Recentemente, a comunidade arbitral foi surpreendida com decisão de lavra do D. Juízo da 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem da Comarca de São Paulo/SP1, a qual, ao julgar ação anulatória de sentença arbitral, admitiu que uma ação anulatória anteriormente proposta poderia ser aditada, em caráter excepcional, para que a parte apresentasse novos argumentos a respeito do pleito anulatório, não expostos na ação anterior.
Basicamente, entendeu o D. Magistrado sentenciante, dentre outros pontos que: (i) o prazo, de natureza decadencial, para anular sentença arbitral pode ser excepcionalmente dilatado para que, num segundo momento, (ii) possa se aferir eventual descumprimento do dever de revelação por parte dos árbitros sentenciantes. Dessa forma, se apegando à tese desenvolvida pela parte autora da ação anulatória, o referido Juízo anulou, em momento posterior ao escoamento do prazo fatal de 90 (noventa) dias previsto no art. 33, § 1º da lei 9.307/96 (“lei de arbitragem”), sentença arbitral oriunda de processo que teve início em 2017.
Não é objetivo dessas linhas tecer considerações aprofundadas acerca do debatido dever de revelação, que perfez o objeto central da ação anulatória proposta intempestivamente. Ao revés, pretende-se apresentar breves críticas à indevida prorrogação de um prazo legal considerado peremptório e criado para dar segurança jurídica às partes que contendem numa arbitragem: o prazo de natureza decadencial para anular a sentença arbitral.
A arbitragem, seja no Brasil, seja nas legislações de países que a utilizam com frequência, em âmbito interno e internacional, se insere num microssistema, dissociado do processo estatal, que funciona com base em regras especiais e com fundamento nos princípios da confiança, da lealdade, da probidade e da ampla autonomia da vontade das partes.
A lei de arbitragem estabelece mecanismos de modo a preservar a higidez do processo arbitral e a sentença que dele deriva, mediante a criação de duas regras fundamentais: a primeira, a da irrecorribilidade de sentença arbitral, que tem o seu trânsito em julgado desde o momento em que proferida2. A segunda, e em linha com a Constituição Federal, a possibilidade de uma das partes requerer, perante o Poder Judiciário, em fase pós-arbitral, a anulação da sentença arbitral. Tal possibilidade assegurada pela lei de arbitragem, é a de requerer a anulação da sentença arbitral diante de hipóteses formais e taxativas, ditadas pelo art. 32 do referido diploma legal. E, de modo a preservar o aspecto temporal, condizente com a peculiaridade do sistema arbitral, repita-se - de início meio e fim e sem a possibilidade de recurso -, o legislador estabeleceu prazo de natureza peremptória, ou simplesmente fatal, de noventa dias para o ajuizamento da aludida demanda anulatória3.
Com efeito, o prazo de noventa dias estabelecido pelo art. 33, § 1º da lei de arbitragem possui a função de criar um estado de sujeição à parte interessada em desconstituir o julgado arbitral, em benefício do tempo, no seu mais puro sentido social. Tal estado de sujeição cria para a parte interessada o exercício de um direito potestativo, justificando-se assim, como prazo de natureza decadencial. Nesse sentido, a clássica lição de Agnelo Amorim Filho: “o prazo previsto expressamente em lei, para exercício das pretensões que se ajuízam mediante ação constitutiva, positiva ou negativa, é de decadência, pois a pretensão constitutiva se caracteriza como direito potestativo”4.
Justamente em razão do estado de sujeição que se submete a parte afetada, o prazo que decorre desse estado tem como efeito, “extinguir diretamente o direito a ela subordinado” e “extinguir ou impedir indiretamente a ação correspondente”5. E, por consequência, tal prazo, de caráter eminentemente material, não é suscetível de suspensão, interrupção e prorrogação6. Tal premissa, é confirmada pela clássica doutrina de Câmara Leal:
“A decadência se opera, automaticamente, pelo decurso do prazo extintivo e inércia do titular. Verificadas essas duas condições, a sua consumação é fatal, não admitindo causas preclusivas (...) Somente o exercício efetivo do direito, dentro do termo, a ele prefixado, impede a decadência”7.
