CF, cláusulas pétreas e covid-19

27/4/2020
José André Beretta Filho

"Ineficiência governamental, art. 37 da Constituição Federal, cláusulas pétreas e pandemia. Na edição de 27/4/2020 de O Estado de São Paulo, o Prof. Ives Gandra da Silva Martins diz eu seu artigo, com toda razão: 'Dos servidores públicos se espera patriotismo, não mesquinho apegos às benesses que usufruem'. A partir disso faço algumas ponderações sobre a Constituição, as cláusulas pétreas e a covid-19. Do ponto de vista governamental a covid-19 não trouxe nada de novo, ou seja, apenas confirmou o despreparo da estrutura governamental para compreender e atender a situação; a ausência de infraestruturas; de políticas coesas em todos os níveis de governo; as mensagens e ações contraditórias; os discursos em tons belicosos etc. Enfim, nada disso é novo, a nossa fragilidade é flagrante. Curiosamente, nossa Constituição cidadã diz, em seu art. 37: 'Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]', ou seja, a Constituição prevê exatamente o oposto daquilo que temos, imperando a ineficiência do Estado, a duvidosa moralidade, a clara pessoalidade, cuja mais recente referência é a frase do sr. presidente da República afirmando que ele é a Constituição!; sem falar na fragilidade da legalidade. Em outras palavras, a Constituição espera um Estado eficiente. Essa mesma Constituição aponta aquilo para o qual ela foi feita: 'Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.; [...]' isto é, assegurar um país que possa evoluir e se desenvolver, daí porque o Estado deve ser eficiente. Ora, essas postulações reconhecem o direito à evolução e toda evolução implica tomar decisões, optar por caminhos e optar significa decidir entre possibilidades. O conceito de evolução exige a aceitação de dois postulados: o da flexibilidade e o da resiliência, isto porque a evolução não é uma regra definida e inexorável: chove, há seca, há terremotos, há pandemias etc. Ou seja, a sociedade não vive num mundo que segue uma estrada única que leva do ponto A ao ponto B. Ao contrário, ela vive numa estrada que começou num ponto e que vai para algum lugar não definido e que só se apresenta pela própria ação da sociedade e, dentro dela, do Estado e os que estão nele, seja como agentes titulados ou pessoas, físicas ou jurídicas. Assim a Constituição, por excelência, é um livro de flexibilidade e resiliência, que estão claramente descritas em palavras como: 'construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação'. Uma vez posto isso, encontrar na Constituição cláusulas pétreas é despojar dela aquilo que ela nos dá como principal: a flexibilidade e a resiliência. Cláusulas pétreas são o simbolismo da inflexibilidade, a incompreensão da mutabilidade das coisas e que por isso mesmo requerem eficiência. Essa flexibilidade e essa resiliência não significam autorização para tudo fazer, tudo modificar, mas apenas dizer que uma sociedade para crescer de forma justa, equilibrada e igualitária tem que ter mecanismos que a permitam enfrentar as novas realidades. Direitos humanos, direitos trabalhistas, direitos individuais etc. não são os mesmos ao longo do tempo e cabe ao Estado, por seus agentes, Executivo, Legislativo e Judiciário, atuarem de modo eficiente sempre e sobretudo quando as circunstâncias exigirem. O contrário seria negarem-se os art. 3º e 37 da Constituição Federal. Ao se afirmar a existência de cláusulas pétreas o que se está dizendo é que as necessidades sociais de desenvolvimento podem ser impedidas pela adoção de um princípio não escrito, apenas cerebrino, da cláusula pétrea, que pretende seja uma sociedade imutável, logo ela que é uma das coisas mais mutáveis que existe. Por ela, a forma do escrito é o que comanda o avanço social. O princípio da cláusula pétrea configura, portanto, preceito de exceção discriminatório, diria mesmo ditatorial, incompatível com a Constituição, exceto para aqueles que possam entender que as modificações serão sempre erradas, serão sempre prejudiciais, serão feitas sem discernimento e sem capacidade de avaliação e até mesmo revisão e reparação. É acreditar que Executivo, Legislativo e Judiciário irão sempre preservar um status quo, como se status quo não fosse um outro conceito cerebrino. Aproveito então estarmos enfrentando uma pandemia para dizer que durante sua ocorrência o princípio da cláusula pétrea equivale a dizer que uma sociedade não pode responder a uma pandemia porque, institucionalmente, isso exige um processo de emenda constitucional ou revisão constitucional, ou seja, a forma é mais relevante do que a essência do fundamento de razoabilidade, racionalidade e eficiência da ação. O Direito é, por excelência, dinâmico e dinamismo inclui a capacidade de gerar novas lógicas de aplicar o Direito, sendo parte do Direito a capacidade de avaliar, por exemplo, pela função jurisdicional, a validade das modificações considerando a sociedade onde se vive. Se assim não é, porque o novo Código Processo Civil logo em seu art. 1º diz que: '1º. O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil'. Continuando no art. 8º: 'Art. 8º. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência'. E por que isso foi inserido? Porque o legislador percebeu que o Poder Judiciário é plenamente capaz de, via jurisprudência, analisar essa flexibilização e, assim, pavimentar a resiliência. Acredito, então, que a cláusula pétrea tem muito mais a dizer sobre a incapacidade de se conviver com a diferença e a entender que o outro tende a entender a ordem como aquilo que eu tenho como desordem, ou seja, que existe aquilo que eu penso e o que ele pensa, sendo que o meu eu, o 'eu' da cláusula pétrea tenho a palavra final. A Constituição não é isso, ela quer que pensemos o que quer que seja, mas que sejamos capazes de avançar com essa multiplicidade de pensamentos, que são conciliados pela democracia, que inclusive inspira a atuação jurisdicional, como visto no art. 8º do Código de Processo Civil acima referido. A ideia da cláusula pétrea é discriminante, é entender que alguém em algum momento decidiu que certas coisas não poderão mudar como resultado de um processo normal de evolução, inclusive dos padrões jurídicos. É acreditar que a ação modificativa será sempre irracional, irrazoável, desproposital, prejudicial. É dizer que sem a cláusula pétrea o que imperaria era o caos, a anarquia, é ler a Constituição de olhos fechados, é compreender o Direito de modo mecânico."

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