CPC na prática

Fundamentação das decisões judiciais, "precedentes" e "precedentes vinculantes"

Fundamentação das decisões judiciais, "precedentes" e "precedentes vinculantes".

15/8/2019

André Pagani de Souza

O art. 489, § 1º, inciso VI, do Código de Processo Civil de 2015 (CPC de 2015) estabelece que não se considera fundamentada a decisão judicial que "deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento".

Como se sabe, considerar uma decisão como sendo não fundamentada é algo gravíssimo e pode configurar uma nulidade porque um pronunciamento judicial com esta característica viola, a um só tempo, o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal (CF), e o art. 11, do CPC de 2015.

Portanto, é de fundamental importância saber qual o "precedente" invocado pela parte gera o dever para o órgão jurisdicional de "demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento", caso se decida deixar de seguí-lo.

Não se trata de atividade meramente acadêmica e despida de efeitos práticos conceituar o que é um "precedente" e o que seria um "precedente vinculante". Afinal, a qual espécie de "precedente" o art. 489, § 1º, inciso VI está fazendo referência? A resposta para esta pergunta pode levar à constatação de que uma decisão judicial deve ser considerada nula (ou não) por violar o art. 93, inciso IX, da CF, bem como o art. 11 do CPC de 2015.

Com efeito, há decisões que são pronunciamentos judiciais que, originários de julgamentos de processos concretos, querem ser aplicados também em casos futuros quando seu substrato fático e jurídico autorizar. Assim, tais decisões são chamadas de "precedentes" porque foram julgados com antecedência a outros processos. Tais decisões têm caráter meramente persuasivo e não necessariamente vinculante.

Com maior ênfase, o art. 927, do CPC de 2015, enumera uma série de decisões nos seus incisos I a V que os juízes e tribunais "observarão", tais como: as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em controle concentrado de constitucionalidade; os enunciados de súmula vinculante; os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Assim, os pronunciamentos judiciais mencionados no art. 927 do CPC de 2015 seriam precedentes, conforme já se conceituou acima, qualificados de observância obrigatória pelos órgãos jurisdicionais. Ou seja, as decisões mencionadas no art. 927 de 2015 seriam precedentes vinculantes.

Note-se que, mesmo se considerando apenas o universo das decisões mencionadas no art. 927 do CPC de 2015, há aqueles que sustentam que apenas os pronunciamentos dos incisos I e II seriam verdadeiramente vinculantes, pois as decisões do STF proferidas em controle concentrado de constitucionalidade vinculam por autorização constitucional (art. 102, § 2º) e os enunciados de súmula vinculante também vinculam por decorrência do art. 103-A da CF. As demais decisões do art. 927 (incisos III a V) teriam forte caráter persuasivo, mas não vinculariam, uma vez que o caput utiliza o verbo "observar" em vez do verbo "vincular", como o fez quando quis que a observância fosse obrigatória no § 3º do art. 947 do CPC de 2015 (Cassio Scarpinella Bueno, Manual de Direito Processual Civil, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2018, p. 698).

De qualquer modo, tudo indica que os tribunais estão fazendo uma distinção entre o que é simplesmente precedente e aquilo que deve ser considerado precedente vinculante. Tanto isso é verdade que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 1.427.771/SP, não declarou a nulidade de uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, na sua fundamentação, deixou de analisar todos os precedentes, acórdãos e sentenças suscitados pelas partes, para demonstrar a existência de distinção entre eles e o processo sob julgamento da Corte Bandeirante. Confira-se, a propósito, o trecho da ementa do acórdão em questão:

"AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRODUÇÃO DE PROVAS. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. SUFICIÊNCIA DAS PROVAS. DEVER DE MOTIVAÇÃO. ART. 927 DO CPC. ACÓRDÃO E SENTENÇA DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. NÃO CONSTAM DO ROL PRECEDENTES VINCULANTES. INEXISTÊNCIA DO DEVER DE ANÁLISE PORMENORIZADA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211 DO STJ. HONORÁRIOS RECURSAIS. MAJORAÇÃO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. REVISÃO INVIÁVEL. SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO.