No mesmo sentido, e fazendo um paralelo com o instituto da prescrição, cita-se a igualmente clássica doutrina de Santiago Dantas:
“Ao lado da prescrição extintiva, temos um instituto que com ela guarda poderosa afinidade: é a decadência. A decadência e a prescrição extintiva não estão claramente separadas na sistemática das nossas leis, mas são dois institutos completamente diversos. Enquanto que a prescrição geralmente consiste no decurso de um prazo, que se interrompe, que se suspende, que pode, por conseguinte, recomeçar a contar muitas vezes, e que as partes interessadas precisam alegar para que o juiz dela tome conhecimento, as decadências são aquelas que, na linguagem forense, costumamos chamar prazos fatais. Nada os interrompe, nada os suspender e quando decorrem, o juiz pronuncia a decadência de ofício, sem ser necessário que ninguém a alegue (...)”8.
Tal entendimento, é também defendido pela doutrina moderna, conforme se verifica na lição de Thiago Ferreira Cardoso Neves:
“Por ser [a decadência] um instituto cuja característica é ser contínuo e peremptório e por dizer respeito a um prazo de direito material e não processual, as causas previstas para interrupção e suspensão do curso não lhe são aplicáveis. O sistema é tão rígido que ainda contra os incapazes não é admissível a interrupção ou suspensão da decadência, que se operará peremptoriamente”9.
E não é só. A própria jurisprudência dos tribunais pátrios já se consolidou no sentido da improrrogabilidade do prazo decadencial, quanto mais para anular a sentença arbitral. Confira-se, por exemplo, o que decidiu o STJ que, em decisão magistral confirmou tal posição, tomando como premissa essencial a importância do fator tempo na fase pós-arbitral, a bem da preservação da estabilidade e da segurança jurídica, livrando de riscos a indefinição temporal acerca das discussões de matérias atinentes à eventuais defeitos formais da sentença:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA ARBITRAL AJUIZADA APÓS O DECURSO DO PRAZO DECADENCIAL PARA AJUIZAMENTO DA AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE SENTENÇA ARBITRAL. IMPUGNAÇÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA SENTENÇA ARBITRAL. POSSIBILIDADE LIMITADA ÀS MATÉRIAS DO ART. 525, § 1º, DO CPC/15. JULGAMENTO: CPC/15.
1. Recurso especial interposto em 19/6/2019 e distribuído ao gabinete em 6/10/2020. Julgamento: CPC/15.
2. O propósito recursal consiste em decidir acerca da aplicação do prazo decadencial de 90 (noventa) dias, previsto no art. 33, § 1º, da lei 9.307/1996, à impugnação ao cumprimento de sentença arbitral.
3. A declaração de nulidade da sentença arbitral pode ser pleiteada, judicialmente, por duas vias: (i) ação declaratória de nulidade de sentença arbitral (art. 33, § 1º, da lei 9.307/1996) ou (ii) impugnação ao cumprimento de sentença arbitral (art. 33, § 3º, da lei 9.307/1996).
4. Se a declaração de invalidade for requerida por meio de ação própria, há também a imposição de prazo decadencial. Esse prazo, nos termos do art. 33, § 1º, da lei de arbitragem, é de 90 (noventa) dias. Sua aplicação, reitera-se, é restrita ao direito de obter a declaração de nulidade devido à ocorrência de qualquer dos vícios taxativamente elencados no art. 32 da referida norma.
5. Assim, embora a nulidade possa ser suscitada em sede de impugnação ao cumprimento de sentença arbitral, se a execução for ajuizada após o decurso do prazo decadencial da ação de nulidade, a defesa da parte executada fica limitada às matérias especificadas pelo art. 525, § 1º, do CPC, sendo vedada a invocação de nulidade da sentença com base nas matérias definidas no art. 32 da lei 9.307/1996.
6. Hipótese em que se reputa improcedente a impugnação pela decadência, porque a ação de cumprimento de sentença arbitral foi ajuizada após o decurso do prazo decadencial fixado para o ajuizamento da ação de nulidade de sentença arbitral e foi suscitada apenas matéria elencada no art. 32 da lei 9.307/1996, que não consta no § 1º do art. 525 do CPC/15.
