CPC na prática

Fornecimento de dados por provedor de acesso à internet não se confunde com exibição de documento: Cabimento de incidência de multa cominatória

Fornecimento de dados por provedor de acesso à internet não se confunde com exibição de documento: Cabimento de incidência de multa cominatória.

29/8/2019

Daniel Penteado de Castro

O cumprimento de decisão judicial ligada a obrigação de fazer, não fazer ou dar coisa sofreu significativas mudanças no perfil do CPC/2015.

Dentre algumas inovações, a expressa menção de que a resistência injustificada ao cumprimento da obrigação pode dar ensejo a responsabilização por crime de desobediência (art. 536, § 3º), e, no que tange ao regime da multa cominatória (astreinte), a possibilidade de sua execução imediata e nos próprios autos, porém autorizado o levantamento respectivo somente após o trânsito em julgado de sentença favorável (art. 537, §§s 2º ao 4º).

Por sua vez, o STJ, quando do julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1333988/SP, sob o rito do então art. 543-C, do CPC/73, firmou a tese de que não caberia a incidência de astreinte em ação de exibição de documentos1, entendimento este cristalizado na inteligência da súmula 372 de referida corte superior: "na ação de exibição de documentos, não cabe aplicação de multa cominatória".

Em que pese o entendimento acima, os novéis arts. 139, IV e, 400, do CPC/2015 expressamente preveem:

"Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:

(...)

IV - Determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar se:

(...)

Parágrafo único. Sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido.

Aparente conflito entre a Súmula 372/STJ e a inteligência do art. 400 do CPC ensejou a proposta de afetação do recurso especial 1.763.463/MG (Tema n. 1.000), de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino:

"PROPOSTA DE AFETAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. MULTA COMINATÓRIA. TEMA 705/STJ. SUPERVENIÊNCIA NOVA DISCIPLINA DA MATÉRIA. ART. 400 DO CPC/2015. NECESSIDADE DE FIXAÇÃO DE NOVA TESE.

1. Existência de tese firmada no julgamento do Tema 705/STJ, na vigência do CPC/1973, no sentido do "descabimento de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível".

2. Superveniência de nova disciplina legal da matéria no art. 400, p. u., do CPC/2015, que assim estatuiu: "sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido".

3. Necessidade de novo enfrentamento da controvérsia com base no CPC/2015.

4. Delimitação da nova controvérsia: "cabimento ou não de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível, na vigência do CPC/2015".

5. RECURSO ESPECIAL AFETADO AO RITO DO ART. 1.036 CPC/2015.

(...)

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, afetar o processo ao rito dos recursos repetitivos (RISTJ, art. 257-C) e, por unanimidade, suspender a tramitação de processos em todo território nacional, conforme proposta do Sr. Ministro Relator, a fim de consolidar entendimento sobre a seguinte controvérsia: cabimento ou não de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível, na vigência do CPC/2015.

(ProAfR no REsp 1.763.462/MG e REsp 1777553/SP, Tema Repetitivo n. 1000, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, julgado em 30.10.2018, DJe 06.11.2018)

Em que pese pender o julgamento do recurso especial repetitivo acima, a sinalizar ou não uma mudança de entendimento do STJ, é certo que, recentemente, entendeu-se pelo cabimento da multa cominatória (astreinte) em decisão destinada a compelir o devedor da obrigação a exibir informações e dados de sua exclusiva guarda:

"RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA AJUIZADA EM FACE DE PROVEDOR DE ACESSO A INTERNET. ORDEM JUDICIAL PARA FORNECIMENTO DE DADOS VISANDO À IDENTIFICAÇÃO DE USUÁRIO (TERCEIRO), DE MODO A VIABILIZAR FUTURA AÇÃO INDENIZATÓRIA. FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. SÚMULA 372/STJ. INAPLICABILIDADE.

1. A multa cominatória (também chamada de astreintes, multa coercitiva ou multa diária) é penalidade pecuniária que caracteriza medida executiva de coerção indireta, pois seu único escopo é compelir o devedor a realizar a obrigação de fazer ou a não realizar determinado comportamento.

Cuida-se de uma medida atípica de apoio à decisão judicial, de caráter meramente persuasório e instrumental, não caracterizando um fim em si mesmo.

2. No que diz respeito à obrigação de fazer, seu objeto consiste na adoção de comportamento ativo que não se destina preponderantemente a transferir a posse ou titularidade de coisa ou soma ao titular do direito. Para sua constatação, é necessário investigar, dentre os diversos aspectos da prestação (fazer, entregar, pagar), em qual deles reside o núcleo do interesse objetivo.

3. Na hipótese dos autos, verifica-se que a pretensão cautelar reside no fornecimento de dados para identificação de suposto ofensor da imagem da sociedade de economia federal e de seus dirigentes. Assim, evidencia-se a preponderância da obrigação de fazer, consistente no ato de identificação do usuário do serviço de internet.

