consciente e evidente".

A existência de salvaguarda com tamanhos círculos de proteção é o reconhecimento expresso de que o medo de se tomar decisões na Administração Pública se tornou um mal de tamanha ordem que os agentes honestos somente se sentirão suficientemente seguros se seu ato fosse aprovado por autoridades das mais altas posições na República, bastando notar que o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal - após ouvir o procurador-Geral da República - é quem homologaria o ato, evidenciando a ousadia da norma.

O certo é que se não for superada a cultura da presunção de culpa do agente público, decisões importantes e eficientes deixarão de ser tomadas por receio de que - no futuro - o gestor responda e seja até condenado injustamente. Esse receio, em tempos de pandemia, pode significar mais mortes.

O aparato de investigação do Estado deve se voltar para a punição eficaz e severa daqueles que de má-fé e com intuito de benefício próprio se apropriem de bens e receitas públicas precisamente quando o Estado mais deles necessita, mas é importante proteger e encorajar os agentes probos responsáveis pelos cuidados dos que mais necessitam. Por isso que a MP 966, com todas as críticas que lhe tenham feito, ainda pode salvar vidas.   

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1 ARAÚJO, Thiago Cardoso. Função pedagógica na jurisprudência do TCU e retroalimentação legislativa. Revista Zênite ILC - Informativo de Licitações e Contratos, Curitiba: Zênite, n. 301, mar. 2019.

2 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo do medo: a crise da ineficiência pelo controle. Direito do Estado, 31 jan. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2020.

3 Supremo Tribunal Federal, Conselho Nacional de Justiça, Procuradoria-Geral da República, Conselho Nacional do Ministério Público, Tribunal de Contas da União, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da União e Defensoria Pública da União.

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*Wesley Bento é sócio do escritório Bento Muniz Advocacia. Pós-graduado pela PUC/SP. MBA em PPP e Concessões pela FESP-SP. Procurador do Distrito Federal. Foi Diretor Jurídico da Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal.

 

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