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A maneira certa de precificar a propriedade intelectual: Com base no produto final

O sucesso da padronização é a chave para impulsionar um ecossistema de inovação, seguindo a prática de aplicar EMVR para determinar FRAND e o estabelecimento de uma estrutura flexível, mas equilibrada, para as negociações da FRAND.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Atualizado às 15:27

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Os rápidos avanços nas telecomunicações, como veículos totalmente autônomos, cirurgias realizadas remotamente e dispositivos conectados, são o resultado de um grande ecossistema de padronização organizado por órgãos de desenvolvimento de padrões privados (SDOs), como o 3GPP - organização que desenvolve os padrões sem fio da geração 3G em diante. Esse ecossistema depende de investimentos maciços do setor privado em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para produzir tecnologias inovadoras que são incorporadas aos padrões. Não é surpresa, portanto, que as empresas protejam suas tecnologias inovadoras com patentes.

Para permitir uma ampla disseminação do padrão e, ao mesmo tempo, promover investimentos em padronização da próxima geração - recompensando adequadamente os colaboradores - os SDOs geralmente incentivam seus membros a criarem suas patentes essenciais (SEPs) dentro de padrões acessíveis em termos justos, razoáveis e não discriminatórios (FRAND).

Nas negociações de licenciamento, os FRAND devem ser acordados entre as duas partes, considerando as circunstâncias específicas de cada caso individual. As etapas visam garantir um equilíbrio de interesses e estão focadas em negociações de boa fé e práticas comerciais.

Nos EUA e em outras jurisdições, algumas empresas defendem o desvio da prática comercial de usar a EMVR (Entire Market Value Rule) - como base para determinar a FRAND e aplicar, em vez disso, a menor unidade de prática de patente vendável (SSPPU). Por exemplo, no caso de smartphones, o SSPPU seria o chip do processador de banda base. Essa abordagem baseia-se na 'doutrina SSPPU' desenvolvida por um tribunal dos EUA para um contexto peculiar dos julgamentos locais, onde membros não experientes do júri podem determinar o pagamento de uma taxa muito alta se forem utilizados grandes royalties como base para esse cálculo.

Esse princípio, no entanto, ignora que a tendência humana ao aplicar uma taxa baixa como base é resultar em royalties muito baixos. Isso pode explicar as principais diferenças entre uma oferta feita usando o SSPPU de US$ 0,10 de taxa de royalties por smartphone 4G; enquanto que a taxa de royalties FRAND considerada em juízo era de US$ 2,50 ou 1% do preço líquido do produto final, com um piso de US$ 1 e um limite de US$ 4, que foi calculada com base no EMVR (HTC vs Ericsson, Tribunal Distrital dos EUA).

O princípio do SSPPU é, de fato, um método inadequado para calcular as licenças do mundo real no contexto de FRAND devido às suas limitações que vão na contramão da execução de práticas industriais altamente eficientes e bem estabelecidas no licenciamento FRAND.

Os mercados precificam a propriedade intelectual com base em seu valor para os usuários e, consequentemente, em sua disposição para pagá-la. Isso não é uma peculiaridade da propriedade intelectual. Por exemplo, o preço dos imóveis não é determinado pelo preço dos componentes individuais de um edifício, mas do seu valor para os potenciais compradores, o que depende de fatores totalmente não relacionados ao preço dos componentes individuais, como por exemplo onde o edifício está localizado.

Cada usuário pode avaliar uma propriedade intelectual específica de uma maneira muito diferente. Fabricantes e usuários de uma geladeira conectada que transmite informações dos alimentos escaneados para saber quando é necessário fazer pedidos nos supermercados valorizariam menos a conectividade do celular do que no caso dos smartphones, pois essas tecnologias possibilitam a funcionalidade principal do dispositivo. Apenas tente passar um dia sem o seu smartphone!

Além disso, faz pouco sentido, do ponto de vista econômico, obter o valor do usuário e sua disposição em pagar por meio do preço do SSPPU, porque os dois não são relacionados. No caso CSIRO vs. Cisco, o juiz Leonard Davis disse que o valor de um romance não depende do preço da tinta ou do papel em que ele foi fisicamente impresso. Da mesma forma, nas telecomunicações, o preço do SSPPU pode nos dizer muito pouco sobre o valor das tecnologias que estão nessas soluções.

Os consumidores valorizam a interação entre esses componentes e são as sinergias entre os componentes individuais e as tecnologias que direcionam a demanda dos consumidores por produtos em conformidade com os padrões. Claramente, o valor de um produto que é multicomponente não é a soma do valor de suas partes. Por exemplo, o valor que a combinação de uma câmera e de um processador de banda base de um celular gera para os consumidores excede e muito a soma dos preços dos componentes vistos separadamente. Os consumidores podem utilizar a conectividade do celular para compartilhar suas experiências com seus pares e essa sinergia representa uma melhoria substancial em um smartphone pelo qual os consumidores estão dispostos a pagar.

Além disso, a aplicação da doutrina SSPPU no domínio FRAND interromperia as práticas existentes da indústria para o licenciamento de SEPs, que incluem um amplo portfólio de licenças com taxas calculadas com base no preço final do dispositivo. Caso o SSPPU fosse aplicado nas negociações de licenciamento de SEP, as partes teriam que negociar cada SEP separadamente, identificar o SSPPU para cada SEP separadamente e, em seguida, propor uma taxa para cada uma, novamente, separadamente. Os custos de negociação de uma licença com base na doutrina do SSPPU seriam tão altos que resultariam em um completo colapso do mercado de SEPs.

Os padrões sem fio trazem enormes benefícios para os indivíduos e as sociedades. Para que esses benefícios sejam alcançados, o ecossistema de padronização deve poder contar com um mercado que funcione bem para as SEPs que permita um licenciamento rápido a um custo razoável para as partes envolvidas. A aplicação da doutrina SSPPU no domínio FRAND ameaçaria perturbar esse ecossistema altamente eficiente, deturpando o valor das tecnologias de celulares, não recompensando adequadamente seus inovadores e aumentando os custos de licenciamento de SEP.

O sucesso da padronização é a chave para impulsionar um ecossistema de inovação, seguindo a prática de aplicar EMVR para determinar FRAND e o estabelecimento de uma estrutura flexível, mas equilibrada, para as negociações da FRAND. O Brasil tem iniciativas e organizações destinadas a contribuir para a criação desse ecossistema - como o programa governamental Startup Brasil, do MCTIC; a EMBRAPII (Organização Brasileira de Pesquisa e Desenvolvimento Industrial); o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT); o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD) - o maior em P&D da América Latina; e, por fim, a lei 11.196/05, também conhecida como "Lei do Bem", criada para promover o investimento privado em P&D por meio de incentivos fiscais.

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t*Sheetal Chopra é diretora de Defesa da Propriedade Intelectual da Ericsson Índia.

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