Federalismo à brasileira

Forma e sistema de governo no Brasil: nossas escolhas plebiscitárias foram corretas? - Parte I: sobre a natureza, ou não, de cláusula pétrea da República e do presidencialismo

Forma e sistema de governo no Brasil: nossas escolhas plebiscitárias foram corretas? - Parte I: sobre a natureza, ou não, de cláusula pétrea da República e do presidencialismo.

16/1/2019

Rafael de Lazari

Nada obstante variações doutrinárias, há duas tradicionais formas de governo, a saber, Monarquia e República. Na Monarquia, o poder fica concentrado nas mãos de poucas pessoas, sendo suas características a irresponsabilidade política do governante (versão clássica), o poder vitalício, e a hereditariedade. Já na República, o poder fica concentrado nas mãos de pessoas que representam os interesses de todos, sendo suas características a responsabilidade política do governante (versão moderna), o poder temporário (alternância no poder), e a eletividade.

Igualmente, nada obstante variações doutrinárias, há dois tradicionais sistemas de governo, a saber, o Presidencialismo e o Parlamentarismo. No Presidencialismo, o Presidente da República acumula as funções de Chefe de Estado (representa o país na ordem internacional, perante outras nações) e de Chefe de Governo (cuida da política interna do país). Já o Parlamentarismo caracteriza-se pela separação entre as funções de chefia de Estado e da chefia de Governo, que são exercidas por pessoas diferentes (com efeito, o Parlamentarismo pode ser um Parlamentarismo Republicano - se a chefia de Estado é exercida pelo Presidente da República -, ou um Parlamentarismo Monárquico - se a chefia do Estado fica a cargo do Rei).

Insiste-se que estes modelos são altamente mutáveis, de forma que foram trazidas características genéricas apenas para introduzir a questão e situar o leitor.

No mais, constitucionalmente falando, o Brasil sempre pendeu pela preponderância da chefia do Executivo no direcionamento do país (Poder Executivo hipertrofiado). Não bastasse isso, sempre preponderou a chefia do Executivo pelo Presidente da República, dentro de um modelo presidencialista como regra: na Constituição de 1824, o chefe do Poder Executivo era o Imperador, nos termos temos do art. 102; na Constituição de 1891, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 41); na Constituição de 1934, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 51); na Constituição de 1937, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 73); na Constituição de 1946, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 78); na Constituição de 1967, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 74); na emenda constitucional nº 1/1969, o chefe do Poder Executivo era o Presidente da República (art. 73); na Constituição de 1988, manteve-se a "tradição" no art. 76. Por fim, analisando a partir do republicanismo, lembra-se que por um único e curto período na história abandonou-se o modelo presidencialista em prol do modelo parlamentarista (ainda que este parlamentarismo tenha se dado por motivos questionáveis). Em dois de setembro de 1961, para tentar apaziguar os ânimos causados pela renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República após sete meses de governo, com a consequente dificuldade de aceitação institucional ao direito de seu Vice, João Goulart, assumir o cargo, instalou-se, por força da emenda constitucional nº 4 à Constituição de 1946, o sistema parlamentar de governo, que permitiu a posse de Goulart, mas reduziu-lhe sensivelmente os poderes. Esta emenda acabou revogada pela EC nº 6, de vinte e um de janeiro de 1963, que restabeleceu o modelo presidencialista (esta emenda é decorrência de um plebiscito realizado logo no começo de 1963, no qual o povo brasileiro optou pelo retorno ao presidencialismo).

