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O setor de transportes, a pandemia e o dever de honrar compromissos

Com a crise pandêmica, as políticas de distanciamento social em todo o mundo, os aeroportos fechados, o transporte aéreo de passageiros caiu cerca de 95% e ainda padece da antiga robustez.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Atualizado às 08:35

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O Jornal O Globo publica a seguinte notícia: "Setor de transportes terá o pior ano da história com pandemia". E logo em seguida: "Levantamento mostra que PIB do segmento terá tombo de 7% em 2020". [Edição de 27/7/20].

É preciso cuidado com a leitura. Ou melhor: com o contexto. Por "setor de transportes" deve-se ter em mente o todo: transporte de pessoas e de cargas, nacional e internacional, aéreo, rodoviário, marítimo, fluvial e ferroviário.

Desde o início soube que o transporte aéreo seria o mais afetado; mais de 90% das operações se destinam a passageiros. O transporte aéreo de carga cresce a cada dia, movimenta fortunas, mas seu volume ainda é pequeno.

Com a crise pandêmica, as políticas de distanciamento social em todo o mundo, os aeroportos fechados, o transporte aéreo de passageiros caiu cerca de 95% e ainda padece da antiga robustez.

Pior de tudo: as perspectivas não são muito boas. A pandemia mostrou o valor das videoconferências e das reuniões não presenciais. Especula-se que viagens profissionais diminuam muito depois que passar a crise.

Por causa das restrições de viagens, o transporte rodoviário de pessoas também sofreu com a pandemia. Tanto é que, no corpo da notícia, está a seguinte afirmação: "Aéreas, transportadoras fracionadas e de transportes terrestres de passageiros são as companhias com maior probabilidade de buscar o caminho da recuperação judicial".

Aqui, neste breve comentário, não pretendo diminuir a gravidade da situação ou parecer insensível aos problemas, mas, como diz o famoso ditado popular, "devagar porque o andor é de barro".

Os transportes de cargas não perderam praticamente nada nos últimos meses. Muito pelo contrário. O volume de movimentações é muito bom e, ao que parece, imune aos problemas econômico-estruturais que a pandemia trouxe.

O porto de Santos registrou aumento significativo no fluxo de cargas. Na prática, nem armadores, nem terminais de cargas sofreram perdas financeiras. Acredita-se, aliás, que tenham sido alguns dos poucos a lucrar no período.

O mesmo se pode dizer de transportadores rodoviários. Até mesmo para evitar o pânico generalizado na população, mantendo o abastecimento geral, os transportadores não pararam um dia sequer. Ainda foram contemplados com benefícios normativos.

Então, as alegações de incapacidade de pagamento de dívidas devem ser recebidas com alguma desconfiança, exigindo-se de quem alegar dificuldades econômicas por causa da pandemia - ao menos do grupo formado por armadores, terminais e transportadores rodoviários de cargas - provas concretas a demonstrá-las, incluindo a abertura de livros contábeis.

Infelizmente, embora a boa-fé objetiva seja regra legal, não é algo que costuma permear a atuação de alguns protagonistas do mundo empresarial.

A bem da verdade, muita gente usará a pandemia como escudo contra os próprios compromissos e obrigações, e até mesmo para se valer dos benefícios da recuperação judicial. Considerando o histórico brasileiro, é lícito imaginar que colocarão nas costas da pandemia problemas que derivam apenas da má gestão.

Não é um alerta de hoje. Em comentário publicado em dois portais jurídicos, a propósito da teoria da imprevisão, cheguei a afirmar:

Certamente não. Mais do que nunca é preciso cuidado na distribuição desse remédio jurídico, sob pena de o aviltar e fazer de sua aplicação uma vulgar caricatura, abrindo espaço para a má-fé e para o oportunismo.

Ainda há porém um ponto por explorar. Por que não realizar uma avaliação subjetiva do comportamento das partes do negócio jurídico, durante a pandemia, a fim de verificar se a teoria da imprevisão pode ou não beneficiá-las?

(...) É necessário notar se a parte, na exata medida das suas possibilidades, agiu para minimizar os efeitos do distanciamento social.

Quem, realmente podendo fazer algo para minimizar os efeitos econômicos da situação, deitou-se no menos esplêndido dos berços, dando de ombros ao mundo, enquanto decerto, se agisse, poderia ter evitado prejuízos maiores: talvez não seja este um merecedor da teoria da imprevisão.

Sim, sei que tudo isso é muito subjetivo, talvez soe até insensível; objetarão alguns que a proposta é difícil de ser verificada e, verificada, provada. Certo, certo. Mas também sei que os profissionais do Direito vivem de desafios e, pelos menos um deles, o juiz, há de ter um forte compromisso com a verdade dos fatos.   

Mais do que nunca será preciso lançar luzes no princípio da verdade real e vasculhar o fundo de cada caso, em busca da ontologia das coisas, da realidade última e singela, em busca da teoria da imprevisão sem as imprevisões da teoria.

