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O factum principis e a Medida Provisória nº 168

O atual presidente Luís Inácio Lula da Silva enfrenta sua primeira crise institucional. Estampam-se diuturnamente nos jornais do país reportagens referentes ao escândalo da cobrança de propina pelo ex-subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil a um empresário do jogo do bicho, enquanto presidente da Loteria Estadual do Rio de Janeiro, no governo de Benedita da Silva. Existe a suspeita de que tal verba seria destinada ao financiamento de campanhas eleitorais petistas.

quinta-feira, 22 de abril de 2004

Atualizado em 19 de abril de 2004 15:54

O factum principis e a Medida Provisória nº 168


Renato Melquíades de Araújo*

RESUMO: O atual presidente Luís Inácio Lula da Silva enfrenta sua primeira crise institucional. Em resposta ao escândalo da cobrança de propina pelo ex-subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil a um empresário do jogo do bicho, enquanto presidente da Loteria Estadual do Rio de Janeiro, no governo de Benedita da Silva, o governo federal editou a Medida Provisória nº 168, que proíbe a atividade de bingos, loterias online e derivados em todo o Brasil. O foco do embate concernente às problemáticas trabalhistas incipientes é a possibilidade de alegação do instituto do factum principis, previsto no art. 486 da Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT, de forma a imputar à União Federal o pagamento das verbas rescisórias dos ex-funcionários das empresas que exploravam a atividade ora ilícita.

O atual presidente Luís Inácio Lula da Silva enfrenta sua primeira crise institucional. Estampam-se diariamente nos jornais do país reportagens referentes ao escândalo da cobrança de propina pelo ex-subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil a um empresário do jogo do bicho, enquanto presidente da Loteria Estadual do Rio de Janeiro, no governo de Benedita da Silva. Existe a suspeita de que tal verba seria destinada ao financiamento de campanhas eleitorais petistas.

Desafortunadamente, em resposta ao escândalo, o governo federal editou no dia 20.02.2004 a Medida Provisória nº 168, que proíbe a atividade de bingos, loterias online e derivados em todo o Brasil. Como conseqüência, face à proibição de funcionamento de seus estabelecimentos, os empresários do ramo não tiveram alternativa senão encerrar seus negócios, ensejando a demissão em massa de seus funcionários.

Como norma essencialmente fugaz, a edição da malsinada Medida Provisória demonstra a reiteração pelo atual governo de uma prática tenebrosa, qual seja, a utilização de uma medida extrema e excepcional como instrumento ordinário de governo. A história recente nos mostra que a espécie normativa em questão é incompatível com o princípio máximo da segurança jurídica, pilar de um Estado democrático de direito.

No caso vertente, patenteando o antagonismo do permissivo disposto no art. 62 da Carta Magna, a edição da nova norma dispõe acerca da neo-ilicitude de uma atividade que, em detrimento das denúncias de lavagem de dinheiro ou atividades criminosas quaisquer, demandava a mão-de-obra de milhares de pessoas, que se viram desempregadas, repentinamente, em decorrência de um inoportuno ato normativo.

A análise dos dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, em seu Panorama Laboral 2003, evidencia a impropriedade da medida em tela. Nada obstante responder por 40% de toda população economicamente ativa da América Latina, o Brasil possui assustador índice de desemprego de 12,4%.

Contudo, sem adentrar por demais no mérito da conveniência e da pertinência da Medida Provisória nº 168, cumpre à presente exposição ressaltar a geração de uma iminente problemática laboral, posto que, se mantidos os termos da referida norma, os trabalhadores haverão de demandar em Juízo seus direitos trabalhistas então tolhidos. Nesse caso, a emergente questão pousa sobre a responsabilidade pelo pagamento das verbas trabalhistas de ex-funcionários das empresas que exploravam a atividade ora ilícita.

Para a idônea solução do caso, a abordagem da responsabilidade divide-se em dois momentos distintos: primeiramente, concernente aos direitos trabalhistas hipoteticamente inobservados ao longo do contrato de trabalho, e, por derradeiro, às indenizações decorrentes do término unilateral do vínculo empregatício.

