Mensagem para uma ‘inteligentzia’

15/12/2006
Benedito Édison Trama – Guarulhos

"Certa vez, há alguns anos, ouvi de um colega do Tribunal Deontológico da OAB/SP um rápido comentário, mais ou menos assim: – O Dr. Vita Roso é o advogado que mais consulta o nosso Tribunal. Outro colega completou: – São as consultas mais respeitosas, pois ele sabe muito bem a resposta. Faz em respeito à Instituição. A conversa parou por aí. E o Dr. Jaime continuou a nos consultar. Um belo dia apresentou-se uma consulta de advogada indagando se estaria ela obrigada a fornecer informações processuais ao seu empregador. Este por sua vez, determinara que as informações fossem prestadas a outro advogado. Fui nomeado relator e, 'radicalmente' voltado à defesa das prerrogativas dos advogados, li e reli todos os textos éticos e estatutários referentes à independência e sigilo, principalmente. Não apresentei um parecer. Fiz a apologia das prerrogativas profissionais do advogado, defendendo-as intransigentemente, como costumamos realçar. Meu revisor na consulta, o e. Fábio Kalil  Vilela Leite, ao  tomar  conhecimento  do  meu voto, antes da exposição plenária, alertou-me de que as prerrogativas tinham seu limite traçado na obrigação do mandatário de prestar todas as informações que o mandante precisasse, sem que isso, porém, lhe retirasse a isenção técnica nem reduzisse   a independência inerentes à advocacia (artigos 7o-I e 18-in fine do Estatuto e, 4o-caput e 22 do Código de Ética). Etc., etc. e tal. Inesperadamente o voto, aprovado por unanimidade, revolucionou uma posição do Tribunal de Ética Profissional intocada por mais de dez anos. Abriam-se os olhos para aquilo que o  Dr. Vita Roso já batalhava há tempos. Entramos na discussão da AUDITORIA JURÍDICA. As consultas a respeito do tema, sua realização, a prática privativa por advogados, as regras éticas que a envolviam, suas responsabilidades e coisas mais. Recebemos, oportunamente, a didática obra de seu ferrenho defensor (ferrenho defensor de sua regulamentação pela Ordem e de sua inclusão como atividade privativa da advocacia no texto da Lei nº 8.906/94). Repetiram-se as consultas sobre a AUDITORIA JURÍDICA, exteriorizando a preocupação de inédito campo de trabalho e uma quase ausência bibliográfica a respeito do assunto. Por tudo que tem acontecido, a respeito, expresso meu sincero agradecimento ao destinatário dessa missiva. Mas não termino, nem posso terminar aquilo que está ainda inacabado, ou seja, este relato. Fui agraciado com um importante elogio dirigido aos pareceres sobre a AUDITORIA JURÍDICA, proferidos sempre em parceria com os Fábios (o Kalil Vilela Leite e o Souza Ramaciotti), seguido de um exemplar de ‘O Direito em Migalhas’, de autoria do Dr. Vita Roso. E a cada noite leio pelo menos um capítulo. Aí é que vem o bom da história. Noite dessas estou lendo o artigo publicado na terça-feira, 20 de setembro de 2005 (página 237 e seguintes). Denomina-se ‘JURISTAS UNIVERSALES: JURISTAS ANTIGUOS’. Fala sobre a vida e obra de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino. Aprendo alguma coisa a mais sobre esses dois santos juristas. Chego aonde queria, neste relato. Surpreendentemente após terminar seu artigo o autor acrescenta um P.S. (post scriptum): ‘Parece incrível, caros migalheiros, que, encerrado o artigo,  já digitado e corrigido, eu me lembre de ter lido, em 1949, um livro que tem o nome 'Do Governo dos Príncipes ao Rei de Cipro e Do Governo dos Judeus à Duquesa de Brabante', escrito por São Tomás de Aquino e traduzido e anotado pelo Professor Arlindo Veiga dos Santos, editado pela primeira vez em 1937 e, em 1946, reeditado.  Que tem a ver com o artigo e, sobretudo, com Tomás de Aquino? Antes de qualquer coisa, quem foi Arlindo Veiga dos Santos?’. Responde o Dr. Jaime Vita Roso: ‘Tive a honra de ser seu aluno por dois anos no antigo Colégio Anglo-Latino, quando ainda estava localizado na confluência da Rua da Glória com a Rua São Joaquim. Era um colégio de classe média, sem cursinho, e os alunos da área humana ingressavam, na maioria absoluta, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, logo no primeiro exame. É o caso desse modesto escriba. Arlindo era negro. Sabia impor de tal forma a sua personalidade que mesclava autoridade com extremada educação. Sempre o elegemos como o grande professor, o professor amigo, o professor de cultura acima do normal. Carinhosamente, era o professor ‘Dantop’: negro de alma branca. Formado em Filosofia pela Faculdade São Bento, entre 1921 e 1923, iniciava sua carreira profícua de escritor, escrevendo ‘Os filhos da cabana’, juntamente com ‘Amar... e amar depois’, que recebeu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras, em 1923. Monarquista convicto, foi fundador do movimento ‘Pátria nova’, que pregava uma monarquia adequada à realidade brasileira contemporânea. Aos domingos, em um pequeno escritório localizado na Praça Clóvis Bevilácqua, reunia alguns amigos e correligionários e, candidamente, analisávamos e discutíamos as grandes mazelas que a república, que nós chamávamos 'res pública', havia ocasionado ao país. Todos nós, seus simpatizantes, deleitávamos com o vigor daquele homem, da sua extrema franqueza e convicção religiosa, realçando que não se casara por não ter encontrado a mulher dos seus sonhos e, por isso, mantinha-se casto, por fervor religioso. Pois bem, Arlindo era um escritor que, entre o mencionado biênio (21/23) e 1946, escreveu dezoito livros e, nesse ano da graça de Deus, tinha já prontos e preparados para publicar outras obras interessantíssimas, o que chegou a fazer, posteriormente: ‘Alma de negro’, ‘História de um amor fingido’, ‘Contos da terra ingrata’, ‘Palavra nova’, ‘Versário de amor’, entre outras. Dominando a língua latina, fez primorosa tradução daquelas obras importantes de Tomás de Aquino. Como esse migalheiro, Arlindo Veiga dos Santos tinha um amor incandescente pelo seu país. Na orelha do livro, alguém escreveu palavras que, quase sessenta anos depois, mantém-se de uma atualidade espantosa, frente à miséria política brasileira. (...). Bom, caros migalheiros, o fato de ter acrescentado este 'post scriptum', em que rememoro figuras inolvidáveis de nossa 'inteligentzia', pode levar à reflexão de como se deve participar politicamente e não se deixar abater diante do  que ocorria há séculos, como diz Tomás de Aquino, bem como disse Arlindo na orelha do livro e, ainda, (o meu professor na PUC, Leonardo) van Acker nos prefácios. Há esperança, sim, mas na sociedade virtual, em participação, sobretudo dos jovens advogados, para reforma dos costumes, que será decisiva’. Agora entro na história como personagem. A emoção desse surpreendente post scriptum foi indescritível. Explico: Estava eu ainda na adolescência. Início da década de 60. A antiga chácara de meu avô materno, Túlio Brancaleone, o Capitão de Aventuras, localizada exatamente no centro da cidade de Guarulhos, abrigava catorze parentes, mais a empregada, que se fosse hoje levaria todos os nossos bens em retribuição de seus direitos trabalhistas (trabalhava como uma escrava, não mais, porém, que todas as outras mulheres da ‘chácara’). Todos os dias à mesa sentavam-se pelo menos vinte pessoas para almoçar. E duas ou três vezes por semana aparecia para o café da manhã um amigo de meu pai. Eventualmente outros mais. Esse amigo, tal e qual o professor do Dr. Vita Roso, era negro. ‘Sabia impor de tal forma a  sua autoridade com extrema educação’. Educação superior à nossa, rudes descendentes de imigrantes italianos. Meu pai alfaiate, meu tio vendeiro, ambos autodidatas. Extremamente simples. Sabia-se que o amigo negro era professor. Um chocolate puro. A alma e a pele da mesma cor. Ambas puras. Também era monarquista convicto e ativista, talvez até fundador do movimento ‘Pátria Nova’. Imaginávamos que tivesse escrito muitos livros. Uns vinte ou mais que isso. Demorava meia hora. Achávamos que não tinha tempo. Hoje sabemos que meia hora era o tempo que tinha. Habitava em uma casa de madeira, pré-fabricada, com uma biblioteca de mais de 5.000 livros (em tais condições travava uma constante batalha contra três pragas: o cupim, a traça e a ignorância). A única em Guarulhos. Na avenida Esperança, junto com duas irmãs, solteiras como ele.   Puxa! Quanta coincidência com aquele professor citado pelo Dr.  Jaime. Conversava com todos, pois todos se juntavam a ele quando aparecia. Depois, disfarçadamente conversava com meu pai em separado. Só com meu pai. Confesso que havia algum preconceito racial na família. Inofensivo, é lógico, puro sangue italiano. Mas aquele negro se impunha pela superioridade, pois, superior que era, nos tratava como iguais. Sabíamos que não era pouca coisa. Agora sabemos que era muito mais. Despedia-se levando consigo o mesmo sorriso que o trouxera e deixava um exemplar do jornal ‘Monarquia’. Meu pai comentava: – Gasta todo o seu salário nestes jornais.  Meu tio completava: – É louco. Passados alguns dias lá estava ele novamente tomando café em ‘famiglia’ . Com seu cariz iluminado, sua castidade e sua 'inteligentzia'. E por pura coincidência chamava-se Arlindo Veiga dos Santos,  como  o  D a n t o p’. Afetuosamente,"

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