Federalismo à brasileira

Federalismo e gerenciamento de crises constitucionais: intervenção, estado de defesa e estado de sítio

Federalismo e gerenciamento de crises constitucionais: intervenção, estado de defesa e estado de sítio.

22/8/2018

Rafael de Lazari

De fundamental importância para as seguranças jurídica e institucional são os chamados mecanismos constitucionais de gerenciamento de crises. Estamos falando, essencialmente, dos institutos da intervenção Federal e estadual, bem como dos estados de defesa e de sítio, e do uso excepcional das Forças Armadas (a atuação regular das Forças Armadas não faz parte deste sistema, mas apenas seu acionamento para situações mais graves). Tratam-se de mecanismos que, espera-se, não precisem ser ativados, mas, caso se façam necessários, as ordens jurídica e institucional ficam regulamente mantidas com a regulamentação prévia para sua utilização. Aqui se vai falar, especificamente, da relação entre tais institutos e o federalismo, muito embora se deixe para outro texto a questão do uso das Forças Armadas (dada a amplitude da matéria). Nas breves linhas que seguem veremos, portanto, intervenção, estado de defesa e estado de sítio.

I. Estado de defesa e estado de sítio

O Título V da Constituição Federal inaugura parte peculiar e de fundamental importância para a compreensão do ordenamento constitucional como sinônimo de preservação da ordem vigente. É preciso lembrar, primariamente, que a regra e o objetivo maior do constituinte é que a Lei Fundamental pátria tenha vigência em um cenário de absoluta estabilidade institucional, com respeito aos direitos e às instituições. Excepcionalmente, contudo, contextos de instabilidade podem se materializar, e para provar a força normativa da Constituição e a ideia de cumprimento de seus preceitos, ainda assim haverá a aplicação de seus dispositivos.

Deste modo, mostra-se forçoso reconhecer, em primeira análise, que a Constituição Federal foi feita para "valer" tanto em um cenário de estabilidade como em um contexto de instabilidade institucional. Casuísticas diferenciadas à parte, haverá entre elas um denominador comum: a aplicação da mesma Constituição.

A parte da Constituição que trata da "Defesa do Estado e das Instituições Democráticas" (Título V), mais especificamente em seu Capítulo I ("Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio"), traz aquilo que a doutrina costuma denominar "sistema constitucional de crises". Nada obstante variações teleológicas óbvias, a raiz de ambas as providências, para além da condição de integrantes de um sistema de gerenciamento de crises constitucionais, é a necessidade de medida jurídico-política que devolva à federação brasileira o mesmo cenário pacífico vigente antes do descontrole institucional, ou, não sendo mais isso possível, que minimize danos irremediáveis a fim de que suas consequências não inviabilizem a continuidade republicana, federativa e democrática.

Com efeito, são dois os sistemas comumente utilizados para trabalhar os casos de "crise constitucional", a saber, o sistema flexível e o sistema rígido. No sistema flexível, a ordem jurídica não delimita previamente as medidas que podem ser tomadas em caso de crise, de modo que seu estabelecimento pode se dar de acordo com a necessidade concreta. Como exemplo, se pode mencionar a "Lei Marcial", na qual são determinadas as medidas que serão tomadas para o caso de afronta à ordem constitucional (países como Inglaterra e Estados Unidos adotam este sistema de "Lei Marcial"). Como ponto favorável, o sistema flexível aponta para a possibilidade de maleabilidade das medidas, tomadas com maior ou menor rigor a depender do nível de fervor institucional; como pontos desfavoráveis, elenca-se a insegurança jurídica e os riscos de eventuais excessos do aplicador e do executor das medidas.

Já no sistema rígido, as medidas que podem ser tomadas em caso de crise são previamente delimitadas, de maneira taxativa. Como ponto favorável, o sistema rígido preserva a segurança jurídica e a unicidade constitucional para contextos diferenciados dentro de um mesmo Estado (o da estabilidade e o da instabilidade); como ponto desfavorável tem-se a imprevisibilidade de situações abarcadas pelas medidas previstas, de modo que tentar "regular o caos" é uma inglória tarefa.

A doutrina tradicional aponta para a adoção do sistema rígido pelo ordenamento constitucional de 1988. Não se desconsidera o acerto de tal entendimento, nitidamente majoritário, pelo simples contexto de se prever condutas na Constituição Federal para as situações que ensejam o estado de defesa e o estado de sítio. Entende-se aqui, contudo, pela adoção do sistema rígido mitigado no ordenamento pátrio, tendo em vista maior abertura das medidas para o caso de decretação de estado de sítio com base em declaração de estado de guerra ou resposta à ameaça armada estrangeira - art. 137, II (para todas as outras hipóteses há maior pormenorização das medidas a serem tomadas).

