Direito de Família

16/2/2007
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668

"Doutos Migalheiros, V. Sas. incorrem em falácias. Migalheiro Sergio Manbenji Norett, não quero 'destruir' nenhuma família nem é isso que minhas colocações ensejam: apenas exijo que o Sr. e todo aquele que professe esta ou aquela religião respeite(m) o fato de existirem outras famílias tão dignas quanto a 'família cristã', famílias estas formadas pelo amor, pelo sentimento de construção de uma vida em comum, o que não precisa coincidir necessariamente com dogmas religiosos, razão pela qual ditas famílias merecem a mesma proteção jurídica conferida à 'família cristã'. O Brasil é um Estado formalmente laico – a prática infelizmente ainda não corresponde à norma constitucional, o que tem permitido que diversos parlamentares religiosos dificultassem a votação de projetos contrários a seus dogmas. Ademais, o fato do preâmbulo invocar a proteção de Deus não significa que o Brasil se envolva com uma ou outra religião, apenas que é um Estado religioso, ou seja, que acredita na existência de Deus mas que, pelo princípio do Estado Laico (art. 19, inc. I), não se deixa (ou melhor, não se deveria deixar) influenciar por religião alguma. Acredita em Deus mas é Laico. Lembre-se, ainda, que o STF não confere eficácia interpretativa ao preâmbulo, para usar de outro argumento puramente jurídico. No mais, V.Sa. fala como se os cristãos fossem um grupo marginalizado, desprezado e sem representação: muito pelo contrário, as diversas 'bancadas religiosas' (em especial a evangélica) demonstram que vosso movimento religioso é muito bem organizado, talvez o mais organizado e representado do país, e que fazem tudo que podem para que projetos que contrariem seus dogmas religiosos não sejam aprovados, independente do que o conhecimento humano, científico, lógico-racional diga. V.Sas. não estão preocupados com o conhecimento humano, apenas nos dogmas de suas religiões, os quais V.Sas. querem IMPOR a todos, mesmo àqueles que não professam vossa fé e/ou religião. O que o migalheiro tem que entender é o seguinte: o fato de se permitir o divórcio, de se dar autonomia isonômica à mulher, de se reconhecer o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas etc. não interfere em nada na vida daqueles que querem seguir os dogmas da moralidade cristã. Defender o Estado Laico não é pregar uma 'ditadura ateísta' (sic – eu sou agnóstico, diga-se de passagem), é apenas exigir respeito e direitos iguais àqueles que não compartilham dos preceitos religiosos em questão. Por oportuno: eu nunca disse que todas as mulheres que trabalham em casa são oprimidas e não se sentem realizadas, não coloque palavras na minha boca: apenas critiquei sua colocação aparentemente contrária à isonomia jurídica dos sexos, nada mais. Quanto ao amor homoafetivo meu caro, sua falácia beira o sofisma (quero crer que seja uma falácia): é óbvio que um homossexual não vai falar ao outro 'como está a gravidez?' ou algo do gênero, agora o amor que ele sente pelo seu companheiro, no sentido de querer passar a vida a seu lado, nas alegrias e tristezas, na bonança e nas dificuldades, esse amor é idêntico ao das uniões heteroafetivas (idem para as homossexuais femininas). A questão da capacidade procriativa é tão irrelevante do ponto de vista jurídico que não se proíbe nem se anula o casamento de dois heterossexuais estéreis (no caso da anulação, quando ambos sabem disso). Não estou menosprezando 'a potência procriadora do homem' (sic), apenas dizendo que ela não é nem nunca foi juridicamente relevante para se possibilitar o casamento civil e mesmo a união estável. Realmente não prego uma desistência fácil do casamento civil: tanto que concordo com o lapso mínimo de um ano para que ambos possam se divorciar sem justo motivo (elencado pela Lei) – se o prazo poderia ser eventualmente maior, isso é uma outra discussão. O 'poder sacramental' (sic) do matrimônio é, data venia, irrelevante para o Direito Laico: se o Sr. quiser discutir 'sacramentos' no Direito, que ingresse na seara do Direito Canônico. Note migalheiro, novamente, que o fato de se permitir o divórcio no casamento civil não implica no divórcio do casamento religioso: um cristão que comungue do seu entendimento não irá se divorciar e, se seu(ua) companheiro(a) o forçar a esta situação, este divórcio civil contra a sua vontade não fará com que este cristão tenha afrontado os dogmas de sua religião – apenas não terá tido como evitar a situação, ocorrida pela vontade, pelo livre-arbítrio (para usar um termo que as religiões muito gostam) do outro. Por outro lado, a separação do Direito Laico do Direito Canônico (religioso etc.) dá àqueles que não professam da sua religião o direito de regularem suas vidas como bem entenderem, segundo o ordenamento jurídico laico – princípios da autonomia da vontade, da liberdade de consciência, direito à personalidade, dignidade humana (direito de ser tratado com dignidade mesmo não tendo esta ou aquela religião) etc. – todos princípios constitucionais, ressalte-se, que são direitos fundamentais de todos, não apenas dos religiosos. A dignidade humana não é algo necessariamente religioso caro migalheiro, tanto que o conceito de dignidade hoje prevalecente não é o do antigo 'Direito Natural' (interessante, aliás, vocês chamarem de 'Natural' baseados na fé cristã quando há bilhões de pessoas no mundo que consideram como 'Natural' preceitos de outras religiões que não a sua...). Quanto à homossexualidade, sugiro ao migalheiro atualizar-se e ver que a Organização Mundial de Saúde diz desde 1993 que 'A orientação sexual por si não deve ser vista como um distúrbio' (sic –  CID 10/93), da mesma forma que o Conselho Federal (Brasileiro) de Psicologia, na Resolução 1/99 estabelece que a homossexualidade não é doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero, donde se percebe ser ela tão normal quanto a heterossexualidade (mesmo entendimento da Associação Americana de Psiquiatria, que o tem desde a década de 1970). Aliás, é por isso que 'homossexualismo' (sic) é um termo errado, porque 'ismo' significa 'doença', ao passo que 'dade' significa 'modo de ser', sendo portanto homossexualidade o correto. Quanto ao migalheiro Otávio José da Costa: prezado, justamente por proibir o Estado de manter relações de dependência com Igrejas e afins é que a CF/88 proíbe que fundamentações religiosas influenciem os rumos políticos e jurídicos do país – pois, do contrário, aquela proibição seria inócua (pois a utilização da religião para tanto implicaria certamente numa aliança/dependência, ainda que tácita). Quanto ao crucifixo, lembre-se que a sua presença no Legislativo não é condição para exercício de cargos legislativos e sua retirada não restringe qualquer prerrogativa (como a liberdade de crença), visto que a Casa Legislativa não é local de culto e trata-se ele (crucifixo), data maxima venia, de mero enfeite/aspecto decorativo, cabendo ao regimento interno da Casa Legislativa em questão disciplinar como se dará a questão de manutenção e/ou remoção dos enfeites, conforme decisão do TJ/SP no MS 13.405-0 com a qual concordo plenamente. O quanto dito pelo migalheiro Bernardo Bianchi Neto creio já ter refutado na resposta ao migalheiro Sérgio, acima – do contrário, diga que terei prazer em lhe responder."

Envie sua Migalha