CPC na prática

As medidas coercitivas atípicas do artigo 139, IV, do CPC e as execuções fiscais

As medidas coercitivas atípicas do artigo 139, IV, do CPC e as execuções fiscais.

3/10/2019

Rogerio Mollica

Um dos artigos mais comentado e estudado do Código de Processo Civil de 2015 é o artigo 139, IV, que prevê a possibilidade de adoção de medidas coercitivas atípicas.

A doutrina, em sua maioria, defende a aplicação de tais medidas. Por todos, cita-se o professor Olavo de Oliveira Neto, que em recentíssima e prestigiada obra sobre o tema defende a possibilidade da apreensão de passaporte e da carteira de habilitação1.

As medidas coercitivas atípicas vêm sendo bastante concedidas em primeira instância, entretanto, os Tribunais, com destaque para o Tribunal de Justiça de São Paulo2 e o Superior Tribunal de Justiça, vêm sistematicamente restringindo tais medidas.

Uma dúvida que surge é se tais medidas poderiam ser requeridas pelos Entes Públicos em Execuções Fiscais. O Tribunal de Justiça de São Paulo vem constantemente indeferindo o pedido de apreensão de Passaporte e da Carteira Nacional de Habilitação em face de devedores em Executivos Fiscais, eis que tais medidas não guardariam pertinência com a cobrança dos débitos:

"EXECUÇÃO FISCAL – Medidas coercitivas para satisfação de dívida tributária – Art. 139, inciso IV do NCPC – Insurgência contra a decisão do Juízo que deferiu as providências requeridas pela exequente – Pretensão de bloqueio da Carteira Nacional de Habilitação, cancelamento de passaporte e inscrição do nome do devedor no SERASAJUD – Cabimento apenas desta última – Demais medidas que, sobre não se revelarem úteis à satisfação do débito, atentam contra os dizeres das Súmulas nºs 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal – Recurso provido em parte."

(TJSP; Agravo de Instrumento 2138322-05.2019.8.26.0000; Relator (a): Erbetta Filho; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Artur Nogueira - Vara Única; Data do Julgamento: 26/09/2019; Data de Registro: 26/09/2019)

Entretanto, em recentíssima decisão o Superior Tribunal de Justiça afastou peremptoriamente a possibilidade da aplicação das medidas coercitivas atípicas do artigo 139, IV, do CPC nas Execuções Fiscais, eis que os Entes Públicos já gozam de muitos privilégios na cobrança dos seus créditos via executivos fiscais, conforme se extraí do seguinte trecho do voto:

"(...) 12. Tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros rumos quando medidas aflitivas pessoais atípicas são colocadas em vigência nesse procedimento de satisfação de créditos fiscais. Inegavelmente, o Executivo Fiscal é destinado a saldar créditos que são titularizados pela coletividade, mas que contam com a representação da autoridade do Estado, a quem incumbe a promoção das ações conducentes à obtenção do crédito.

13.Para tanto, o Poder Público se reveste da Execução Fiscal, de modo que já se tornou lugar comum afirmar que o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830/1980), com privilégios processuais irredarguíveis. Para se ter uma ideia do que o Poder Público já possui privilégios ex ante, a execução só é embargável mediante a plena garantia do juízo (art. 16, § 1o. da LEF), o que não encontra correspondente na execução que se pode dizer comum. Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental.

14.Não se esqueça, ademais, que, muito embora cuide o presente caso de direito regressivo exercido pela Municipalidade em Execução Fiscal (caráter não tributário da dívida), sempre é útil registrar que o crédito tributário é privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional), podendo, se o caso, atingir até mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem de família (art. 3o., IV da Lei 8.009/1990). Além disso, o crédito tributário tem altíssima preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei de Falências e Recuperações Judiciais - 11.101/2005). Bens do devedor podem ser declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do Código Tributário Nacional). São providências que não encontram paralelo nas execuções comuns.

15.Nesse raciocínio, é de imediata conclusão que medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir, não se firmam placidamente no Executivo Fiscal. A aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos.

16.Excessos por parte da investida fiscal já foram objeto de severo controle pelo Poder Judiciário, tendo a Corte Suprema registrado em Súmula que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos (Súmula 323/STF). (...)"

(HC 453.870/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 15/08/2019)

Desse modo não podem os Entes Públicos se valerem das medidas coercitivas atípicas para o recebimento de seus créditos, via executivos fiscais, que como é notório, não têm se mostrado efetivos na satisfação dos créditos públicos.

__________

1 Para o professor em sua obra O Poder Geral de Coerção (São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2019): "A medida coercitiva de apreensão do passaporte não atinge ao direito fundamental de liberdade de seu destinatário, mas apenas opera uma limitação quanto a sua livre circulação e mesmo assim em casos especialíssimos. Diante da ausência de regra infraconstitucional proibitiva da sua concessão, não há óbice para que o juiz a decrete com fulcro no Poder Geral de Coerção que lhe confere o art. 139, IV, do CPC. Mesmo para os que entendem que limitar a livre circulação implica em limitar a liberdade, não há como vedar ao magistrado a possibilidade de concedê-la com fulcro no Poder Geral de Coerção, uma vez que se trata de medida coercitiva cuja aplicação se limita a casos excepcionais, nos quais a conduta improba do seu destinatário faz com que o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional prevaleça sobre o direito fundamental à liberdade". (p. 318/319). Prossegue o professor: "Apreensão de carteira de habilitação é medida altamente recomendável porque exerce uma eficácia coercitiva naturalmente "seletiva", já que deixa de produzir efeitos concretos com relação ao devedor desafortunado e que não age de má-fé, mas alcança com força o devedor que age de má-fé e àqueles que deixam de cumprir uma determinação judicial". (p. 139).

2 Fernando da Fonseca Gajardoni e Augusto Martins Pereira analisaram 137 acórdãos do TJSP prolatados em 2017 e em 123 (89,79%) não foi permitida a aplicação de nenhuma das três modalidades mais conhecidas de medidas coercitivas atípicas (suspensão da CNH, apreensão de passaportes e bloqueio/cancelamento de cartão de crédito). ("Medidas atípicas na execução civil: análise de casos no âmbito do TJ/SP", in Reflexões sobre o Código de Processo Civil de 2015: uma contribuição dos membros do Centro de Estudos Avançados de Processo – Ceapro, São Paulo: Verbatim, 2018, p. 290).

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).