II. Intervenção

Dentro da organização do Estado, o estudo dos mecanismos de intervenção - arts. 34 a 36, CF - tem elevada importância, pois implica uma contrariedade temporária de todas as lógicas federativas. Isto porque, em regra, a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal (tão menos em Municípios situados em Territórios), bem como os Estados não intervirão nos municípios. É, pois, preciso observar a autonomia de cada ente federativo, como manifesto lógico da estrutura repartida de poder que qualifica esta forma de Estado. A regra é a não intervenção. Pode-se dizer que o constituinte consagra um instituto, mas deseja que ele não seja utilizado.

Todavia, em algumas hipóteses, excepcionalíssimas e temporárias, é possível a intervenção, que consiste em ato eminentemente político com a finalidade de restabelecer no ente que a sofre os valores federativos pátrios. Por ser medida excepcional (e sabendo que exceções devem ser interpretadas restritivamente), perfilha-se ao entendimento segundo o qual as hipóteses de intervenção são taxativas.

Ademais, numa imperiosa consideração a ser feita, é preciso lembrar que a intervenção se dá sempre do "ente maior" no "ente menor". Não se utiliza as expressões "maior" e "menor" com o sentido de "poder", por serem absolutamente autônomos todos os entes federativos. Diz-se, isso sim, no sentido de "abrangência": a União intervém nos Estados que a formam; cada Estado intervém nos municípios que o formam; a União intervém nos Municípios se estes estiverem situados em Territórios federais (pois, como o próprio nome já indica, eventual Território a ser instituído ficará sob a tutela da União).

III. Breve conclusão

Nos casos aqui citados, mostra-se, de certa forma, a força do modelo federativo pátrio: seja para confirmá-lo (afinal, as exceções para instabilidades servem para confirmar as regras para estabilidades), seja para reafirmá-lo caso um "lapso memorial" desencadeie seu esquecimento (não custa lembrar que, pelo art. 1º, caput, CF, a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel de seus entes, de modo que caso um Estado ou Município tencione quebrar esse princípio de indissolubilidade - ou caso precise ser protegido por este princípio -, os mecanismos de intervenção, estado de defesa e estado de sítio estarão disponíveis para acionamento).

Como se não bastasse, os institutos aqui vistos servem para confirmar o modelo presidencialista adotado no país, concentrando o poder nas mãos do chefe do Executivo: a maioria das hipóteses de intervenção passa pelo crivo discricionário do chefe do Executivo; as hipóteses de estado de defesa e de sítio passam pelo chefe do Executivo (com controle do Poder Legislativo).

Deste modo, em meio a um amplo espectro de possíveis críticas quanto ao modelo federalista vigente no país, elogios merecem ser tecidos à disposição de mecanismos constitucionais de gerenciamento de crises, cujo objetivo, acima de tudo, é assegurar a iquebrantabilidade de um modelo - federativo, republicano e democrático - cuidadosamente esculpido e pormenorizado.

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Colunistas

Daniel Barile da Silveira é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela CDH/IGC, da Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB. Professor do programa de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Marília (Unimar). Professor de Direito Constitucional do curso de Direito do UniToledo (Araçatuba/SP). É advogado e consultor jurídico em Direito Público. Foi pesquisador do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Recebeu Menção Honrosa do Supremo Tribunal Federal do pelo seu trabalho nos "200 anos do Judiciário Independente" (STF). Autor de várias obras jurídicas.

Emerson Ademir Borges de Oliveira é mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Vice-coordenador do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Professor em cursos de pós-graduação no Projuris e USP-Ribeirão Preto. Autor de várias obras e artigos jurídicos. Advogado e parecerista.

Jefferson Aparecido Dias possui doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha (2009). Atualmente é procurador da República do Ministério Público Federal em Marília. É professor permanente do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília.

Rafael de Lazari é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor da graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília - UNIMAR. Professor convidado de pós-graduação (LFG, Projuris Estudos Jurídicos, IED, dentre outros), da Escola Superior de Advocacia, e de cursos preparatórios para concursos e exame da Ordem dos Advogados do Brasil (LFG, IED, IOB Concursos, PCI Concursos, dentre outros). Autor, organizador e participante de inúmeras obras jurídicas, no Brasil e no exterior. Advogado e consultor jurídico.