Questão interessante é que, por ocasião da Constituinte de 1987-1988, pairava grande dúvida quanto às melhores forma e sistema de governo para o país. Disso decorreu a inclusão de um art. 2º no ADCT, pelo qual no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado deveria definir, através de plebiscito (consulta prévia à população, portanto), a forma (República ou Monarquia constitucional) e o sistema de governo (Parlamentarismo ou Presidencialismo) que deveriam vigorar no País (a Constituição adotou provisoriamente a República Presidencialista, mas condicionou essa continuidade à participação popular). A consulta plebiscitária acabou acontecendo em 21 de abril daquele ano (por força da EC nº 2/1992 que adiantou a data), marcando para primeiro de janeiro de 1995 o início da vigência dos novos modelos, caso fossem adotados. Ao fim, as teses monarquistas e parlamentaristas não vingaram, e como tudo continuou como já estava, boa parte da Revisão Constitucional que deveria começar após a Constituição completar cinco anos (art. 3º, ADCT) perdeu sua razão de existir (a lógica era simples: a Revisão poderia reajustar uma Constituição Republicana Presidencialista para uma Constituição Republicana Parlamentarista, por exemplo).

Antes do debate sobre termos feito a escolha mais acertada (bem como a abertura para um possível “reajuste de rota” pós-escolha de 1993), uma discussão que se afigura pontual é se, com a aprovação popular, Republicanismo e Presidencialismo adquiriram a condição de cláusulas pétreas implícitas na atual manifestação de poder constituinte. Para se ter ideia, a Resolução nº 1, de 18 de novembro de 1993 (oriunda do Congresso Nacional) dispôs sobre o funcionamento dos trabalhos da Revisão Constitucional que começou em outubro daquele ano, bem como estabeleceu normas complementares específicas. Especificamente seu art. 4º, §3º, IV, vedou a apresentação de propostas revisionais que contrariassem a forma republicana e o sistema presidencialista de governo (afinal, admitir o contrário seria desrespeitar a vontade popular manifestada pouco antes, em abril).

Isto posto, há dois posicionamentos extraíveis deste contexto: o primeiro, de que a votação popular pela República e pelo Presidencialismo ratificou a condição pétrea de tais forma e sistema de governo, respectivamente; o segundo, de que, justamente em sentido contrário ao posicionamento anterior, a falta de unanimidade/consenso do constituinte enfraqueceu a adjetivação entrincheirada de tais preceitos.

Comumente, se costuma acenar pela natureza não pétrea do sistema de governo (sob o argumento de que a compatibilidade da separação de Poderes restaria mantida), e pela natureza pétrea da República (sob o argumento de que a Monarquia seria incompatível com a separação de Poderes). Não é o posicionamento que se adota aqui, contudo: ambos os institutos - forma e sistema de governo - não devem ser entendidos como cláusulas pétreas. Concorda-se com o argumento dado para a questão atinente ao parlamentarismo. Discorda-se do argumento dado para a questão inerente à Monarquia: seria perfeitamente possível uma Monarquia no Brasil, desde que esta fosse uma Monarquia constitucional, de modo que a separação de Poderes assegurasse sua existência, assim como fosse mantida a fiscalização interna e externa das funções e instituições republicanas.

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Colunistas

Daniel Barile da Silveira é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela CDH/IGC, da Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB. Professor do programa de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Marília (Unimar). Professor de Direito Constitucional do curso de Direito do UniToledo (Araçatuba/SP). É advogado e consultor jurídico em Direito Público. Foi pesquisador do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Recebeu Menção Honrosa do Supremo Tribunal Federal do pelo seu trabalho nos "200 anos do Judiciário Independente" (STF). Autor de várias obras jurídicas.

Emerson Ademir Borges de Oliveira é mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Vice-coordenador do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília. Professor em cursos de pós-graduação no Projuris e USP-Ribeirão Preto. Autor de várias obras e artigos jurídicos. Advogado e parecerista.

Jefferson Aparecido Dias possui doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha (2009). Atualmente é procurador da República do Ministério Público Federal em Marília. É professor permanente do programa de mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília.

Rafael de Lazari é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor da graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universidade de Marília - UNIMAR. Professor convidado de pós-graduação (LFG, Projuris Estudos Jurídicos, IED, dentre outros), da Escola Superior de Advocacia, e de cursos preparatórios para concursos e exame da Ordem dos Advogados do Brasil (LFG, IED, IOB Concursos, PCI Concursos, dentre outros). Autor, organizador e participante de inúmeras obras jurídicas, no Brasil e no exterior. Advogado e consultor jurídico.