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Inteligência artificial nos escritórios e tribunais. Você ainda vai se render a essa ideia

Inteligência artificial nos escritórios e tribunais. Você ainda vai se render a essa ideia.

17/7/2020

Quando se fala no uso de Inteligência Artificial (IA) nos escritórios de advocacia e nos tribunais, a primeira reação é quase sempre de repúdio. "O computador nunca vai substituir nossa capacidade de pensamento e o trabalho intelectual envolvido na criação" bradam alguns, enquanto outros não se esquecem de ressaltar que a Justiça precisa ser humana, não pode ser tratada (só) por máquinas.

Ambos estão corretos. Isso porém não afasta as inúmeras possibilidades de utilização das ferramentas de IA no dia a dia das atividades jurídicas, sobretudo em funções em que a tecnologia pode prestar um grande favor ao operador do Direito. E elas não são poucas, como veremos.

A primeira atividade em que a utilização da Inteligência Artificial pode ser muito útil é na leitura e triagem de publicações. Os advogados mais experientes vão se recordar do tempo em que um dos serviços mais importantes do escritório era o recebimento dos chamados recortes dos Diários Oficiais com as publicações de decisões e despachos de seus processos. Para minimizar os riscos, muitos ainda colocavam seus estagiários para conferir na versão impressa do jornal se o serviço contratado não tinha deixado escapar nenhuma publicação. Se é verdade que há muitos anos a maioria dos serviços já migrou para a versão digital de leitura e encaminhamento das publicações por e-mail, além do acompanhamento nos próprios sites dos tribunais, o fato é que a IA, com seus mecanismos de machine learning – especialmente para afastar os falsos positivos – seria muito bem-vinda.

A pesquisa de precedentes jurisprudenciais é outra atividade que passou por uma brutal modernização nas últimas duas ou três décadas. Quando o escritório não possuía aquelas imensas coleções – dentre as quais as mais famosas, Revista dos Tribunais (RT) e Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ) – a saída era correr à biblioteca do tribunal ou de alguma entidade como a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e debruçar-se sobre os livros na expectativa de encontrar um acórdão que se amoldasse à tese defendida. Atualmente, com paciência, encontra-se tudo nos sites dos tribunais, mas quem tem a oportunidade de utilizar um dos serviços de pesquisa incrementada pela IA possui o ganho competitivo de poder elaborar um banco de decisões de um julgador específico e, assim, traçar seu perfil com maior facilidade, ou mesmo saber quem são os doutrinadores mais utilizados para fundamentar suas decisões.

O tema torna-se mais polêmico quando se discute a utilização de minutas de petições elaboradas por programas que utilizam Inteligência Artificial. Poderia um computador desempenhar tal função? A resposta é positiva, em alguns casos. Na chamada advocacia de escala, por exemplo, em que os casos se multiplicam às centenas ou aos milhares e as questões – tanto as jurídicas, quanto as factuais – são repetitivas, a IA tem grande utilidade na definição das defesas processuais e de mérito a serem apresentadas. Mas não é só, um bom estudo do entendimento das varas ou juizados especiais em que as ações ocorrem com maior frequência permite decidir com precisão se é ou não economicamente viável enfrentar a discussão até as instâncias superiores ou se a causa comporta acordo e em que bases1. Petições simples, como de juntada de documentos ou oposição ao julgamento virtual, também comportam o uso da IA nos escritórios de advocacia, podendo, inclusive, serem vinculadas ao sistema de leitura e triagem das publicações para que gerem automaticamente as respectivas minutas2.

No Judiciário, o uso da Inteligência Artificial também não é novidade. Boa parte dos tribunais já utiliza algum sistema de IA, contando inclusive com o apoio e incentivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que em 2019 criou um laboratório de inovação para o processo eletrônico3. Embora ainda apresente alguns problemas e dificuldades, é visível o avanço dos sistemas de peticionamento eletrônico dos tribunais. A título de exemplo, a nova versão do e-SAJ do TJ de São Paulo identifica em um único local as últimas publicações feitas em nome do advogado e sugere, no momento do protocolo, se aquela petição está ligada à resposta ao despacho anterior.

