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A natureza executiva do contrato padrão de compra e venda de Energia Elétrica (BBCE - Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia S.A.)

A discussão sobre a possibilidade de execução judicial, com lastro no Contrato BBCE, mesmo diante da existência de cláusula arbitral, vem ganhando coro no Judiciário e há decisões das mais diversas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Atualizado às 11:46

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A BBCE - Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia S.A. (BBCE) é uma sociedade empresária, ligada ao setor de energia elétrica, que oferece plataforma eletrônica para a comercialização de energia, no denominado Ambiente de Contratação Livre (ACL), do qual fazem parte empresas geradoras, comercializadoras e consumidores livres. Todos os contratos celebrados nesse ACL são registrados perante Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que contabiliza e liquida as transações.

Para atuação no âmbito da ACL, a BBCE fornece instrumento contratual denominado de "Condições Gerais para Contratação de Compra e Venda de Energia Elétrica" (Contrato BBCE), que atende às Condições Gerais da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (ABRACEEL) e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Cabe, assim, às contrapartes que desejarem atuar na ACL, apenas a adesão aos termos do Contrato BBCE, que, por sua vez, estabelece cláusula compromissória de arbitragem para solução de conflitos.

Nessa perspectiva, o que interessa para fins desse artigo é a discussão sobre possibilidade de ajuizamento de execução de título extrajudicial com fundamento no Contrato BBCE, remanescendo discussões materiais para o ambiente da arbitragem.

Conforme o art. 784, inciso III, do CPC, entende-se que o Contrato BBCE pode ser executado desde que haja assinatura de duas testemunhas e esteja comprovada documentalmente a constituição da parte inadimplente em mora, observada da dinâmica do Contrato BBCE. Isso, a rigor, deflagra o preenchimento de todos os requisitos legais da demanda executiva. Confira-se:

Título Executivo Extrajudicial (CPC, art. 784, III). Todos os Contratos BBCE são instrumentos particulares firmados pelas partes e por duas testemunhas. Essa natureza, aliás, consta expressamente estabelecida na Cláusula 24.51 dos Contratos BBCE, assim como no item 6.1 do "ANEXO I" dos mesmos2. Os próprios Contratos BBCE, aliás, estabeleceram o cabimento da execução.

Certeza (CPC, art. 783). Observada a rescisão válida dos Contratos BBCE, a obrigação de pagar e a aplicabilidade de penalidades estão previstas de maneira expressa nos Contratos BBCE. Ainda a esse respeito, anote-se que a Cláusula 4.5 é expressa ao estabelecer que o descumprimento do contrato "sujeita às penalidades e consequências previstas nestas Condições Gerais". Cada uma das rubricas das penalidades cobradas, constam expressamente previstas nos Contratos BBCE que, inclusive, preveem a forma de cálculo meramente aritmética de sua liquidação.

Liquidez (CPC, art. 783). As Cláusulas 12.1, 13.1 e 13.2 dos Contratos BBCE estabelecem fórmula matemática para cálculo do pagamento dos valores devidos e das penalidades3 4.

Exigibilidade (CPC, art. 783). O inadimplemento injustificado e a rescisão do Contrato BBCE impõem a obrigação de pagamento à parte inadimplente, cabendo à parte lesada o encaminhamento de notificação, liquidando os valores e concedendo o prazo contratual para pagamento (conforme determina a Cláusula 11.5 dos Contratos BBCE).

Essa discussão sobre a possibilidade de execução judicial, com lastro no Contrato BBCE, mesmo diante da existência de cláusula arbitral, vem ganhando coro no Judiciário e há decisões das mais diversas. Recente julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo trouxe ainda mais clareza aos pontos acima ventilados.

Em sessão ocorrida no dia 19/8/20, a 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP, com voto de relatoria do I. des. J. B. Franco de Godoi, nos autos da apelação 1017043-60.2019.8.26.0100, anulou a sentença de extinção da execução de título extrajudicial fundada no Contrato BBCE, ao argumento de que "a cláusula compromissória arbitral não exclui a competência do Poder Judiciário para a execução do título". Extrai-se do seu inteiro teor, entendimento muito preciso sobre a questão:

"Compulsando a inicial, verifica-se que a exequente pretende a satisfação de um crédito composto por valores de multa rescisória e perdas e danos decorrentes do suposto inadimplemento de 30 (trinta) contratos de compra e venda de energia elétrica (BBCE) (...) compulsando um dos contratos que consta na inicial verifica-se que o mesmo é caracterizado como instrumento particular assinado pelas partes e duas testemunhas (fls.56/88), nos termos do art. 784, III, do CPC. (...) Na hipótese dos autos, os títulos que lastreiam a execução dos contratos com cláusula penal por inadimplemento foram firmados com previsão na cláusula 24.5, assim redigida: 'Título Executivo Extrajudicial. Uma Transação efetuada ou confirmada por escrito ou digitalmente(mediante a aposição da Assinatura Eletrônica)e/ou quaisquer contratos que incorporem parte ou o todo destas Condições Gerais serão reconhecidos pelas Partes, individualmente, como títulos executivos extrajudiciais, na forma prescrita pela Legislação Aplicável'. Outrossim, o valor exato do débito pode ser alcançado com o simples cálculo aritmético, pois as cláusulas que tratam da multa e perdas e danos já estabelecem os parâmetros para o cômputo (cls. 12 e 13). Patente a liquidez!