7. Recurso especial conhecido e não provido”10.
O referido julgado, dentre outros emanados do próprio STJ11 e, ainda, por outros tribunais pátrios12, consolidou posicionamento insuperável no direito brasileiro: o prazo decadencial previsto no art. 33, § 1º, da lei de arbitragem é improrrogável diante de sua própria natureza material, sendo irrelevante a arguição de matéria suscitada a posteriori, tal como a que fora feita pela parte vencedora do pleito anulatório ora em discussão.
Ademais, o D. Juízo sentenciante incorreu em erro de julgamento ao possibilitar tal prorrogação, agindo em desacordo com a lei ao se sensibilizar por uma tese proposta de forma tardia e coberta pela preclusão, violando, assim a disposição contida no art. 20 da lei de arbitragem. Isso porque, quando do ajuizamento da segunda ação anulatória, já era de conhecimento público a atuação dos indigitados árbitros que teriam supostamente falhado no dever de revelação, em outro painel arbitral, processado perante uma câmara que divulga em seu website a composição dos seus tribunais arbitrais13. Com uma informação pública nesse sentido, ainda que não seja obrigatório, cabe à parte de boa-fé investigar informações públicas dos árbitros para fazer as indagações que entender pertinentes e indagar aos árbitros a respeito durante o curso do processo (ônus de investigação da parte), e não quando o resultado em seu desfavor é proferido14.
E, ainda que se considerasse possível a prorrogação do prazo decadencial (quod non), caberia ao juízo sentenciante determinar a produção de prova sobre o fato não revelado, mediante produção de mais documentos e, por que não, a oitiva dos próprios árbitros que teriam supostamente falhado no dever de revelação. Trata-se de medida processual que, ao menos, poderia trazer aos olhos do magistrado sentenciante, provas mais concretas sobre o citado fato não revelado, ao invés de julgar antecipadamente a lide com base em elementos trazidos de forma intempestiva pela parte sucumbente do processo arbitral que tramitou desde o ano de 2017.
É de enorme importância a adoção de muita cautela pelos magistrados ao analisar ações anulatórias de sentenças arbitrais. A par do equívoco técnico de se prorrogar um prazo improrrogável, devem os magistrados se ater à finalidade do processo arbitral, às provas lá produzidas, o resultado posto na respectiva sentença e, se o caso, a investigação profunda de um determinado fato não revelado15 e se tal fato foi determinante para o resultado do julgamento.
Com base nessas breves ponderações, espera-se que as instâncias superiores reformem o julgado em questão, restabelecendo a segurança jurídica imposta pelo sistema arbitral, em especial, a peculiaridade do prazo para que sentenças arbitrais possam ser levadas à anulação pelo Poder Judiciário.
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1 Processo 1146362-42.2023.8.26.0100. A sentença proferida no âmbito deste processo pode ser localizada por meio de acesso à seguinte matéria, publicada no portal Conjur: Arbitragem é anulada por omissão de vínculo com advogado. Acesso em 12 dez. 2025.
2 Ver, a esse respeito: TJSP, 35ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1115867-25.2017.8.26.0100, rel. Des. Gilson Delgado de Miranda, j. 19.08.2024. Para comentários a respeito ver NUNES, Thiago Marinho. Sentença arbitral e coisa julgada material. Fonte: Sentença arbitral e coisa julgada material - Migalhas. Acesso em 11 dez. 2025.
3 A esse respeito ver: NUNES, Thiago Marinho. O prazo fatal para impugnação da sentença arbitral. Temas de Arbitragem e outros Métodos Adequados de Solução de Conflitos – Vol I. São Paulo: Ed. Migalhas, 2025, p. 225.
4 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 300, p. 7, 1960.
5 CÂMARA LEAL, Antonio Luís da. Da prescrição e da decadência. 2. ed. atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 112.
6 O que, aliás, é confirmado pela disposição contida no art. 207 do Código Civil: “Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição”.
7 CÂMARA LEAL, Antonio Luís da. Da prescrição e da decadência. 2. ed. atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 11
8 DANTAS, Santiago. Prescrição e decadência. Programa de direito civil. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito. (1942-1945). Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 341-342.
