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A importância do protocolo com perspectiva de gênero do CNJ no sistema de justiça com foco no Direito das Famílias

A coluna aborda a aplicação do Protocolo de Gênero do CNJ no Direito das Famílias, destacando seu papel no enfrentamento das desigualdades estruturais.

25/7/2025

1. Introdução

As questões atinentes às famílias brasileiras, no sistema de justiça, são marcadas por profunda carga emocional, desigualdades históricas e relações de poder frequentemente invisibilizadas nos autos. Nesse cenário, a aplicação de uma perspectiva de gênero não é apenas recomendável, mas indispensável para que se obtenha uma efetiva justiça. Com esse objetivo, o CNJ publicou em 2023, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instrumento normativo orientador da atuação do Judiciário, frente às desigualdades estruturais entre homens e mulheres.

Inicialmente extraímos importante seguimento da redação do Protocolo, que auxilia a compreensão do assunto: “traz considerações teóricas sobre a questão da igualdade e também um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos”1.

Este artigo propõe uma reflexão acerca da importância da aplicação desse Protocolo especificamente nas demandas de Direito das Famílias, campo jurídico diretamente atravessado por papéis sociais de gênero, invisibilizações do cuidado e vulnerabilidades que atingem especialmente mulheres e crianças.

2. Direito das Famílias e desigualdade de gênero

O Direito das Famílias, embora tenha passado por importantes transformações - como o reconhecimento de entidades familiares plurais, da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade - ainda reproduz práticas e decisões que desconsideram a desigualdade material existente entre homens e mulheres. A divisão sexual do trabalho, por exemplo, atribui às mulheres a responsabilidade quase exclusiva pelo cuidado de filhos e familiares, o que repercute diretamente nas demandas de guarda, alimentos e convivência e ainda no que se refere às partilhas de bens.

Ressaltamos que a violência de gênero - incluindo a violência patrimonial, moral e a violência vicária - ainda é tratada de forma fragmentada ou negligenciada nas demandas envolvendo as famílias. Essa omissão compromete a função protetiva do Direito das Famílias, perpetuando a desigualdade em vez de enfrentá-la.

3. O protocolo do CNJ: Uma ferramenta transformadora

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ orienta magistradas e magistrados a reconhecerem a existência da desigualdade histórica entre homens e mulheres em razão de uma lógica patriarcal. E oferece parâmetros concretos para aplicação do ordenamento jurídico à luz dos direitos humanos das mulheres e da equidade de gênero, conforme determinam a Constituição Federal e tratados internacionais como a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará.

Aplicado ao Direito das Famílias, o Protocolo permite:

4. Jurisprudência e doutrina: o Protocolo em movimento

Alguns tribunais brasileiros já têm incorporado a perspectiva de gênero em suas decisões. A exemplo disso, o TJ/RS reformou sentença que negava alimentos sob o argumento de que a mulher era “qualificada” e “poderia trabalhar”, sem considerar que ela havia interrompido sua trajetória profissional para cuidar dos filhos - um típico caso de cegueira de gênero no reconhecimento do trabalho não remunerado.

Como destaca Maria Berenice Dias: “Este é o desiderato do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, ao pontuar que: diariamente, nota-se que a sociedade impõe papéis diferentes a homens e mulheres. Mas o conceito de gênero permite ir além, expondo como essas diferenças são muitas vezes reprodutoras de hierarquias sociais. Isso porque, em muitos casos, aos homens são atribuídos características e papéis mais valorizados, enquanto às mulheres são atribuídos papéis e características menos valorizados, o que tem impactos importantes na forma como as relações sociais desiguais se estruturam”2.

5. Conclusão

A efetivação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ nas ações de Direito das Famílias é urgente e inadiável. Trata-se de um passo decisivo para que o Judiciário compreenda que a igualdade formal, por si só, não dá conta das assimetrias que estruturam as relações familiares no Brasil. É necessário reconhecer o gênero como categoria jurídica relevante e operativa, sem o que o Direito das Famílias continuará reproduzindo injustiças em nome da neutralidade.

Ao contrário do que algumas vozes machistas tentam fazer parecer, o Protocolo não sugere que a Justiça favoreça as mulheres, mesmo porque, seu intuito é alcançar tratamentos jurídicos justos, com equidade mas para isso se faz necessário combater condutas preconceituosas e discriminatórias. A perspectiva de gênero não é ideológica. É constitucional. É humana. É a lente que permite ver o que historicamente foi invisibilizado - e julgar com justiça quem historicamente foi silenciada.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

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Colunista

Dione Almeida é advogada, doutoranda e mestra em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Especialista em Direito do Trabalho pela COGEAE-PUC-SP. Presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada. Conselheira Federal Titular da OAB Nacional, por São Paulo, (2025/2027). Idealizadora do "Selo Promove Mulheres Advogadas" da OAB/SP. Diretora Secretária Geral Adjunta da OAB/SP (2022/2024). Membra da Comissão Nacional da Mulher Advogada (2022/2024). Docente da Escola Superior de Advocacia da Abrat (2018/2020, 2021/2023, 2024/2026). Professora de cursos e de pós-graduação. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão TADT da USP, coordenado pelo professor Guilherme Guimarães Feliciano, e do Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade da PUC-SP, coordenado pela professora Silvia Pimentel. Coordenadora da Obra "Advogado sob a Lentes de Gênero e Raça". Autora de livros e capítulos de livros envolvendo temas de Direito Ambiental do Trabalho e Gênero nas relações do Trabalho.