Caso Isabella

25/3/2010
Gilberto Ferreira Pereira - migalheiro Ferrenho

"Ínclitos, Doutos e Vantajosos responsáveis pelo querido Migalhas. Há alguns anos tive a felicidade de descobrir vocês e de lá para cá, me acostumei a iniciar o dia, seja ele profissional ou não, lendo os ensinamentos, notícias e fatos para nós enviados diariamente. Já fui agraciado com um magnífico exemplar de Migalhas de Machado de Assis, que fica em minha cabeceira para meu deleite antes de adormecer, e hoje torno a ser agraciado com uma bela mensagem dessa Redação pela passagem de meu aniversário. Faz tempo que estou para me dirigir a vocês buscando enviar uma crítica construtiva, acrescida do mais justo e perfeito agradecimento pela forma que nos situam diária e gratuitamente no meio que escolhemos para a labuta e sustento. Ao desfrutar-me com a edição do Migalhas 2.352, deparei-me com comentários do caso Isabella que realmente cansa a qualquer mortal pela excessiva exploração da mídia, e no mesmo momento lembrei-me de ter assistido nos noticiários televisivos matutinos, populares vaiando o advogado do casal Nardoni, se não me engano Dr. Pandoval, quando o mesmo adentrava no Fórum onde ocorre o julgamento. Fiquei estarrecido com o episódio, pois, sou criminalista e um dos trabalhos que mais desenvolvo é no Tribunal do Júri e assim sendo, não podia me furtar em comentar o episódio e o faço lembrando que respondendo à consulta de um criminalista que indagava se devia aceitar o patrocínio da defesa de um adversário político, acusado de homicídio, escreveu Ruy Barbosa uma carta magistral, onde sustentou que: 'Ante a deontologia forense não há acusado, embora o fulmine a mais terrível das acusações, e as provas o acabrunhem, que incorra no anátema de indigno de defesa'. Quanto ao defensor, dispõe o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo 31 § 2º, que: 'Nenhum receio de desagradar a juiz ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão'. Ainda hoje, entretanto, há quem não entenda por que os advogados assumem, sem constrangimento, a defesa de acusados que a opinião pública já condenou antecipadamente. O criminalista, todavia, não pode preocupar-se com a sociedade, porque só tem deveres para com seus patrocinados. Do contrário, a defesa criminal só seria admissível quando os interesses do réu não colidissem com os da comuna, e isto só ocorre quando ele é inocente. Nada podendo esperar da coletividade, porque com ela se acha, como representante dos réus, em conflito permanente, não deve o criminalista afligir-se com o que dele pensem, nem temer a impopularidade. Se agir de outro modo, estará servindo a dois senhores e sacrificará forçosamente um em favor do outro. Se o criminalista necessitar de motivação filosófica, bastará lembrar-se de que, segundo Hegel, toda sociedade é a síntese de seus próprios antagonismos. Quem a afronta concorre para aperfeiçoá-la. Como arguiu Lachaud em sua célebre defesa de Tropmann, abominável facínora que trucidara uma família inteira (o casal, um adolescente de dezesseis anos, e quatro meninos, o mais velho de treze e uma criancinha de dois), os que não compreendem as obrigações da defesa 'confundem, em sua generosa indignação, a vingança e a cólera com a justiça'. Não percebem que 'abrasados nessa paixão ardente e excitados de comiseração para com tantas vítimas, acabam por querer que se deixe consumar um crime social, de todos o mais perigoso, o sacrifício da lei'. O mesmo ocorre na deontologia médica, onde também não há enfermo indigno de tratamento. Ninguém ousaria censurar um médico que socorresse, com sua ciência, o pior dos criminosos. Não é função do médico, nem do advogado, facilitar a eliminação dos inimigos públicos. Assim como pode qualquer criminoso chamar um médico para livrá-lo da doença, sem que este tenha o direito de eximir-se porque a vida do paciente seja nociva à sociedade, pode também o delinqüente chamar um criminalista para livrá-lo da pena, sem que a este seja lícito esquivar-se a pretexto de constituir um risco social a liberdade daquele que o chamou. Para o criminalista não há culpado nem inocente. Apenas alguém que caiu ou está prestes a cair nas malhas da justiça. O advogado que julga o réu, usurpa as atribuições do juiz e do tribunal. Evidencia alarmante ignorância de sua missão e estorva a dialética, revertendo o sistema racional de indagação da verdade, onde a acusação é a tese, a defesa a antítese e o juízo a síntese. O criminalista não tem direito de sentir aversão alguma pelo acusado, seja qual for o crime por ele cometido. O repúdio à causa em razão exclusiva da gravidade do delito é prova de cegueira jurídica, pusilanimidade e hipocrisia. Porque os sãos não precisam de médico e sim os doentes, Jesus não veio cuidar de justos e sim de pecadores. Simples cireneu, o criminalista apenas ajuda o acusado a carregar a sua cruz. Se o médico não pode, sequer na véspera da execução, recusar tratamento ao condenado à pena de morte, não pode também o advogado, a pretexto algum, descumprir sua missão. O defensor é a voz do acusado. A ele cumpre fazer o que o próprio réu faria, se estivesse habilitado a defender-se. E quanto mais grave for o crime – disse Ruy – mais necessita o acusado de assistência e defesa. A recusa de patrocínio em razão da natureza do crime ou da confissão recebida em confiança constitui imperdoável omissão de socorro. Ao criminalista não interessa a confissão do acusado, porque seu dever é defendê-lo em qualquer circunstância. Para tanto, basta-lhe indagar quais os fatos, documentos ou testemunhas que podem ser utilizados em sua defesa. Para assegurar justiça ao povo, o Estado não necessita do farisaísmo ou da omissão dos advogados. Muito menos ainda, da traição daqueles a quem os acusados confiaram seu destino. Polvo gigantesco, o Estado possui tentáculos poderosos, capazes de sugar dos réus até mesmo o ânimo de defesa, cabendo ao advogado, com dedicação e competência, auxiliar a justiça a manter o equilíbrio entre os pratos de sua balança. O último dos criminosos, como disse Ruy, tem o mais absoluto direito de que com ele se observe a lei. Portanto, ainda quando a condenação seja inevitável, há sempre o que fazer em defesa do acusado. Além de velar pela observância do devido processo legal, cabe ao advogado denunciar contrafações, impugnar o falso testemunho e as provas ilegalmente obtidas, bem como apurar e expor a eventual contribuição da vítima para o delito, e recorrer, quando a pena exceda os limites razoáveis. Consciente da indispensabilidade de sua função, uma vez que sem defensor não pode haver processo, o criminalista deve ignorar a opinião pública, mormente porque, hoje em dia, ela já não é pública e nem mesmo opinião. É apenas o que a mídia impinge. Esses foram os ensinamentos de meu maior mestre, com quem tive a honra de dividir a tribuna por diversas vezes, saudoso Dr. Vinícius, e que nesse momento, uso para fazer um desagravo ao brilhante advogado que atua na defesa do casal Nardoni. A vocês do Migalhas, meus mais sinceros agradecimentos por tudo, ou seja, pelos ensinamentos, pelo conhecimento obtido através de seus periódicos e pela cortesia em lembrar-se de meu simples aniversário. Atenciosamente,"

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