9 NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. A decadência no direito civil brasileiro: revisitando os critérios de distinção da prescrição in A Juízo do Tempo: estudos atuais sobre prescrição (Coord. Maria Celina Bodin de Moraes, Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Eduardo Nunes de Souza). Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019, p. 564,
10 STJ, Recurso Especial nº 1.1900.136-SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, J. 06.04.2021, DJe de 15/4/2021.
11 Após o prazo de 90 dias da notificação das partes da sentença arbitral, opera-se a “coisa julgada” (STJ, AREsp 1.310.010-GO, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, J. 25.06.2018, DJE de 01.08.2018, monocrática); Ação anulatória de sentença arbitral parcial. A contagem do prazo decadencial constante do art. 33, § 1º, da Lei de Arbitragem inicia a partir da prolação da sentença arbitral parcial, independentemente da sentença arbitral final. Decadência da possibilidade de suscitar a nulidade daquela sentença (STJ, Quarta Turma, AgInt no AREsp 2.143.093-MT, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, J. 12.12.2022, DJE de 15.12.2022, unânime); Invocação de nulidade da sentença arbitral em sede de impugnação ao cumprimento de sentença arbitral após transcurso do prazo decadencial de 90 dias previsto para propositura de ação de nulidade. Decadência observada (STJ, Terceira Turma, AREsp 1.840.950-GO, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, J. 17/6/2025, DJE de 18.06.2025, unânime).
12 “É garantida às partes a demanda para a decretação da nulidade da sentença arbitral, a qual deverá ser proposta no prazo de até 90 dias contados após o recebimento da notificação da sentença ou de seu aditamento (art. 33, §1º, da Lei de Arbitragem)” (TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento 2246110-05.2024.8.26.0000, rel. Des. Azuma Nishi, j. 29.10.2024, DJE de 29.10.2024 unânime); A” natureza do direito envolvido é irrelevante para fins de fluição do prazo decadencial de 90 dias” (TJDFT, 1ª Turma Cível, Apelação Cível 0030786-83.2013.8.07.0007, rel. Des. Teófilo Caetano, j. 13.04.2016, DJE de 05.05.2016, unânime); Não há dilação do prazo decadencial de 90 dias quando seu termo final recai em finais de semana e feriados. Prazo que deve ser contado como prazo de direito material (TJPR, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível 0005996-65.2017.8.16.0194, rel. Des. Roberto Portugal Bacellar, j. 28.05.2019, DJE de 27.06.2019, unânime); O prazo de 90 dias é decadencial e não prescricional. Inaplicáveis causas interruptivas ou suspensivas da prescrição (TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 1017139-04.2017.8.26.0114, rel. Des. Ademir Modesto de Souza, j. 13.09.2021, DJE de 13/9/2021, unânime).
13 Consta dos autos do Processo nº 1146362-42.2023.8.26.0100 que tal informação existia desde 2018, quando a arbitragem que deu origem ao referido processo estava em seu pleno curso.
14 A esse respeito vide os enunciados 5 e 7 das Diretrizes do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre o dever de revelação do(a) árbitro(a): “5. As partes possuem o dever de colaborar com o(a) árbitro(a) para o correto exercício do dever de revelação deste(a), inclusive por meio da prestação de informações completas, precisas e atualizadas a respeito do conflito, das partes da arbitragem e, eventualmente, das pessoas interessadas no conflito. Este dever permanece durante todo o curso do processo arbitral, até o esgotamento da jurisdição do(a) árbitro(a).” e “7. A parte não poderá arguir - seja durante a arbitragem, seja depois do seu término - questões relativas à independência e imparcialidade do(a) árbitro(a), baseadas em informações reveladas pelo(a) árbitro(a) na arbitragem ou informações públicas e de fácil acesso às partes, se não tiver arguido tais questões na primeira oportunidade que teve de se manifestar na arbitragem, nos termos do art. 20 da Lei de Arbitragem.”
15 A esse respeito ver: NUNES, Thiago Marinho. Fato não revelado na arbitragem e produção de provas. Temas de Arbitragem e outros Métodos Adequados de Solução de Conflitos – Vol I. São Paulo: Ed. Migalhas, 2025, p. 365.