Tal qual na atividade advocatícia, a principal controvérsia reside na possiblidade de os sistemas de IA produzirem decisões no lugar dos julgadores. Poderiam eles substituir juízes, desembargadores e ministros? Dois dos sistemas mais avançados são o Victor, do Supremo Tribunal Federal e o Sócrates, do Superior Tribunal de Justiça. Com base nos temas já pacificados em sede de repercussão geral e de recursos repetitivos, tais sistemas conseguem identificar recursos extraordinários e especiais que se enquadrariam na orientação fixada por STF e STJ, facilitando a triagem dos gabinetes e a elaboração de decisões uniformes.

À primeira vista, as vantagens são nítidas: celeridade processual, diminuição do acervo dos tribunais e uma possível – embora não comprovada – maior previsibilidade nas decisões judiciais, todas em consonância com os ditames do Código de Processo Civil e da Constituição Federal4.

Mas há uma preocupação muito importante, externada com clareza pela ministra Nancy Andrighi, do STJ: "se usada a inteligência artificial, cujo trabalho é analisar um universo com centenas de julgados idênticos aplicando uma tese, a máquina iria separar a tese consolidada no tribunal (...) e que deve ser aplicada, com base nos precedentes", mas faria isso sem se atentar às peculiaridades do caso em questão. "É nesse momento que deve surgir o olhar atento e dedicado do juiz", concluiu5.

Com efeito, a rápida identificação dos temas por meio da leitura automatizada das razões recursais pode direcionar o recurso a uma prateleira virtual de processos aguardando uma decisão já aplicada a inúmeros outros casos que não seja válida para aquele recurso específico ou, pelo menos, não seja a melhor decisão. E quem faria essa distinção? É aqui que entra o que a ministra Nancy Andrighi denominou olhar atento e dedicado do juiz, a separar situações idênticas das que devem ser decididas de maneira distinta, pois o que a princípio se enquadraria numa hipótese, pode ter peculiaridades não perceptíveis pela análise fria das máquinas e que justifiquem uma decisão diversa.

Neste ponto, a IA seria um remédio que atacaria os sintomas, mas não a causa da doença. Não é possível que nossos tribunais superiores continuem a receber número exacerbado de recursos, funcionando como se fossem verdadeiro “3º grau de jurisdição”. A função do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça é a de pacificar os grandes temas constitucionais e legais e firmar uma orientação segura aos tribunais de justiça e regionais federais. Para tanto, a IA seria mero paliativo, pois a solução passa pela criação de filtros de admissibilidade que permitam aos ministros a escolha dos temas a serem decididos, como a própria repercussão geral do recurso extraordinário e a relevância da questão federal para o recurso especial, esta última ainda em debate no Congresso Nacional.

Em conclusão, embora ainda se esteja longe de imaginar a substituição das funções jurídicas mais tradicionais por robôs, em especial das que envolvem a atividade intelectual, a IA pode ser de grande valia e auxílio ao trabalho de juízes e advogados, desde que esses não se esqueçam dos limites éticos do uso da tecnologia e de sua responsabilidade enquanto responsáveis finais pelas peças e decisões.

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1 A análise das decisões pode inclusive sugerir que a empresa evite uma nova demanda, ofertando uma solução extrajudicial que desestimule o consumidor – normalmente, quando se fala em advocacia de escala, se está diante de questões consumeristas – a procurar o Judiciário.

2 Há um outro aspecto relevante a ser avaliado, que é a potencial eliminação de mão-de-obra decorrente do maior uso das ferramentas de IA. Este tema, porém, será abordado numa próxima coluna.

3 Clique aqui (acesso em 13/07/2020).

4 Artigos 4º, 6º e 926 do CPC e 5º, LXXVIII, da CF.

5 Palestra promovida em outubro de 2019 pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e que pode ser acessada aqui (acesso em 16/07/2020).

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Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área contenciosa do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, especialista em Direito Digital e tecnologia. Membro da Comissão Especial de Tecnologia e Informação da OAB, do Conselho de Tecnologia e Informação do IASP e do Comitê de Direito Digital do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Ex-assessor de ministros do STJ, na sessão de Direito Privado.

Ricardo Maffeis Martins é advogado especialista no Contencioso Digital e de Proteção de Dados. Professor de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito e do Curso Damásio. Foi assessor de ministros e coordenador da Segunda Seção do STJ. Certificado em Privacidade e Proteção de Dados pelo Data Privacy Brasil. Membro da Comissão de Direito, Inovação e Tecnologia do IASP.