Lei de Cultivares

30/6/2008
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"A Lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997, que instituiu a Lei de Proteção de Cultivares (clique aqui), foi regulamentada pelo Decreto nº 2.366, de 5/11/97 e seu objeto de proteção é

· o cultivar, definido como a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como

 

· a linhagem componente de híbridos. 

na forma do art. 8º da Lei, a proteção do cultivar recairá sobre o material de reprodução ou de multiplicação vegetativa da planta inteira, e o artigo 10 estabelece algumas limitações ao direito de propriedade: 

Art. 10: não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que:

I – Reserva e planta sementes para o uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimentos de terceiros cuja posse detenha;

II – Usa ou vende como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos;

III – utiliza a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica;

IV – Sendo pequeno produtor rural, multiplica sementes, para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo poder público.

Embora haja quem faça alguma confusão entre as Leis de Proteção de Cultivares e a Lei de Propriedade Industrial, no tocante a patentes, são mecanismos distintos de proteção à propriedade intelectual. A proteção de cultivares não é a patente de novas variedades, já que os direitos concedidos por esta lei não impedem o uso, pela pesquisa, da cultivar protegida para a obtenção de novas cultivares por terceiros, mesmo sem a autorização do detentor do direito, cujos registros são efetuados pelo Ministério da Agricultura e Abastecimento, por meio do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC). Recentemente, a deputada Rose de Freitas (PMDB/ES) deu entrada em um Projeto de Lei, o PL 2.325/2007 (clique aqui), que altera a Lei nº 9.456/97, que instituiu a Lei de Proteção de Cultivares, o qual está sendo alvo de discussões não só no Congresso mas, também, fora dele, já que pretende alterar quatro artigos da Lei em vigor: os artigos 8º, 9º, 10 e 37. Ditas alterações pretendem estender a proteção da cultivar para todas as plantas – atualmente só protege as estruturas reprodutivas –, ampliar o direito de propriedade a qualquer atividade com a planta protegida – produção, comercialização, exportação, armazenamento de parte ou da planta inteira –, e proíbe a comercialização de produtos colhidos sem a autorização do detentor dos direitos de proteção. De tudo o que foi discutido a respeito do assunto, inclusive em audiência pública ocorrida na Câmara dos Deputados, o que ficou claro, ou mais evidente, é que o Projeto de Lei que pretende alterar a Lei de Proteção de Cultivares serve apenas às grandes multinacionais, proprietárias das sementes que passarão, também, tornado Lei o projeto, a controlar e receber 'royalties' pela seqüência da produção e comercialização dos produtos, restringindo ainda mais, a livre utilização dos recursos genéticos para a agricultura, estabelecendo que os direitos do obtentor ou melhorista se ampliam até o produto da colheita, abrindo a porta para a cobrança de 'royalties' sobre a produção. O artigo 37 do Projeto de Lei criminaliza muitas práticas que são comuns aos camponeses e pequenos agricultores familiares, e que são fundamentais para a reprodução de seu modo de vida, afetando drasticamente a realidade de mais de 4 milhões de famílias que são responsáveis pelo incremento de mais de R$ 156 bilhões ao PIB brasileiro, aumentando, consideravelmente, o custo de produção de alimentos no Brasil, custo esse que, afinal, será repassado ao consumidor final, impulsionando a inflação e contribuindo para agravar, ainda mais, a crise de alimentos. De fato, de acordo com o art. 37 do projeto:

'Aquele que vender, oferecer à venda, reproduzir, importar, exportar, bem como embalar ou armazenar para esses fins, ou ceder a qualquer título, material de propagação de cultivar protegida, com denominação correta ou com outra, sem autorização do titular, fica obrigado a indenizá-lo, em valores a serem determinados em regulamento, além de ter o material apreendido, assim como pagará multa equivalente a vinte por cento do valor comercial do material apreendido, incorrendo, ainda, em crime de violação dos direitos do melhorista, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis'. 

Esse o principal ponto negativo do Projeto de Lei 2.327/2007, nefasto mesmo, diante do panorama de crise mundial de alimentos. Em época de alta de inflação, impulsionada pelo aumento no preço dos alimentos e fertilizantes, a resposta do Governo Federal, aliás já anunciada pelo presidente, só poderia ser o fortalecimento da agricultura familiar, responsável por mais de um terço do Produto Interno Bruto das cadeias agropecuárias e de 10% do PIB nacional. O argumento dos que defendem o projeto, no sentido de que a Lei, como está, possibilita que os grandes produtores se utilizem do direito de guardar sementes para a próxima safra, para não pagar direitos de propriedade intelectual, ou seja, que é um instrumento para combater a 'pirataria', não prospera já que existem sanções previstas na Lei atual que podem e devem ser aplicadas. Se a fiscalização não é eficiente, não será restringindo, ainda mais, o uso das sementes, que o sistema será eficaz e a Lei efetivamente cumprida. Além disso, o Projeto de Lei em questão contraria a lei que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar (Lei 11.246/2006), porque restringe o direito dos agricultores de usufruto sobre os produtos gerados pela atividade agrícola. E, mais ainda, pressiona os custos de produção de alimentos. A referida lei prevê expressamente:

'(a) a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; (b) a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; (c) a produção de conhecimento e o acesso à informação entre outros.'

Por outro lado, o Projeto de Lei da deputada Rose de Freitas criará restrições ao acesso aos alimentos e suas condições de produção, desestimulando a diversificação dos sistemas produtivos, na medida em que cria obstáculos à livre comercialização dos produtos da biodiversidade, além de criar entraves à livre circulação de conhecimentos. E, acima de tudo, 'royalties', 'royalties' e mais 'royalties', sobre toda a cadeia agrícola, desde a semente, passando pela colheita, até a indústria, ao produto alimentício, justamente diante de uma crise alimentar de proporções planetárias, visando o benefício, não das populações carentes de alimentos, mas das grandes multinacionais, que participarão dos lucros gerados pela miséria internacional."

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