Casamento homoafetivo 23/12/2005 Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668 "Caro migalheiro Bernardo Shaw Dimas Jr.: primeiramente, peço que você não distorça aquilo que falei. Eu disse que o preconceito homofóbico 'institucionalizou-se' na Idade Média, e não que ele foi criado naquele período (ou seja: eu disse que ele foi aumentado, e não foi criado – por favor leia corretamente minhas colocações para não distorcer o que afirmo). Ademais, eu sinceramente acho esse ponto da discussão irrelevante: debater onde exatamente se 'iniciou' a homofobia não tem importância nenhuma. O que importa é que esse juízo de valor arbitrário existe e que não pode ensejar discriminações jurídicas. Mas fato é que ela reforçou-se, e muito, por causa de dogmas religiosos arbitrários. Sim meu caro, a Igreja é dirigida por pessoas e são estas, portanto, que têm preconceitos. Contudo, a pessoa do Papa é quem dita os rumos de dita instituição – assim, se o Papa é preconceituoso, a Igreja Católica também o será, pois essa religião é baseada no 'princípio da infalibilidade papal' (se ele é infalível (?), então os católicos devem seguir estritamente o que ele fala – se não o fizerem mas acreditarem em Cristo, serão cristãos, mas não católicos). Dessa forma, se as pessoas que comandam a Igreja são preconceituosas, então esta inexoravelmente o será. Mas enfim, analisando a questão do preconceito homofóbico: de início, ignorem o período 'Idade Média'; considerem apenas o conceito de que a homofobia reforçou-se por causa da Igreja Católica (e, obviamente, de outras instituições religiosas, que é o cerne da questão), por causa dos citados dogmas arbitrários. O preconceito homofóbico até existia antes da Igreja Católica assumir uma posição de alto poder político no mundo ocidental, contudo em um grau bem menor, visto que anteriormente àquele período a bissexualidade era algo bem comum. Até aí, a homo e a bissexualidade, se não eram aceitas, eram no mínimo toleradas. Nesse sentido, cito Colin Spencer: 'Pela metade do século XIV, a visão da sociedade quanto à identidade sexual era muito diferente da que existira no mundo antigo. Essa mudança radical foi produzida pelas autocracias combinadas da Igreja e do Estado, que se recusavam a admitir a bissexualidade. A sexualidade do homem estava agora tocada pela divindade de Deus e tornou-se sagrada (as mulheres eram tão marginalizadas que sequer eram consideradas). Em termos práticos, qualquer expressão sexual fora do casamento, ou posições ou atitudes dentro do casamento que não fossem a penetração vaginal na posição mais tradicional estavam contaminadas pelo demônio. Gradualmente, todos os atos ‘desviantes’ tornaram-se pecados graves e flagrantes contra a divindade de Deus. A única expressão sexual que escapou da condenação foi a prostituição feminina e o bordel, que a Igreja, em sua maior parte, preferiu ignorar. / Essa mudança para um ‘ideal’ heterossexual não podia expurgar a expressão da bissexualidade de todos os níveis da sociedade, incluindo a Igreja. Acabou, isto sim, criando uma forma de pensamento esquizóide tanto no indivíduo quanto no Estado. Agora a expressão do sentimento bissexual tinha de ser pensada como algo estranho, a não ser que se tornasse ruidosa e publicamente óbvia, quando então o Estado era forçado a agir. Foi nessa época, quando o conceito de bissexualidade foi descartado da consciência da sociedade, que começou a se estabelecer uma polaridade entre o Outro (que é reprimido) e o Eu (aquilo que é publicamente reconhecido); entre aquele que mais tarde será chamado de homossexual, e que deve ser escondido, e o ‘status quo’, o heterossexual, que precisa ser publicamente estimulado. (...) / A partir do século XIV na Europa, a homossexualidade, já associada à heresia e à usura, foi ligada a algo mais sinistro – a feitiçaria e demonismo. Não surpreende, portanto, que a natureza humana relacionada com isso fingisse que o ato de união homossexual era coisa que não lhe dizia respeito. (...)' (Spencer, Colin. HOMOSSEXUALIDADE: UMA HISTÓRIA. São Paulo, Editora Record, 1999, pp. 119, 120 e 121). A bissexualidade existente antes desse período (citada pelo autor) é o que costumo definir como uma 'pederastia institucionalizada', no sentido que era comum e moralmente exigido em sociedades como a Grécia Clássica (berço do mundo ocidental) o fato de um homem mais velho assumir o papel de tutor de um adolescente, preparando-o para a vida adulta ao mesmo tempo em que o iniciava sexualmente (o homem mais velho seria sempre o parceiro ativo e o adolescente sempre o passivo) – isso para desvencilhá-lo do laço materno-feminino e trazê-lo ao mundo masculino. Quando esse adolescente ficava adulto e independente, esperava-se dele que realizasse o mesmo com outro adolescente, para que assim a masculinidade da sociedade fosse mantida. Antes que alguém se insurja quanto a isso, aponto que não estou fazendo nenhum juízo de valor: apenas estou relatando fatos da história humana. Assim, cito novamente Colin Spencer: 'Embora se esperasse que o homem adolescente das classes superiores se comportasse de um modo agressivo, ele na verdade tinha de ficar passivo, até que fosse aceito na sua plena maturidade masculina do final dos 20 e começo dos 30 anos, quando casava*. Os adolescentes continuaram a ser os parceiros passivos de homens mais velhos, que por seu turno serviam como modelos ativos e professores da condição adulta. (...) Os homens que não trocavam o papel passivo pelo ativo eram vistos como subversivos da estrutura da sociedade, já que estavam minando o caminho correto para o estado adulto. Como isso tudo lembra a Atenas clássica. (...)' (Ibidem, p. 121). Veja-se como esses trechos ratificam o que eu disse: antes da Igreja Católica, se a bissexualidade não era aceita, era no mínimo tolerada, donde se pode dizer, com segurança, o mesmo sobre o amor homoafetivo. Dessa forma, ante as citações que acabei de fazer, creio que atendi ao pedido feito por Bernardo Shaw Dimas Jr. Contudo, continuo à disposição para quaisquer outros esclarecimentos que se tornem necessários.*['Um homem não casava até que pudesse estabelecer seu próprio lar, processo que levava anos, de modo que não era provável que casasse antes dos 30.' – Ibidem, p. 120]." Envie sua Migalha