Justiça autoriza casal gay a adotar criança no Brasil

29/11/2006
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668

"A migalheira Camila Mastub da Silva trouxe uma questão importantíssima ao debate: o princípio da igualdade. Contudo, apesar de defender o reconhecimento de direitos aos casais homoafetivos (o que é uma exigência da isonomia), ela se equivoca ao dizer que homossexuais 'jamais serão iguais' a heterossexuais – sua afirmação genérica ignora que duas pessoas não precisam ser idênticas para receberem o mesmo tratamento Jurídico. Explico: é entendimento uníssono na doutrina e na jurisprudência que duas pessoas não precisam ser iguais em tudo para receberem a mesma proteção do Direito, mas precisam 'apenas' ter em si o mesmo valor essencial protegido pela norma em comento – ou, como se costuma dizer, o elemento levado em conta quando da elaboração da norma. Ou seja, não é qualquer diferença que impõe um tratamento diferenciado: deve-se analisar o elemento essencial protegido pela norma – ex: duas crianças podem ser completamente diferentes (classes sociais, personalidade, escolaridade etc.), mas o Direito considera apenas sua idade (no ECA) para conferir a mesma proteção jurídica a todas. Nessa seara, ao se discutir os direitos dos casais homoafetivos, deve-se fazer a seguinte indagação: qual é o elemento formador da família contemporânea? A resposta variou de um século para cá: na época do CC/16, a família formava-se pela mera formalidade do casamento civil, tendo em vista que o Direito de Família preocupava-se primordialmente com a transmissão dos bens do homem para seus descendentes 'de sangue', razão pela qual a virgindade era imposta à mulher como requisito de sua respeitabilidade. Todavia, a evolução do pensamento humano no séc. XX mostrou que as pessoas se preocupam mais com sua realização afetiva do que com a mera formalidade do matrimônio civil, o que se comprova pelo crescimento do número de 'concubinatos puros' (atuais uniões estáveis) na época, o que culminou com o reconhecimento do status jurídico-familiar da união estável na CF/88. Esse, em apertada síntese, é o motivo pelo qual a doutrina passou a considerar que o elemento formador da família contemporânea é o afeto. Eu desenvolvo mais esse conceito: entendo que a família contemporânea forma-se pelo amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses (comunhão esta estabelecida pelo casamento civil – art. 1511 do CC/02), de forma pública, contínua e duradoura (requisitos indispensáveis à caracterização da união estável – art. 1723 do CC/02). Feitas essas considerações, é de se notar que os casais homoafetivos possuem em sua relação o mesmo amor existente nos casais heteroafetivos, razão pela qual são idênticos naquilo que é essencial ao Direito de Família e merecem, assim, a mesma proteção jurídica e os mesmos direitos conferidos(as) aos casais heteroafetivos, como decorrência da isonomia. Assim, as famílias homoafetivas merecem a mesma proteção e dignidade conferidas às famílias heteroafetivas, donde se percebe que a adoção deve ser concedida aos casais homoafetivos, conjuntamente, pela interpretação extensiva ou pela analogia, que são técnicas de supressão de lacunas da Lei (a Lei tem lacunas; o Direito não) decorrentes da isonomia, para tratar igualmente os iguais (interpretação extensiva) ou fundamentalmente iguais (analogia). Não conheço o fundamento da sentença que originou este debate, mas este é meu entendimento acerca do tema. Por fim migalheira Camila, os pais heterossexuais devem educar seus filhos no sentido de que há pessoas que amam pessoas do mesmo sexo e que isso é absolutamente normal, conforme a ciência médica mundial inclusive (CID 10/1993; Resolução 1/99 do CFP brasileiro), e que ainda independe de escolha: as pessoas simplesmente se descobrem homo, hétero ou bissexuais. Devem dizer que da mesma forma que casais heteroafetivos decidem não ter filhos, casais homoafetivos são tão dignos quanto aqueles mesmo não podendo ter filhos entre si. Devem dizer, enfim, que homossexuais são pessoas tão dignas quanto heterossexuais, no sentido que sexualidade não influencia no caráter de ninguém e que, portanto, merecem os mesmos direitos conferidos aos heterossexuais – quanto ao Direito de Família, pelo reconhecimento de seu direito já existente ao casamento civil e à união estável, únicos regimes jurídicos que garantem a integral proteção jurídico-familiar às uniões amorosas – o que deve ser feito pela interpretação extensiva ou pela analogia, pelo mesmo argumento supra exposto: como formam famílias juridicamente protegidas por terem uma relação baseada no amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, são iguais a heterossexuais no que interessa ao Direito de Família. Isso não implica em afronta à Separação de Poderes, pois a interpretação extensiva e a analogia são formas de integração das lacunas da Lei, previstas pelo próprio Direito e admitidas pelo Constituinte Originário ao consagrar a isonomia (além dos arts. 4o da LICC e 126 do CPC) no sentido de proibir o Direito (magistrado, especificamente) de não conferir tutela jurídica pela mera ausência de Lei expressa. Homossexuais só se 'espelham' no que tange à sua luta por igualdade jurídica em heterossexuais porque estes têm a si direitos conferidos enquanto aqueles não têm, embora se encontrem na mesma situação jurídica... Essa arbitrariedade é vedada pela isonomia, sendo esse o motivo pelo qual tanto lutamos. Um dia conseguiremos, tenha certeza disso, porque a isonomia veda o preconceito jurídico. Eu tenho plena convicção disso."

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