Além disso, a exigibilidade da dívida, até o momento é intocável, pois os devedores foram notificados extrajudicialmente para pagarem a dívida e não se defenderam. (...) Por fim, o último elemento que confirma a certeza, liquidez e exigibilidade dos instrumentos é cl. 24.5., que os classificam como título executivo extrajudicial."

Além do reconhecimento da natureza executiva do Contrato BBCE, a 23ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo consignou, ainda, que "para sustentar a força maior ou o caso fortuito deverá a parte inadimplente se socorrer ao juízo arbitral, mediante procedimento autônomo e adequado aos termos do instrumento". E isso porque, qualquer tentativa de desconstituir o título mediante alegação de ausência de culpa - ou quaisquer outras matérias deduzíveis por embargos à execução -, demanda dilação probatória, cujo procedimento arbitral, diante da existência de cláusula compromissória, se mostra inafastável.

Neste diapasão, colaciona-se a doutrina de Carlos Alberto Carmona: "proposta a demanda executiva, o que fazer com os embargos à execução que o devedor poderá manejar? Parece razoável deduzir que, havendo cláusula compromissória - e tratando os embargos de matéria de fundo (validade, eficácia e extensão do título executivo) -, caberá levar tais questões aos árbitros, tocando ao juiz togado apenas o julgamento de embargos que tratem de questões processuais"5.

Acompanhando esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça pacificou que "o Juízo estatal, no qual se processa a execução do contrato (com cláusula compromissória arbitral), não possui competência para dirimir temas próprios de embargos à execução e de terceiros, atinentes ao título ou ás obrigações ali consignadas (existência, constituição ou extinção do crédito) e das matérias que foram eleitas pelas partes a serem solucionadas pela instância arbitral (kompetenz kompetenz)"6.

Esses ensinamentos, somados ao recente posicionamento do TJSP, deflagram, ao menos, duas conclusões. A primeira, de que o Contrato BBCE tem, de fato, natureza de título executivo extrajudicial, apto a lastrear medida executiva para exigir o pagamento de multas rescisórias e perdas e danos, nos termos estabelecidos previamente no Contrato BBCE e, desde que, observadas as formalidades ali inseridas, como a prévia constituição da parte inadimplente em mora. A segunda, de que à parte inadimplente demandada em processo executivo, cabem apenas as defesas processuais, de sorte a discussão sobre a validade, eficácia e extensão do título deve, necessariamente, ser promovida perante o Tribunal Arbitral, a fim de respeitar a cláusula compromissória.

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1 24.5 - Título Executivo Extrajudicial. Uma Transação efetuada ou confirmada por escrito ou digitalmente (mediante a aposição da Assinatura Eletrônica) e/ou quaisquer contratos que incorporem parte ou o todo destas Condições Gerais serão reconhecidos pelas Partes, individualmente, como títulos executivos extrajudiciais, na forma prescrita pela Legislação Aplicável.

2 6.1. Título Executivo. As partes reconhecem que os direitos e obrigações estabelecidos neste Acordo Comercial de Transação ou que dele sejam derivados estão sujeitos à execução específica, nos termos dos artigos 497, 498, 499, 500, 501 e 815 e seguintes do Código de Processo Civil brasileiro (na forme em que forem alterados, a qualquer tempo), servindo este como título executivo extrajudicial.

3 ASSIS, Araken de. Manual da execução, 17ª ed., São Paulo, RT, 2015, p. 173. BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, j. 1114.

4 TJSP. Agravo de Instrumento nº 2031966-20.2018.8.26.0000. 36ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Milton Paulo de Carvalho Filho. J. 09.05.2018.

5 CARMONA, Carlos Alberto. Considerações sobre a cláusula compromissória e a cláusula de eleição de foro. In Arbitragem: Estudos em homenagem ao Prof. Guido Fernando da Silva Soares. São Paulo: Atlas, 2007, p. 43.

6 STJ. CC 150.830 - PA, 2ª Seção, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze. J. 10/10/18.

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*Alexandre Gereto de Mello Faro é sócio das áreas de insolvência e contencioso estratégico do FASV Advogados, tem ampla experiência em recuperação judicial e extrajudicial, falência, investimentos em ativos estressados, negociação e litígios de alta complexidade (judiciais e arbitrais), especialmente, voltados às áreas corporativa e financeira. 

*Luíta Maria Ourém Sabóia Vieira é advogada associada do FASV Advogados, atuando nas áreas de insolvência e contencioso estratégico, com ampla experiência em processos de insolvência e litígios de alta complexidade (judiciais e arbitrais).

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