Ronaldo Esper

8/2/2007
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Ainda os vasos do cemitério. Juca Chaves contava a história de um indivíduo que estava em um vôo, sentado ao lado de uma bela mulher. De repente, perguntou a ela se aceitaria ir para a cama com ele por 1 milhão de dólares. Ela, de imediato, respondeu que sim. Após pequena pausa, volta ele ao assunto, perguntando se aceitaria ir para a cama com ele por 100 dólares, ao que ela, indignada, respondeu que não, claro que não: 'você pensa que sou uma prostituta?'. E o perguntador, então, teria dito que: 'Isso já foi resolvido na resposta à primeira pergunta. Agora, só estou negociando o preço'. Lembro-me de meus tempos de faculdade, nas Arcadas, na época do início do governo militar no Brasil, quando muitas pessoas foram presas, exiladas, torturadas e, até, afastadas de cargos que ocupavam. Um dos afastados, na ocasião, foi um de meus professores, que ocupava cargo alto em instituição financeira estatal, sob acusação de prevaricação, ou seja, por estar envolvido em desvio de determinado valor em dinheiro. Ainda me lembro da minha surpresa, jovem estudante à época, ao ouvir a reclamação do mestre, alegando que muita gente, que havia desviado mais não fora afastada e que ele, responsável apenas pelo desvio de valor que considerava pequeno, não merecia ter sido afastado. Já naquela época, lembro-me de ter pensado: 'Meu Deus, ele está discutindo o tamanho do crime...'. Os anos se passaram, a vida mudou desde então, novas teorias apareceram até se chegar à da insignificância, ou da bagatela, utilizada nos dias de hoje pelos juízes e tribunais para deixar de apenar o furto de um xampu, de um refrigerante, de pequena quantidade de manteiga ou de um desodorante, pequenos delitos que não justificariam a prisão de seus autores. De fato, vem se assentando o entendimento de que o furto, consumado ou não, de objetos de pequeno valor não merece a atenção do Direito Penal, entendimento esse que se funda, também, na consideração de que em um país onde a impunidade é a regra e o Judiciário não dá conta de julgar os processos em tempo razoável, não faria sentido gastar tempo e recursos para tratar de bagatelas. Até aí, tudo bem, mas é claro que a não punição de pessoas que atentem contra o disposto no artigo 155 do Código Penal, na subtração, para si ou para outrem, de coisa alheia móvel, não pode se transformar em regra, deixando de ser um crime para se tornar um hábito corriqueiro e um estímulo ao furto. No caso do furto, ou tentativa de furto, dos tais vasos do cemitério, o caso vem suscitando discussões e opiniões que, a meu ver, não são inteiramente palatáveis. Em o 'Consultor Jurídico' de 7/2/07, encontramos a opinião expressa por Luiz Guilherme Vieira, advogado criminalista, no sentido de que o caso dos vasos surrupiados pelo costureiro não merece a atenção da justiça, pois 'trata-se de algo que gastará tanto tempo e dinheiro do Estado, que qualquer punição não compensará'. Compensar o quê? A quem, pergunto-me. Já o advogado Jair Jaloreto Júnior, segundo a mesma publicação, é de opinião que os tais vasos não têm um valor relevante. Ou seja, se é baratinho, tudo bem. Marcelo Furman, advogado do costureiro, defende a tese, ainda segundo o 'Consultor Jurídico', no sentido de que 'não se furta o que está abandonado'. Em outro caso, de um rapaz que furtou uma fita de videogame avaliada em R$ 25,00, o ministro Celso de Mello, do Supremo, que concedeu habeas corpus requerido, perguntava, na fundamentação da decisão: 'Revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25,00'? Então, voltando à piada do início, é uma questão de valor, apenas, a vigência ou não do artigo 155 do Código Penal? Se assim for, e levando-se em conta a notória afirmação de Aristóteles, que a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades, e que o tratamento desigual dos casos desiguais é exigência do próprio conceito de Justiça, considerando-se, até, que a própria Lei autoriza discriminar a diferença entre pessoas, fatos e situações, a teoria da insignificância, ou da bagatela, vai acabar beneficiando os mais ricos, de vez que, para os mais abonados, o conceito de bagatela, ou de insignificância pode ser mais elástico. Voltando ao caso do costureiro, qual o valor, afinal, dos vasos, se é que isso é o que importa? Notícias dos jornais informavam serem vasos de mármore de carrara, material corriqueiro, talvez, para um estilista televisivo. Não parece razoável igualar o furto de um pote de manteiga, por quem não tem como adquiri-lo, ou um frasco de xampu por pessoa de baixo nível social e intelectual, ao furto, deliberado, praticado por pessoa capaz, de situação financeira confortável e intelectualmente conhecedor de suas obrigações, julgando uma bagatela o delito praticado, ou insignificante a repercussão do caso e o exemplo resultante do fato. A tese da defesa, no sentido de que não se furta o que está abandonado, deixando de lado que não pode ser considerado abandonado o acessório de um túmulo no interior de um cemitério, pode ser assemelhada ao velho provérbio infantil de que 'achado não é roubado', dificilmente aplicável ao caso concreto, e nem previsto nas nossas Leis. No caso dos vasos pretendidos pelo costureiro, menos que o valor deles, independentemente do destino que o agente pretendia dar-lhes, sem outras discussões a respeito, dever-se-ia considerar o exemplo dado por pessoa notoriamente conhecida do público telespectador, tão bombardeado por outros tantos maus exemplos, obviamente apto a ser imitado passando a servir como modelo de comportamento socialmente aceitável, o que, certamente, além de não ser, não traz qualquer benefício educacional ao povo brasileiro, tão carente de exemplos dignos."

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