Ação penal - Desacato

19/10/2015
Roberto Carlos Liberator Duarte

"Em relação ao crime de desacato cometido por advogado no fórum da Vila Mimosa em Campinas é necessário fazer as seguintes considerações: 1. Da não recepção do crime de desacato (Migalhas 3.723 - 19/10/15 - "Ação penal - Advogado - HC"). O crime de desacato à autoridade remonta ao Estado Novo e não foi recepcionado pela atual ordem constitucional. Embora formalmente vigente, a tipificação da conduta fere o direito fundamental à liberdade de expressão (art.5º, IV da Constituição Federal de 1988). Abusos eventuais no exercício da liberdade de expressão não justificam a intervenção penal. Deveras, tais desvios podem ser corrigidos por outras searas jurídicas, consagrando-se os princípios penais da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade do Direito Penal, todos de índole constitucional. A proibição da norma penal, portanto, não se justifica mais. Os valores democráticos consagrados pela ordem constitucional atual priorizam a liberdade de expressão. Admitindo tais aspectos, a atual Comissão de Reforma do Código Penal, instituída no Senado, sinaliza a descriminalização do desacato à autoridade. Nesse sentido, as palavras de Técio Lins e Silva, membro da Comissão de Juristas: 'A comissão aprovou a descriminalização do crime de desacato à autoridade, que tem aquele ranço insuportável da ditadura, que tem aquele ranço insuportável do Estado Novo, que inspirou o Código Penal vigente lá nos idos de 1930/1940, copiado do Código Penal italiano, o Rocco, que era uma lei fascista. No anteprojeto não existe mais esse tipo penal que alguns servidores arrogantes, que alguns juízes, que algumas autoridades estampam nas portas dos seus gabinetes, como uma ameaça ao cidadão, uma ameaça ao exercício da cidadania. Ninguém põe cartazes dizendo que é proibido matar ou que é proibido estuprar, não é? A descriminalização do desacato à autoridade é [...] uma complementação importante da defesa da cidadania".(in Jornal do advogado. Ano XXXVII, maio/2012, número 372, p.15). Ao lado do fenômeno da não recepção constitucional, cabe ainda o dever de observar a vigência do Pacto de San José da Costa Rica no Brasil, que tem status de supralegalidade. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e os pareceres e relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos apontam e recomendam a supressão do crime de desacato pelos Estados signatários. 2. Do juízo de convencionalidade. O Estado brasileiro é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, incorporado à legislação interna pelo Decreto 678/1992. O artigo 13 da Convenção prevê a liberdade de pensamento e expressão, traçando seus contornos fundamentais. No bojo do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000, emitiu a 'Declaração de princípios sobre Liberdade de Expressão', enunciando que: 11. Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como 'leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação. Igualmente, a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos firmou entendimento de que as normas de direito interno que tipificam o crime de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Segundo a Relatoria: B. As leis de desacato são incompatíveis com o articulo 13 da Convenção. 5. A afirmação que intitula esta seção é de longa data: tal como a Relatoria expressou em informes anteriores, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) efetuou uma análise da compatibilidade das leis de desacato com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em um relatório realizado em 1995[2]. A CIDH concluiu que tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas [3]. A CIDH declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos[4]. Em consequência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se refere à função pública[5]. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas, pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções fiduciárias. Inclusive aquelas leis que contemplam o direito de provar a veracidade das declarações efetuadas, restringem indevidamente a livre expressão porque não contemplam o fato de que muitas críticas se baseiam em opiniões, e, portanto, não podem ser provadas. As leis sobre desacato não podem ser justificadas dizendo que seu propósito é defender a "ordem pública" (um propósito permissível para a regulamentação da expressão em virtude do artigo 13), já que isso contraria o princípio de que uma democracia, que funciona adequadamente, constitui a maior garantia da ordem pública[6]. Existem outros meios menos restritivos, além das leis de desacato, mediante os quais o governo pode defender sua reputação frente a ataques infundados, como a réplica através dos meios de comunicação ou impetrando ações cíveis por difamação ou injúria. Por todas estas razões, a CIDH concluiu que as leis de desacato são incompatíveis com a Convenção, e instou os Estados que as derrogassem. De acordo com o Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, de 2000, a CIDH "efetuou uma análise da compatibilidade das leis de desacato com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em um relatório realizado em 1995'. Naquela oportunidade, a CIDH concluiu que 'tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas". Assunte-se para o que diz importante trecho do relatório: A CIDH declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos. Em consequência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se refere à função pública. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas, pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções fiduciárias. Inclusive aquelas leis que contemplam o direito de provar a veracidade das declarações efetuadas, restringem indevidamente a livre expressão porque não contemplam o fato de que muitas críticas se baseiam em opiniões, e, portanto, não podem ser provadas. As leis sobre desacato não podem ser justificadas dizendo que seu propósito é defender a 'ordem pública' (um propósito permissível para a regulamentação da expressão em virtude do artigo 13), já que isso contraria o princípio de que uma democracia, que funciona adequadamente, constitui a maior garantia da ordem pública. Existem outros meios menos restritivos, além das leis de desacato, mediante os quais o governo pode defender sua reputação frente a ataques infundados, como a réplica através dos meios de comunicação ou impetrando ações cíveis por difamação ou injúria. (1 Relatório Anual da CIDH, 2000, Volume III, Relatório da Relatoria para a Liberdade de Expressão, Capítulo II (OEA/Ser.L/V/II.111 Doc.20 rev. 16 abril 2001). Alguns países da América Latina aboliram dos seus ordenamentos jurídicos o crime de desacato, como a Argentina, por exemplo, em decorrência do caso 'Verbitsky v. Argentina' (Caso 11.012, Informe No. 22/94, Inter-Am. C.H.R., OEA/Ser.L/V/II.88 rev.1 Doc. 9 at 40 (1995)). O Brasil, todavia, ainda não atendeu à CIDH. Conquanto seja assim, a respeito do status jurídico dos tratados internacionais, deve-se reparar no pronunciamento do STF, no julgamento do RE 466343, nos seguintes termos: Ementa: prisão civil. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (RE 466343, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165). Segundo entendimento externado no voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento acima referido, reiterando aquele manifestado no HC 90.172-SP, (2ª Turma, votação unânime, j. 05 de junho de 2007), os tratados vigentes no Brasil, firmados antes da entrada em vigor da EC nº 45, que incluiu o § 3º no artigo 5º da Constituição da República, possuem valor supralegal, isto é, estão abaixo da Constituição, mas acima das Leis. Nesse contexto, porque o art. 331 do CP conflita com o art. 13 do Pacto San José da Costa Rica, tendo status jurídico inferior a ele, há de prevalecer o tratado, rejeitando-se, por conseguinte, a denúncia. Isso posto, por se tratar de fato atípico, consoante fundamentação retro, deve ser tido como arbitrária a prisão, nos termos do artigo 395, II, do CPP. Penso eu que está deveria ser a defesa no Habeas Corpus impetrado."

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