Nesse ínterim, quanto às obrigações trabalhistas decorrentes do contrato de trabalho entre o empregador, nos moldes do art. 2º do Diploma Consolidado, e o obreiro, é irrefutável que quaisquer inadimplementos porventura existentes são de responsabilidade exclusiva daquele, consoante a legislação trabalhista brasileira vigente, impondo a análise dos casos concretos para o deslinde do processo. Todavia, o núcleo do embate foca-se na possibilidade de aplicação do instituto do factum principis, previsto no art. 486 da Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT, no que concerne às verbas rescisórias dos empregados dispensados pelo término das atividades das empresas.

O fato do príncipe prevê que, no caso de paralisação temporária ou definitiva dos trabalhos de determinado empreendimento, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. Nesse sentido, limitar-se-ia a indenização supra mencionada àquela prevista no art. 10 do ADCT, referente ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS, ou abrangeria todas as verbas rescisórias a que faz jus o empregado então dispensado?

Ora, é evidente que os trabalhadores não devem ser prejudicados pela interrupção do contrato de trabalho, entretanto, também não se deve imputar à empresa responsabilidade pela indenização de dano decorrente de determinação imposta por autoridade superior. A legislação trabalhista deve sempre ser interpretada consoante a teleologia impingida pelo legislador. Acerca da disposição em comento, é nítido que o Diploma Consolidado pretendeu desincumbir o empregador, inteiramente, do pagamento de todas as indenizações rescisórias, quando o desfazimento do vínculo trabalhista deu-se por razões estranhas e superiores à sua vontade.

In casu, de forma a ser verificada a possibilidade de aplicação do art. 486 da CLT, impende verificar se as empresas do ramo sob enfoque operavam dentro do arcabouço da legalidade. Sobre o tema, inovou a Lei nº 9.615/98 ao prever que os jogos de bingo são permitidos em todo o território nacional, nos termos da norma em apreço. Subseqüentemente, a Lei nº 9.981/00 revogou determinados artigos da citada lei, prevalecendo, ainda, a permissão legal para o exercício dos chamados "jogos de azar".

Ainda, a Medida Provisória nº 2.216-37/01 alterou o art. 59 da Lei nº 9.615/98, dispondo que a exploração de jogos de bingo, serviço público de competência da União, seria executada, direta ou indiretamente, pela Caixa Econômica Federal em todo o território nacional, nos termos da mencionada lei e do Decreto nº 3.659/00. Conseqüentemente, a atividade em tela, quando autorizada pela referida instituição financeira, poderia ser efetuada sob a responsabilidade de entidade desportiva e por sua conta e risco, ou mesmo por empresa comercial idônea.

Dessa forma, constata-se que a Medida Provisória nº 168/04 efetivamente retificou o permissivo anteriormente concedido às empresas que desenvolviam as atividades de bingo e jogos afins, constituindo, indubitavelmente, um imprevisível ato de império.

Não se trata, portanto, de mera invalidação de concessão de funcionamento, posto que os negócios desenvolvidos eram estritamente legais. Não se vislumbrava qualquer transitoriedade ou precariedade permissiva. Havia, como ressaltado, o devido respaldo legal que ensejava o funcionamento das referidas empresas.

A regulação de atividade empresarial, com relevantes reflexos empregatícios, mediante a espécie normativa sob enfoque caracteriza patente irracionalidade legislativa e social. Sendo assim, as empresas empregadoras em questão foram, juntamente com seus ex-funcionários, flagrantemente prejudicadas pelo inconseqüente ato legislativo excepcional em tela, que se trata, tão somente, de uma nefasta resposta do governo federal à crise política ora instalada.

Portanto, com supedâneo na disposição do art. 486 da CLT, entendemos que todas as indenizações rescisórias devem ser custeadas pelo ente legiferante, qual seja, a União Federal, e não apenas a multa prevista pelo art. 10, I, do ADCT, posto que resta caracterizado o factum principis, tão raramente aplicado na justiça laboral pátria. Mister o bom emprego do instituto mencionado, sob pena de se imputar injustamente às empresas ora inviabilizadas a responsabilidade pelo pagamento de direitos trabalhistas de aproximadamente 320 mil novos desempregados.
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* Advogado do escritório Martorelli Advogados









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