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Setor postal brasileiro: regulação e política

Maria Neuenschwander Escosteguy Carneiro

A referência central dos modelos adotados para a reestruturação dos vários setores produtivos tem sido o mercado. Os defensores deste modelo acreditam que o mercado pode, sozinho, garantir o pleno desenvolvimento do país. Neste sentido, criar agências reguladoras tem sido uma conduta bastante adotada no Brasil e no mundo para reestruturar os vários setores da economia até então sob a égide exclusiva do Estado.

terça-feira, 6 de janeiro de 2004

Atualizado às 08:58

Setor postal brasileiro: regulação e política 

 

Maria Neuenschwander Escosteguy Carneiro*

 

A referência central dos modelos adotados para a reestruturação dos vários setores produtivos tem sido o mercado. Os defensores deste modelo acreditam que o mercado pode, sozinho, garantir o pleno desenvolvimento do país. Neste sentido, criar agências reguladoras tem sido uma conduta bastante adotada no Brasil e no mundo para reestruturar os vários setores da economia até então sob a égide exclusiva do Estado. Muito se tem comentado no sentido de que as agências reguladoras não têm, em diversas situações, o compromisso que deveriam ter com os direitos dos consumidores e usuários, especialmente quando se trata de serviço público.

 

As entidades reguladoras em diversas ocasiões de conhecimento público acabam por perder a necessária independência que lhes é (ou deveria ser) naturalmente inerente. A conseqüência é uma situação prejudicial onde os órgãos reguladores (gestores) dos serviços públicos restam subordinados àqueles a quem deveriam fiscalizar, sendo "capturados". 

 

No que concerne ao setor postal, o governo Fernando Henrique Cardoso encaminhou, em meados de 1999, à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.491 que versa, principalmente, sobre a organização do Sistema Nacional dos Correios e a criação de um órgão regulador independente. Este PL propõe um novo modelo para o setor postal brasileiro, com a quebra efetiva do monopólio da União, a entrada regulada de operadores privados e a implantação do regime privado de prestação de serviços postais, fundado na necessidade de regular o mercado que hoje não está regulado.

 

Em resumo, maior flexibilidade administrativa, ganhos informacionais, transferência de responsabilidade e credibilidade são normalmente relacionadas pela doutrina à criação de agências reguladoras independentes. Desta forma, o Governo FHC, ao lançar este PL, teoricamente, tinha como objetivos atingir no setor postal as características anteriormente mencionadas, com a criação da Agência Nacional do Serviço Postal.

 

Ocorre que, embora mais de 35 milhões de brasileiros não tenham acesso à distribuição domiciliar de correspondência, os serviços postais brasileiros têm indicadores surpreendentes: por exemplo, 96% das cartas simples postadas no País são entregues no dia seguinte ao da remessa. Já na União Européia, 85% das cartas simples chegam a seu destino somente três dias após a postagem.

 

Estima-se que a ECT tenha hoje 82.500 empregados, sendo 36.760 carteiros. Ao mesmo tempo, tem 11.700 agências próprias, 5.124 motocicletas e 25.000 bicicletas. Em 2000, a receita da ECT foi de R$ 3,9 bilhões. A tarifa de carta simples é a 2ª menor do mundo. Ou seja, todos esses dados parecem demonstrar que os serviços postais brasileiros atingiram posição de um dos mais respeitados no mundo em termos de qualidade operacional. A exceção ocorre com relação aos serviços essenciais prestados pela ECT, que, segundo divulgado, são deficitários.

 

Embora não disponhamos de dados mais precisos, tal déficit pode ser doutrinariamente explicado pela inexistência de um mecanismo que implique compensação dos excedentes que são obtidos nas linhas de serviços de custo médio menor e as perdas geradas nas linhas de serviços de custo unitário mais elevado. Em mercados liberalizados, a competição se concentra nas linhas de serviços mais rentáveis, o que obriga a Administração Postal a adotar tarifas diferenciadas, com redução das tarifas das linhas mais rentáveis e aumento das linhas mais deficitárias. Isso vai de encontro ao princípio de universalização do serviço postal. Começa a fazer sentido, desta forma, o surgimento de serviços mais rentáveis prestados pela própria ECT (Ex: SEDEX 10), para, inclusive, competir com os serviços prestados por empresas privadas.

 

Ainda assim, o que se constata pela mídia é que os serviços prestados pela ECT são bons, rentáveis e eficientes. Então, por que reestruturar o setor? Primeiramente, é preciso deixar claro que é essencial que se faça no momento atual uma pesquisa estatística específica para os serviços prestados pela ECT a fim de aferir se tal empresa pública é ou não rentável e eficiente.