4. Tal obrigação, certificada mediante decisão judicial, não se confunde com a pretensão cautelar de exibição de documento, a qual era regulada pelo artigo 844 do CPC de 1973. Isso porque os autores da cautelar inominada não buscaram a exibição de um documento específico, mas, sim, o fornecimento de informações aptas a identificação do tomador do serviço prestado pela requerida, sendo certo que, desde 2009, já havia recomendação do Comitê Gestor de Internet no Brasil no sentido de que os provedores de acesso mantivessem, por um prazo mínimo de três anos, os dados de conexão e comunicação realizadas por meio de seus equipamentos.

5. Além do mais, as sanções processuais aplicáveis à recusa de exibição de documento – presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor e busca e apreensão (artigos 359 e 362 do CPC de 1973) –, revelam-se evidentemente inócuas na espécie. É que os fatos narrados na inicial – a serem oportunamente examinados em ação própria – dizem respeito a terceiro (o usuário a ser identificado pela requerida), inexistindo, outrossim, documento a ser objeto de busca e apreensão, pois o fornecimento das informações pleiteadas pelas supostas vítimas reclama, tão somente, pesquisa no sistema informatizado da ré.

6. As citadas peculiaridades, extraídas do caso concreto, constituem distinguishing apto a afastar a incidência do entendimento plasmado na Súmula 372/STJ ("na ação de exibição de documentos, não cabe a aplicação de multa cominatória") e reafirmado no Recurso Especial repetitivo 1.333.988/SP ("descabimento de multa cominatória a exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível").

7. Recurso especial não provido.

(REsp n. 1.560.976/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, v.u., j. 30.05.2019, grifou-se)

Consoante se depreende do voto condutor, a identificação de ofensor de usuário de internet não se confunde com a pretensão de exibição de documento. Em outras palavras, o acesso a dada informação é medida que se distingue da apresentação do documento em si:

"(...)

É que os fatos narrados na inicial – a serem oportunamente examinados em ação própria – dizem respeito a terceiro (o usuário a ser identificado pela requerida), inexistindo, outrossim, documento a ser objeto de busca e apreensão, pois o fornecimento das informações pleiteadas pelas supostas vítimas reclama, tão-somente, pesquisa no sistema informatizado da ré.

Tais peculiaridades, extraídas do caso concreto, constituem, a meu ver, distinguishing apto a afastar a incidência do entendimento plasmado na Súmula 372/STJ ("na ação de exibição de documentos, não cabe a aplicação de multa cominatória") e reafirmado no Recurso Especial repetitivo 1.333.988/SP ("descabimento de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível").

Conforme cediço e se extrai do âmbito do julgamento do AgInt no REsp 1.705.306/RS (Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 07.06.2018, DJe 01.08.2018), a ratio decidendi de recurso repetitivo não pode se estender, de forma genérica e automática, a hipóteses em que diversos os fatos relevantes da causa. No tocante à Súmula 372/STJ – e ao repetitivo –, a ratio decidendi de ambos reside no cabimento da busca e apreensão e da presunção de veracidade como meios suficientes para garantir a efetivação da decisão judicial de exibição de documento, motivo pelo qual considerada excessiva a utilização da multa cominatória.

O presente caso, entretanto, consoante ressaltado alhures, não diz respeito à exibição de documento, revelando-se, ademais, inócuas as sanções processuais referidas nos precedentes que serviram de base à Súmula 372/STJ.

Nessa ordem de ideias, deve ser mantido o acórdão estadual que, confirmando sentença de procedência da ação cautelar satisfativa, considerou cabida a multa cominatória na hipótese.

(...)"

O entendimento acima se valeu da técnica de distinguising, para afastar o entendimento consolidado no Recurso Especial Repetitivo n. 1.333.988/SP, no sentido de dizer que distinção se extrai da circunstância de que o acesso a dada informação não se confunde com a exibição de documento em si.

Muito embora, sob a perspectiva do jurisdicionado, que busca a produção de determinada prova documental, o que importa é o acesso ao seu conteúdo (sendo por vezes indiferente a exibição do documento em si, que em verdade servirá como meio de prova), o precedente acima sinaliza a possibilidade de aplicação da astreinte quando provocado o Poder Judiciário com vistas a se obter o acesso de dados e informações resistida a exibição pela parte.

Resta ainda o julgamento do Tema 1.000 supra citado, o qual definirá se deve ou ser mantida a vedação de cabimento de astreinte na medida cautelar de exibição de documentos, lembrando que, já na vigência do CPC/2015, o STJ reafirmou a tese de que é necessária a prévia intimação pessoal do devedor para a cobrança da multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer2.

__________

1 RECURSO ESPECIAL  REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROCESSUAL CIVIL. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS.  CADERNETA DE POUPANÇA.  CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.  EXIBIÇÃO DE EXTRATOS BANCÁRIOS. ASTREINTES. DESCABIMENTO. COISA JULGADA. INOCORRÊNCIA.

1. Para fins do art. 543-C do CPC: 1.1. "Descabimento de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de documento relativo a direito disponível."

1.2. "A decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada."

2. Caso concreto: Exclusão das astreintes.

3. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.”

REsp 1333988/SP, 2ª Seção, Rel. Min. Paulo de tarso Sanseverino, DJe 11.04.2014.

2 AgInt no REsp 1.714.838/MS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJE 23.10.2018 e AgInt no AREsp 1.152.963/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJE 8/3/2018.

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).