Direito Digit@l

Reflexões sobre o direito ao esquecimento na internet

A internet é um recurso fantástico, mas da sua utilização decorrem grandes responsabilidades, como a proteção aos dados pessoais.

12/6/2015

É bastante comum que as pessoas se refiram aos dias atuais como uma composição de duas realidades coexistentes: a física e a digital (muitas vezes chamada também de virtual), sendo que teriam características e problemas peculiares, portanto com elementos suficientes para a dicotomia.

Na sociedade da informação (a vertente digital da realidade) toda informação se produz e propaga com velocidade alucinante, tendo-se ela se convertido em instrumento fundamental para o desenvolvimento das atividades humanas e, em grande parte, para o exercício e controle do poder. Veja-se que já se disse que "a informação é o oxigênio da democracia"1 de forma que é essencial para que participemos da vida pública e fiscalizemos nossos governantes e os detentores de poder social.

O acesso à informação se mostra fundamental na medida em que é uma importante arma contra as ilicitudes e arbitrariedades privadas e estatais, além de possibilitar a constatação da ineficiência governamental.2 Não foi à toa, portanto, que Orwell brilhantemente narrou na sua obra "1984" que "quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente, controla o passado"3. Até por isso os regimes totalitários repudiam a divulgação de informações, já que pretendem criar campânulas de sigilo sobre suas atividades: quanto mais opacidade informativa, maiores os obstáculos para o exercício da democracia.

O direito à informação, segundo a doutrina, divide-se em no direito de informar (abrangendo a liberdades de expressão e de imprensa), o direito de se informar (acesso à informação pelos meios lícitos) e, ainda, o direito de ser informado (o direito da coletividade de receber informações do Estado e dos meios de comunicação sobre temas de interesse público).4 Também se fala de uma distinção entre o direito de informar (comunicação de fatos) e a liberdade de expressão estritamente considerada (manifestação do pensamento, das ideias).5

Quanto à informação, embora ainda haja muita exclusão digital em nossa sociedade6, há uma verdadeira imersão das pessoas na internet, em especial, nas redes sociais, que, aliás, cremos que podem ser consideradas o principal movimento de apoderamento das funcionalidades da internet. Sabe-se, ainda, que o mote das redes sociais é o compartilhamento de informações, tais como dados pessoais, fotos, vídeos, montagens, ideologias políticas, religiosas, futebolísticas, entre outras. Assim, o interesse social nas tais redes fez com que os provedores (especialmente os de serviços) passassem a lidar com as informações dos usuários – manejo este que teve que se adaptar à enormidade de compartilhamentos – arquivando-as, não permitindo que elas fossem perdidas ou inutilizadas. Então, cada singelo pedaço de informação passou a ser eternizado digitalmente e, portanto, passível de ser recuperado e lembrado a qualquer momento.

Verifica-se, portanto, que tendo os dados e informações pessoais se tornado commodities, a internet se transformou no lugar onde, com baixo investimento, é possível atingir um grande número de pessoas em localidades diversas. Assim, o tema "privacidade" (ou a falta dela) passou a ser um problema porque as pessoas, desde muito cedo, passam a alimentar as redes sociais com uma enxurrada de informações, muitas delas até de caráter exagerado e duvidoso. Condutas praticadas em contexto de imaturidade passaram, assim, a repercutir com intensidade na internet, até mesmo pela possibilidade da recuperação a qualquer momento. E a tecnologia já permite há algum tempo que os dados sejam utilizados fora do controle dos seus proprietários. Naturalmente o contexto de esquecimento transmutou-se para o de lembrança.

Aliás, da dinâmica envolvendo a inserção de dados e a interação das pessoas fornecendo informações nas redes sociais, aliado à digitalização das mídias, somado, ainda, ao fato da impossibilidade de inutilização dos dados é que fez surgir a discussão sobre um possível "direito ao esquecimento", conceito originalmente trabalhado por Viktor Mayer-Schönberger como "right to be forgotten"7 . A obra do professor de Oxford busca apontar as falácias de que ao apagar seus dados pessoais contidos na internet as pessoas teriam a garantia de exclusão em definitivo. Nesta perspectiva, debater o "direito ao esquecimento" implica ponderar se há um direito a ser esquecido e se informações sobre fatos passados estão aí incluídas. Fleischer, por exemplo, divide o direito ao esquecimento em três vertentes: a) o direito de apagar os dados que a própria pessoa torna disponível na internet; b) o direito de apagar as informações disponibilizadas pelo próprio usuário e copiadas/utilizadas por terceiros; e, c) o direito de apagar os dados disponibilizados por terceiros.8 O nível de controvérsia sobre cada vertente é distinto, sendo a primeira menos controversa e a terceira a mais. Fato é que as redes sociais, em termos gerais, não excluem em definitivo as informações dos usuários até mesmo sob o argumento de que poderão servir para nova experiência na rede. As informações, assim permanecem por tempo indefinidos com os seus respectivos coletores. Pior a situação das informações replicadas por terceiros, já que não há mecanismo apto a garantir que sejam eliminadas. No entanto, a situação se complica um pouco mais quando pensamos em informações que nunca estiver sob o poder das pessoas, sendo que elas não foram igualmente as responsáveis pela sua disponibilização. Neste caso, a informação está disponível em razão de comportamento de terceiro.

