Introdução
Desde 2006, a lei 11.343/06 (lei de drogas) transformou o Brasil em um dos países com maior população carcerária do mundo. Conforme SENAPPEN - Secretaria Nacional de Políticas Penais, em outubro de 2025, o Brasil conta com 941.752 pessoas privadas de liberdade, um crescimento aproximado de 900% desde 19901. Relatório de Human Rights Watch aponta que essa lei foi responsável principal pelo incremento: em 2005, 9% dos presos relacionavam-se a crimes de drogas; em 2014, esse percentual atingiu 28%2.
Paradoxalmente, enquanto a população carcerária explodia, o tráfico de drogas permanecia ativo e financeiramente viável. Entre 2005 e 2014, homicídios cresceram 125%, porém apenas 10% dos presidiários relacionavam-se a homicídio; 90% dos crimes contra vida permaneciam sem conclusão3. O sistema de justiça prioriza combate às drogas em detrimento de investigação de homicídios. Essa escolha política revela que guerra às drogas não é medida de segurança pública, mas ferramenta de gestão diferencial de legalidades e controle seletivo sobre população pobre.
Salo de Carvalho, jurista de referência em política criminal de drogas, afirma que "pensar de forma crítica a tensão entre o modelo de guerra às drogas e o modelo sanitário permite romper com mitos do senso comum de que é necessário maior uso do sistema penitenciário para reduzir o tráfico e consumo". Contudo, a evidência empírica demonstra que o Brasil permanece preso ao modelo punitivista de "guerra"4.
O presente artigo propõe tese contrária: investigação de lavagem de dinheiro descapitaliza crime organizado de forma mais eficaz e duradoura que prisão de varejistas de drogas. Apenas refocalizando persecução penal em financiadores, líderes e esquemas de branqueamento pode-se alcançar efetiva desarticulação organizacional.
A seletividade penal e o encarceramento seletivo
A lei 11.343/06 criminaliza dois verbos-núcleo distintos: art. 33 (tráfico de drogas) e art. 36 (financiamento ou custeio de tráfico). Ambos são hediondos ou equiparados a hediondos, com penas de reclusão de 5 a 15 anos para tráfico e 3 a 10 anos para financiamento5. Diferença crucial reside na estrutura do crime: art. 33 abarca condutas de varejista (possuir, transportar, vender pequeno volume); art. 36 dirige-se a quem fornece capital para operação criminosa.
Investigação em Minas Gerais (2007-2017) revelou estatística escancarada: "quase duas mil vezes mais prisões de traficantes indiciados pelo artigo 33 que pelo artigo 36 da Lei 11.343/2006"6. De 100 prisões por tráfico, apenas 1 referiu-se a financiamento. Esse dado desmente discurso oficial de "combate ao tráfico de drogas" o combate, de fato, é ao pequeno traficante pobre.
A criminologia crítica explica esse fenômeno, o sistema penal realiza "gestão diferencial de ilegalidades" (Foucault). Não pune todas as ilegalidades, apenas algumas, de específicos setores sociais. Traficante rico que comanda operação nacional permanece impune; varejista negro e pobre de favela é preso. Investigação demonstra que estrutura do tráfico é "empresarial capitalista": há divisão de trabalho, especialização de funções, gestão de risco e financiamento7. Contudo, apenas a ponta varejista recebe repressão estatal.
O crime organizado compreende estrutura hierarquizada, onde existem os financiadores (que controlam capital e contatos internacionais); gestores logísticos (que coordenam distribuição regional); e varejistas (que vendem ao consumidor final). Quando o sistema penal prende o varejista, o crime continua intacto porque o capital permanece nas mãos de financiadores. Um novo varejista é rapidamente recrutado. Quando o sistema penal interrompe o fluxo financeiro, toda cadeia colapsa, pois o capital é sangue da organização8.
Investigação financeira como estratégia superior
Operação Narco Bet (Polícia Federal, outubro de 2025) exemplifica abordagem superior. A Polícia Federal deflagrou operação contra esquema de lavagem de dinheiro vinculado a tráfico internacional de drogas, descapitalizando uma organização criminal com bloqueio de R$ 630 milhões em bens e valores, cumprindo 11 ordens de prisão contra financiadores e gestores (não varejistas)9. Essa Investigação foca em "técnicas sofisticadas de lavagem de dinheiro, com movimentações financeiras em criptomoedas e remessas internacionais."