 

Tal aferição foi feita na Comunidade Econômica Européia (CEE) e foi registrada no Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho sobre a aplicação da Diretiva Postal 97/67/CE, que dispõe sobre normas comuns para o desenvolvimento do mercado interno de serviços postais da CEE. Este Relatório contabilizou, dentre outros: o número de estações de correios e agências por 10.000 habitantes; o número de postos de triagem com leitura automática de endereços; a evolução dos níveis de produtividade e automatização entre 1995 e 2000; a porcentagem dos salários relativamente aos custos totais entre 1995 e 2000; o desempenho financeiro dos prestadores de serviços universais.

 

Mas, historicamente, a atividade postal foi estruturada em todos os países sob a forma de prestação direta ou indireta pelo Estado, em regime de monopólio. Ocorre que a iniciativa privada descobriu nos serviços postais uma atividade empresarial que poderia ser objeto de exploração extremamente rentável e, desta forma, através de grandes operadores, tem pressionado os governos de vários países para procederem à abertura desse atrativo mercado.

 

Logo, uma 1ª possível resposta à questão colocada seria que o Brasil, não obstante a eficiência e rentabilidade da ECT, estaria seguindo a tendência da CEE, expressa na Diretiva 97/67, de regular o setor, abrindo-o à livre competição.

 

Outra explicação plausível seria a de que o PL foi lançado em uma época em que o Presidente obteve os mais baixos índices de popularidade desde 1995, quando assumiu seu primeiro mandato. Em setembro de 1999, 67% dos brasileiros afirmaram não confiar no presidente, conforme pesquisa do Ibope (Dados retirados do site https://geocities.yahoo.com.br/vinicrashbr/historia/brasil/governofernandohenrique.htm com acesso em 11/11/03). A criação da Agência Nacional do Serviço Postal se encaixava perfeitamente àquela época aos objetivos de ganhos de credibilidade de que necessitava FHC.

 

Todavia, parece-me, ainda, um tanto superficiais as explicações aventadas até o presente momento. Desta forma, deve-se buscar analisar quais os elementos que afetam o processo regulatório, tanto para entender como ele se organiza (análise positiva) como para fazer sugestões de políticas (análise normativa), como explica Bernardo Mueller, no artigo "Regulação, Informação e Política: uma resenha da Teoria Política Positiva da Regulação".

 

Informações disponíveis no site da Câmara dos Deputados demonstram que o PL foi fruto de análise acurada das Comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática - CCTCI e da Comissão de Trabalho, de Administração e Serviços Públicos - CTASP, cujos relatores prepararam dois substitutivos ao PL. Em 22/10/03, foi encaminhada ao atual Presidente Lula uma proposta de retirada do PL assinada pelos Srs. Miro Teixeira, Guido Mantega e Bernardo Appy.

 

Tal proposta de retirada tem como fundamentos: (i) não se vislumbra mais oportunidade na tramitação do PL, uma vez que ao longo dos quase quatro anos decorridos desde seu encaminhamento ao Congresso, novos fatores se fizeram presentes no ambiente postal internacional, além da própria evolução do mercado brasileiro, que busca sua adequação às crescentes demandas da sociedade, em acelerado processo de transformação tecnológica, especialmente no setor das comunicações, onde se inserem os serviços postais; (ii) o PL foi totalmente modificado pelos substitutivos, pelo que perdeu sua configuração e organização intrínseca, o que é indesejável para a construção de um novo arcabouço jurídico e institucional para um setor da relevância do postal; e (iii) o governo Lula propõe uma reforma estrutural no setor, compatível e adequada com a posição que ocupa no País e no cenário internacional, buscando manter a qualidade e rentabilidade dos serviços prestados pela ECT, sem descuidar de sua função social no atendimento às parcelas menos favorecidas da população.

 

Da leitura de tais fundamentos, parece plausível inferir que o Governo Lula entende, a princípio, ser necessário reformular o setor. É possível também constatar que o PL fez parte da agenda de reformas do Governo FHC e, hoje deixou de fazê-lo, apesar do entendimento de que talvez seja realmente necessário reestruturar o setor. Disso se conclui que os custos de espera associados ao trâmite do PL não são, neste momento, altos. Os estudiosos do setor devem, desta forma, se utilizar da situação de retirada do PL da agenda de reformas do Governo Lula para aprofundar a aplicação das diversas teorias explicativas das relações entre o Executivo, suas comissões, o mercado e seus agentes para, enfim, concluir se há realmente necessidade de reestruturar o setor postal brasileiro.

 

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* Advogada dp escritório Siqueira Castro Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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