Veja-se que a internet é um recurso fantástico para a humanidade, mas da sua utilização decorrem grandes responsabilidades, dentre as quais a proteção aos dados pessoais. Em uma dinâmica onde a principal característica da internet é o processamento/tratamento de informações e sua respectiva revelação a possibilidade de outorgar às pessoas a opção de concordar ou discordar com o uso de seus dados parece não ser suficiente para o adequado tratamento da privacidade, já que a solicitação de remoção não significa que os dados e informações sejam, de fato, eliminados retroativamente.

Na Europa o direito ao esquecimento tem sido tratado como uma manifestação do direito à privacidade, já que a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia aponta, nos arts. 7º e 8º o direito à privacidade e da proteção dos dados pessoais. O caso mais debatido por lá, atualmente, é do Tribunal de Justiça da União Europeia, que reconheceu que a garantia da proteção de dados pessoais envolve o direito ao esquecimento no recente caso Google Spain SL e Google Inc. versus Agencia Española de Protección de Datos e Mario Costeja Gonzales, julgado em 13 de maio de 2014. O espanhol postulava que o Google não mostrasse, nos seus resultados de busca, o link referente a um leilão de um seu imóvel havido anos antes, decorrente de dívidas junto à Seguridade Social. O Tribunal lhe deu razão afirmando que, com o tempo, um tratamento lícito de dados pode se tornar ilícito quando não mais necessários para a finalidade que foram coletados.

No Brasil o tema do direito ao esquecimento ainda não foi enfrentado pelo STF, no entanto, o STJ decidiu casos de repercussão, tais como o da Chacina da Candelária e Aída Curi, bem como o da apresentadora de televisão Xuxa Meneghel.9 Neste último caso sustentou-se a tese (que prevaleceu) de que provedores de pesquisa não são obrigados a deixar de exibir links com conteúdo ilegal. Nos outros dois casos o STJ reconheceu o direito ao esquecimento, em patente violação às liberdades comunicativas, à história e à memória coletiva.

Mas, sobre o direito ao esquecimento na internet entendemos que há um espaço legítimo para que ele seja protegido.10 É que há instituições capazes de obter, armazenar, tratar e divulgar uma quantidade de informações sobre as pessoas que era impensável no passado, o que aumenta a vulnerabilidade dos indivíduos, em uma clara perspectiva de vigilância total e permanente sobre o indivíduo. A proteção de dados consiste, então, em uma visão mais moderna e dinâmica da privacidade. No Brasil, o direito ao controle de dados pessoais advém da Constituição, sendo inerente à privacidade e vinculando-se à dignidade humana, sendo parcialmente disciplinado por diplomas específicos, como o marco civil da internet, o CDC, a lei de acesso à informação e a lei do habeas data conforme tratamos no nosso "A proteção aos dados pessoais no ordenamento jurídico brasileiro e o anteprojeto do Ministério da Justiça".

O exercício do direito ao esquecimento no Brasil, para casos na internet pode significar, em alguns casos, o não processamento e até mesmo a eliminação de dados pessoais. Por isso é fundamental o advento de uma lei específica de proteção aos dados pessoais que, contudo, não deverá ameaçar as liberdades de imprensa, expressão, o direito de acesso à informação de interesse público, nem tampouco o cultivo da História e da memória coletiva.

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1 Expressão cunhada pela ONG Article 19, que é uma organização independente de direitos humanos que trabalha em vários países na promoção e proteção do direito à liberdade de expressão. Seu nome vem do Artigo 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos, que garante a liberdade de expressão e informação. Vide www.article19.org, acesso em 10.06.15, às 06h27min.
2 Louis Brandeis, antigo juiz da Suprema Corte norte-americana dizia que “a luz solar é o melhor dos desinfetantes”("Sunlight is said to be the best of disinfectants; electric light the most efficient policeman."). Vide https://www.brandeis.edu/legacyfund/bio.html, acesso em 10.06.15, às 07h35min.
3 Orwell, George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. Companhia Editorial Nacional: São Paulo, pg. 24. 
4 Vide: MACHADO, Jonatas E. M. Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 472 e ss.. Vide, ainda, CANOTILHO, J. J. Gomes e outro. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I. 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 573.
5 CARVALHO; Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito à Informação e Liberdade de Expressão. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.25.
6 Pesquisa do Centro Regional de Estudos Para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação – CETIC.br mostra que a região Sudeste é a que mais tem acesso à Internet, com 51% dos domicílios e a Nordeste é a que tem menos, com apenas 30% dos domicílios. A pesquisa, do ano de 2013 está disponível em: https://cetic.br/tics/usuarios/2013/total-brasil/A4/, acesso em 11.06.15, às 15h00min.
7 MAYER-SCHo¨NBERGER; Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age, Princeton and Oxford 2009, pp. 1-3.
8 FLEISCHER, Peter. Foggy thinking about the right to oblivion. Peter Fleischer: Privacy...? [blog], Mar. 2011. Disponi'vel em https://peterfleischer.blogspot.com.br/2011/03/foggy-thinking-about-right-to-oblivion.html