(...)

3. O julgador não é obrigado a discorrer sobre todos os argumentos levantados pelas partes, mas sim decidir a contento, nos limites da lide que lhe foi proposta, fundamentando o seu entendimento de acordo com o seu livre convencimento, baseado nos aspectos pertinentes à hipótese sub judice e com a legislação que entender aplicável ao caso concreto.

4. Com exceção dos precedentes vinculantes previstos no rol do art. 927 do CPC, inexiste obrigação do julgador em analisar e afastar todos os precedentes, acórdãos e sentenças, suscitados pelas partes.

(...)

(AgInt no AREsp 1427771/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/6/2019, DJe 27/6/2019, grifos nossos)".

Como se pode perceber, no processo acima referido, a parte recorrente havia invocado em seu favor uma sentença e um acórdão que, no seu entendimento, se amoldariam aos fatos sob apreciação do órgão jurisdicional e que, por serem decisões anteriores, deveriam ser considerados como precedentes para a decisão que deveria ser tomada na hipótese sob julgamento.

Entretanto, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), simplesmente ignorou as decisões apresentadas pelo recorrente e invocadas como precedentes, dando uma outra solução para o processo. Por isso, foi interposto recurso especial para o STJ sob o argumento de que teria sido violado o inciso VI do § 1º do art. 489 do CPC de 2015, uma vez que o TJSP teria deixado de seguir precedente "sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento".

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, confirmou o entendimento do TJSP de que não há dever de análise pormenorizada de precedentes invocados pelas partes se estes não forem precedentes vinculantes. E mais, apontou a Corte Superior que precedentes vinculantes, para tal finalidade, são aqueles constantes do rol do art. 927 do CPC de 2015.

Veja-se, a propósito, trecho da decisão da lavra do Min. Luis Felipe Salomão, que comprova o quanto afirmado até aqui:

"(...) 3. Além disso, conforme o que constou da decisão recorrida, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não possui a obrigação de se manifestar sobre a similitude entre o presente feito que aquilo que restou decidido na sentença proferida no processo 1016457-28.2016.8.26.0100 e acórdão no feito 1110926-66.2016.8.26.0100, uma vez que tais precedentes não possuem caráter vinculante.

Com efeito, verifica-se que a referida sentença, bem como o acórdão supracitado não constam do rol do art. 927 do CPC, o qual aponta lista dos precedentes qualificados de observância obrigatória dos julgadores, os quais, quando não aplicados, necessitam de distinção expressa e fundamentada para terem afastados.

Logo, os julgados citados pelo agravante não possuem efeito vinculante, possuindo efeito apenas persuasivo, os quais, repisa-se, não precisam ser detalhadamente analisados e/ou afastados pelo magistrado, inexistindo qualquer violação aos arts. 489 e 1.022 do CPC (...)" (grifos nossos).

Logo, o Superior Tribunal de Justiça faz uma distinção entre precedentes (que teriam caráter meramente persuasivo) e precedentes vinculantes (que seriam qualificados de observância obrigatória pelo art. 927 do CPC de 2015).

Se a parte invocar os primeiros (os precedentes) em seu favor e o órgão jurisdicional entender que eles não devem ser levados em consideração na decisão, inexiste necessidade de, na fundamentação da decisão, explicar a distinção entre os precedentes invocados e o caso concreto.

Por outro lado, se a parte invocar em seu favor os precedentes qualificados de observância obrigatória pelo art. 927 do CPC de 2015 (os precedentes vinculantes), o órgão jurisdicional deverá cumprir o comando do inciso VI do § 1º do art. 489 do CPC de 2015 se quiser deixar de seguir aquilo que foi invocado, devendo "demonstrar a distinção do caso em julgamento ou a superação do entendimento".

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).