Circus

18/12/2006
José Roberto Ferreira Militão - São Paulo, OAB/SP 82.946

"Quase todos os finais de semanas somos brindados com a prazerosa prosa na coluna do Doutor Suannes (Circus 21 – 15/12/06 – clique aqui). Entretanto essa última é de uma infelicidade monumental, embora útil por servir a uma reflexão, pois, sem desejar revela nas entrelinhas a enorme carga de preconceitos que os brasileiros carregam inseridas nas profundezas da alma, mesmo que inconscientes, decorrentes da antiga e perniciosa cultura da exclusão dos afrodescendentes das oportunidades e da igualdade de tratamento. Embora não seja um jurista do mesmo escol do autor, quase um autodidata, procuro compreender e debater as relações sociais e ajudar a construir uma sociedade fraterna, solidária e definitivamente livre dos preconceitos raciais e do próprio racismo, razão pela qual tenho me alinhado com o movimento que não aceita os Projetos de Leis de 'cotas raciais'. Sou contrário a cotas por motivos diversos do consagrado articulista: sou contrário porque 'cotas' viria tornar estatal, institucional a idéia de 'raças' que socialmente existe e produz preconceitos e discriminações iguais as do autor. Sou contrário a 'cotas', porque, cotas segrega, divide, separa e contempla o ideal dos racistas: somos diferentes não podemos ser iguais. Sou contrário a cotas porque sou anti-racista convicto que não admite a identidade jurídica das pessoas a partir de sua origem, sexo ou cor. Por fim, milito contra as Leis de cotas porque para vencer a cultura racista precisamos destruir o seu núcleo que é a crença em raças. Entretanto é totalmente equivocada a informação que há evasão de mais da metade dos contemplados por cotas nas universidades brasileiras. Segundo a Unicamp e UERJ (nov2006), o índice de evasão é o mesmo dos não cotistas e o rendimento acadêmico tem sido superior, em média. A questão também não é ser 'mais ou menos dotado', pois, diferente de tempos antigos, os vestibulares de hoje possuem um defeituoso sistema de aferição do mérito, que beneficia as fórmulas decorebas e em que se exige saberes não franqueados a parte dos candidatos, embora um talentoso estudante pobre de escola pública pudesse ter aproveitamento acadêmico extraordinário ele não disputa em igualdade de condições. A solução disso, não são as cotas (por seus efeitos colaterais retro citados), é a melhora da educação básica e a modificação na aferição do mérito em prol da busca por talentos com aperfeiçoamento das avaliações desde o ensino fundamental e ensino médio. A universidade, pública em especial, deve ser franqueada aos que tenham vocação acadêmica e não apenas a dotação orçamentária, pois quando diplomados, jamais será revertida aos serviços públicos e ao interesse coletivo e social. Há no Brasil, e no mundo, milhares de exemplos de pessoas geniais que não conseguiram vencer essa barreira do mérito equivocado. Porém, para combater o racismo, em vez de atacar a todos como racistas empedernidos, tenho procurado a interlocução, especialmente para lhes revelar a condição de vítimas de uma cultura que, nos cinco séculos de história do Brasil, ficou sedimentada em mais de três séculos do criminoso regime de escravidão humana, que tinha o africano e os pretos em geral, tratados e (des) respeitados com o mesmo estatuto reservado aos animais. Depois, neste quarto século seguinte, após 1888, essa cultura não foi removida e a abolição da escravidão significou mais a mudança de um sistema econômico do que uma revolução social, conforme se deveria esperar de um regime que afetava a vida e os direitos humanos de 2/3 da população, que foram simplesmente deixados para trás. Os antigos escravos e os negros livres, que não foram indenizados, nem tinham um FGTS para o recomeço de uma vida (totalmente nova para quem era filho, neto e bisneto de escravos) foram abandonados inteiramente, os seus braços, único patrimônio valorado, foi substituído por um programa estatal de subvenções para a imigração européia e nipônica. A 'queima' dos arquivos da escravidão, determinada por Rui Barbosa, Ministro da Fazenda, é simbolicamente isso: o esquecimento de um passado trágico, 'nódoa que nos envergonhará perante a humanidade', constatava para a história o autor da 'Oração aos Moços', de 1921. Ora, a pretexto de falar de cultura e de seu significado, a narrativa do ilustre colunista vai desde a identificação da cor de uma balconista ‘mulatinha’ pouco letrada, até a insinuação da incompetência do negro que é Ministro da Cultura, embora todo o 2º. escalão não o seja, como se em ambos os casos, por coincidência, a cor das pessoas identificadas tivessem qualquer relação de causa e efeito com suas respectivas (in)competências. Pois bem, a culpa afinal, é da 'mulatinha' ou da política de educação e descaso com os mais pobres, que, ao ter acesso à universalização da educação formal, são contemplados por políticas públicas que produzem esses milhões de jovens analfabetos funcionais? A culpa é do Ministro/cantor e sua orientação política de resgate de saberes culturais do povo, ou das antigas práticas da cultura única eurocêntrica imposta desde sempre?  Para a reflexão crítica que ouso, destaco um parágrafo, in verbis:

'Claro que o fato de elas serem mulatas é apenas um dado a mais do problema, sugerindo que pessoas mal preparadas estão sendo empregadas em funções onde lhes pagam salário mínimo, como lhes pagariam em qualquer atividade braçal. Fossem loiras ou nisseis e possivelmente agissem da mesma forma, pois a regra, atualmente, é contratar pessoas com a mais baixa escolaridade possível, mesmo quando a função a ser desempenhada exija algum discernimento que essas pessoas, culturalmente mais simples, não possuem.'

Aliás, do trecho acima, espanta a afirmação que a cor das meninas seja 'um dado a mais do problema'. O autor não esclarece qual é o dado a mais... fica portanto insinuado um não desejado preconceito. Por seu lado, a identificação da cor das 'mulatinhas' serviu apenas para reduzir o correto diagnóstico da 'mais baixa escolaridade possível', que era de fato a constatação e a denúncia feita, embora desfocada. Com a devida e merecida vênia, a coluna dessa semana não se posiciona a altura das vinte anteriores, nem conforme a vasta sabedoria do ilustre autor. A constatação que fica, é que a única contribuição e exemplo de 'cultura' que nos trouxe, é que a cultura de raças e dos preconceitos é tão profunda e inconsciente que atua dessa forma tão extraordinária e subliminar. Não poderia, como combatente, ao racismo deixar de consignar. Com meus votos a todos de feliz 2007, fica consignado um protesto e a reflexão do ponderado pois, segundo Sócrates preferível a morte a deixar de fazê-la: 'A vida sem reflexão não vale a pena ser vivida'. Abaixo as cotas e os preconceitos 'raciais'."

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