, acesso em 10.06.15, às 07h37min.
9 Recurso Especial nº 1.316.921, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26/6/2012.
10 Sobre o tema, vide Daniel Solove. The Digital Person: technology and privacy in the digital age. New York: New York University Press, 2004; Alessia Ghezi, Angela Guimarães Pereira e Lucia Vesnic-Alujevic. The Ethics of Memory in the Digital Age: Interrogating the right to be forgotten. London: Palgrave Macmilian, 2014.
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Colunistas

Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos é advogado e Presidente da Digital Law Academy. Ph.D., ocupa o cargo de Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP), com mandatos entre 2013-2018 e 2022-2024. É membro da Comissão Nacional de Inteligência Artificial do Conselho Federal da OAB. Foi convidado pela Mesa do Congresso Nacional para criar e coordenar a comissão de Juristas que promoveu a audiência pública sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, realizada em 24 de maio de 2019. Possui destacada carreira acadêmica, tendo atuado como professor convidado da Università Sapienza (Roma), IPBEJA (Portugal), Granada, Navarra e Universidade Complutense de Madrid (Espanha). Foi convidado pelo Supremo Tribunal Federal em duas ocasiões para discutir temas ligados ao Direito e à Tecnologia. Também atua como professor e coordenador do programa de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) da Escola Superior de Advocacia Nacional do Conselho Federal é o órgão máximo na estrutura da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). Foi fundador e presidente da Comissão de Direito Digital e Compliance da OAB/SP (2005-2018). Atuou como Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (2005-2021) e fundou a Comissão do Contencioso Administrativo Tributário da OAB/SP em 2014. Na área de arbitragem, é membro da Câmara Empresarial de Arbitragem da FECOMERCIO, OAB/SP e da Câmara Arbitral Internacional de Paris. Foi membro do Conselho Jurídico da FIESP (2011-2020) e diretor do Departamento Jurídico da mesma entidade (2015-2022). Atualmente desempenha o papel de Diretor Jurídico do DEJUR do CIESP. Foi coordenador do Grupo de Estudos de Direito Digital da FIESP (2015/2020). Foi convidado e atuou como pesquisador junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2010, para tratar da segurança física e digital de processos findos. Além disso, ocupou o cargo de Diretor Titular do Centro do Comércio da FECOMERCIO (2011-2017) e foi conselheiro do Conselho de Tecnologia da Informação e Comunicação da FECOMERCIO (2006-2010). Desde 2007, é membro do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP. Atua como professor de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2007, nos cursos de Direito e Tecnologia, tendo lecionado no curso de Direito Digital da Fundação Getúlio Vargas, IMPACTA Tecnologia e no MBA em Direito Eletrônico da EPD. Ainda coordenou e fundou o Programa de Pós-Graduação em Direito Digital e Compliance do Ibmec/Damásio. É Mestre em Direito na Sociedade da Informação pela FMU (2007) e Doutor em Direito pela FADISP (2014). Lecionou na Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, Academia Nacional de Polícia Federal, Governo do Estado de São Paulo e Congresso Nacional, em eventos em parceria com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, INTERPOL e Conselho da Europa. Como parte de sua atuação internacional, é membro da International High Technology Crime Investigation Association (HTCIA) e integrou o Conselho Científico de Conferências de âmbito mundial (ICCyber), com o apoio e suporte da Diretoria Técnico-Científica do Departamento de Polícia Federal, Federal Bureau of Investigation (FBI/USA), Australian Federal Police (AFP) e Guarda Civil da Espanha. Além disso, foi professor convidado em instituições e empresas de grande porte, como Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER), Banco Santander e Microsoft, bem como palestrou em eventos como Fenalaw/FGV.GRC-Meeting, entre outros. Foi professor colaborador da AMCHAM e SUCESU. Em sua atuação junto ao Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), apresentou uma coletânea de pareceres colaborativos à ação governamental, alcançando resultados significativos com a publicação de Convênios e Atos COTEPE voltados para a segurança e integração nacional do sistema tributário e tecnológico. Também é autor do primeiro Internet-Book da OAB/SP, que aborda temas de tributação, direito eletrônico e sociedade da informação, e é colunista em Direito Digital, Inovação e Proteção de Dados do Portal Migalhas, entre outros. Em sua atuação prática, destaca-se nas áreas do Direito Digital, Inovação, Proteção de Dados, Tributário e Empresarial, com experiência jurídica desde 1988.

Leila Chevtchuk, eleita por aclamação pelos ministros do TST integrou o Conselho Consultivo da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT. Em 2019 realizou visita técnico científica a INTERPOL em Lyon na França e EUROPOL em 2020 em Haia na Holanda. Desembargadora, desde 2010, foi Diretora da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região. Pela USP é especialista em transtornos mentais relacionados ao trabalho e em psicologia da saúde ocupacional. Formada em Direito pela USP. Pós-graduada pela Universidade de Lisboa, na área de Direito do Trabalho. Mestre em Relações do Trabalho pela PUC e doutorado na Universidade Autôno de Lisboa.