Quem não foi afetado verdadeiramente pela crise, ou quem antes dela já dava ao mundo sinais de ineficiência na gestão dos seus negócios, escarnecerá do Direito se, no momento crucial, resolver se aproveitar da teoria da imprevisão. Não só: há de se levar em conta, e não das melhores, aquele que, podendo fazer algo para minimizar os prejuízos do distanciamento social, deixou de fazê-lo.

Digo o que vejo à luz de importantes princípios do Direito: proporcionalidade, razoabilidade, equidade, isonomia e, antes e depois de todos, moralidade.

O Brasil, infelizmente, se notabiliza pela quantidade assustadora de gente que deve e que, se lhe fosse dada a chance, seria capaz entortar a ordem jurídica inteira apenas para continuar devendo. Não é preciso nem perder tempo argumentando sobre a má-fé que por vezes erige monumentos argumentativos enormes para justificar-se.

É certo: não poucos buscarão na teoria da imprevisão a sua solução de vida. Por isso a necessidade de parcimônia no momento de aplicá-la. Sensibilidade não é escusa para pisotear a visão econômica do Direito ou para abusar da real visão humanística que pode haver nele.

Exemplo de uma aplicação repleta de excelência humana é a que levou ao Ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo Dias Moura Ribeiro a indicação recente para o Prêmio Nobel da Paz (capitalismo humanista). Uma má aplicação de tais preceitos afetará a reputação geral das teorias familiares a esta, e aqueles que realmente dela necessitarem podem se deparar com ouvidos já cansados de ouvir aquela mesma história, e que, por essa razão, podem acabar proferindo injustiças.

A teoria da imprevisão não pode ser banalizada, muito menos encarada como salvo-conduto para o descumprimento imotivado de obrigações. Francamente, não enxergo perdas realmente substanciais para todas as empresas do setor, para todos os modos de transportes.

Soube, por exemplo, de muitos transportadores que não vêm pagando averbação do seguro e, para justificá-lo, alegam as dificuldades financeiras que a pandemia lhes teria trazido. Não pagam e, sob o pretexto de adversidades econômicas que muitas vezes nem os afetam, continuam a atuar vigorosamente, lucrando.

É até contraditório: não desejam pagar o que devem, mas querem cobertura aos transportes que jamais deixaram de realizar.

No mesmo comentário que acima reproduzi, preocupando-me com os reveses que o mercado segurador poderá sofrer, também afirmei e ora repito:

Os desafios dos protagonistas da economia, de empreendedoras e pessoas em geral, naturais ou jurídica, postos sob a assistência dos profissionais de Direito, serão bastante grandes. Extraio esse cuidado da minha especialidade: o Direito do Seguro.

Nenhum negócio jurídico-econômico se reveste mais de função social do que o de seguro. O contrato de seguro encontra-se umbilicalmente ligado ao interesse público. Aliás é aquele que na esfera privada mais se submete ao controle estatal. A saúde econômico-financeira de uma sociedade passa antes pela saúde do seu sistema securitário. Quando litiga em Juízo, uma seguradora não defende apenas os seus direitos e interesses. Por força da mutualidade, do corpo imenso que ela representa, o faz também em defesa dos segurados e da sociedade em geral.

Quando se condena a Seguradora a pagar o que não devia, ou por algum equívoco se lhe nega o ressarcimento em regresso, sofre não apenas ela, mas todo o enorme colégio de segurados. Quando devedores inadimplentes, por vezes eivados de má-fé, são contemplados indevidamente, por força das circunstâncias, com um benefício tão poderoso e necessário como o da teoria da imprevisão, sofre não apenas seus credores, mas toda a sociedade, ainda que não consiga dar conta disso imediatamente.

Da explicação do negócio de seguro sinto-me autorizado a afirmar que a aplicação criteriosa da teoria da imprevisão é questão de ordem pública e de interesse social. Não pende para o campo duvidoso das ideologias, mas segue o caminho da ratio bem definida do Direito. Mais ainda, lembrando do eterno Código de Justiniano, deve-se ter aplicação criteriosa, adequada, da qual dependerá a concretização da "a eterna e constante vontade de dar a cada um o que é seu".

Economia e Direito são faces duas faces da mesma moeda; e, mais do que nunca, terão de caminhar juntos, entre afagos e choques, sobre as pedras dessa via acidentada, sobre as ruínas do presente.

Prejudicar as seguradoras é prejudicar o colégio de segurados, por força do princípio do mutualismo.

O mesmo vale para os danos causados pelos transportadores. Antes de admitir ou rejeitar a recuperação judicial é imprescindível constatar se aquele que a pleiteia tem ou não condenações judiciais a honrar, sob pena de se esgarçar a dignidade da Justiça e se danar novamente a vítima.

Quem causa dano tem de repará-lo de forma integral. Passou do tempo em que devedor fugia de responsabilidades por meio dos subterfúgios que encontrava na própria lei. O Direito não se presta ao torto: o devedor tem que arcar com o ônus de sua condição. A pandemia não pode premiar os que não buscam cumprir deveres.

Feitas as devidas ressalvas, a situação acaba assim por não se revelar tão dramática quanto parecia. Ao menos não o suficiente para se deixar de dar a cada um o que é seu.

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t*Paulo Henrique Cremoneze é advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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