Também, a Operação Livro-Caixa (Força Integrada de Combate ao Crime Organizado/Piauí, outubro de 2025) igualmente deflagrada mediante "apreensão de documentos que revelaram movimentação financeira de grupo criminoso estruturado para tráfego, lavagem e associação criminosa"10. As investigações focaram no fluxo financeiro, e não na quantidade de drogas apreendidas.
Esses exemplos recentes demonstram mudança paradigmática possível: investigações financeiras desarticulam organizações criminosas de forma estrutural, não apenas sintomática. Perseguindo o dinheiro, identificam-se todos envolvidos (varejistas, gestores, financiadores), permitem confisco de patrimônio acumulado (descapitalização) e tornam o tráfico inviável economicamente.
O UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime estabelece que "investigação de lavagem de dinheiro como forma eficaz no combate ao tráfico de drogas permite identificar desde varejistas até financiadores, além de permitir confisco de recursos adquiridos ilegalmente, descapitalizando o tráfico e tornando-o inviável"11. Quando o grande traficante não consegue movimentar ganhos ilícitos (porque bloqueados ou confiscados), a organização perde incentivo de continuar a operação.
Paradoxo quantitativo e falência da guerra
O Brasil encarcerou 941.752 pessoas (outubro de 2025), com investimento em aproximadamente 1.400 unidades prisionais construídas ou reformadas desde 1990. Porém, o tráfico de drogas permanece ativo e em expansão. O consumo de cocaína aumentou; cartéis colombianos expandem tendo presença no Brasil; Comando Vermelho e PCC controlam territórios urbanos; facções financiam violência através de esquemas sofisticados de lavagem.
Salo de Carvalho argumenta que "o proibicionismo, no Brasil, é ineficiente e gerou resultados mais graves que o próprio uso de drogas, resultando em repressão contra parcela mais pobre da sociedade, no empoderamento de facções criminosas e na superlotação de prisões"12. Essas palavras fundamentam-se em evidência: investimento massivo em encarceramento não reduziu o tráfico; apenas transferiu custo social para população pobre enquanto crime organizado permanece intacto.
Investigação de Carvalho (2013) evidencia que política criminal de drogas confirma teoria de "eficácia invertida" do sistema penal: é exitoso não em defender sociedade ou prevenir crimes, mas em "imunizar classes empoderadas" e punir pobres13. Grandes traficantes acumulam bilhões (como Operação Carbono Oculto revelou com PCC movimentando R$ 52 bilhões entre 2020-202414); varejistas acumulam anos de prisão.
Conversão de política criminal de drogas pela investigação financeira inverte essa lógica: atinge financiadores, descapitaliza organizações, recupera patrimônio público. Cumpre funções declaradas de "segurança pública" de forma eficaz.
Considerações finais
Evidências empíricas demonstram de forma inquestionável que a "guerra às drogas" brasileira falhou. Com quase um milhão de pessoas privadas de liberdade, a maior população carcerária do mundo em números absolutos atrás apenas de EUA e China. O tráfico permanece ativo e financeiramente robusto, isso não é coincidência; é falência sistêmica de estratégia.
Por tal fato a reorientação urgente deve ocorrer em dois eixos: (i) legislativo, reduzindo punição para posse e pequeno tráfico (reconhecendo como problema de saúde pública e acesso à educação e trabalho básicos, não penal); (ii) investigativo, concentrando esforços de Polícia Federal, Ministério Público e órgãos de inteligência financeira (COAF) em rastreamento de fluxos financeiros, identificação de líderes e confisco de patrimônio criminoso.
Operações recentes (Narco Bet, Livro-Caixa, Carbono Oculto) revelam que a investigação financeira funciona. Quando são bloqueados R$630 milhões (Narco Bet) ou R$52 bilhões (PCC), a organização criminosa é efetivamente desarticulada. Quando o varejista é preso e liberado em 3 anos, a organização continua intacta.
A escolha é política e clara, continuar prendendo pobres em guerra que não vence, ou investigar financiadores, recuperar patrimônio público e descapitalizar crime organizado. Evidência internacional (Portugal, Uruguai) e evidência doméstica recente (operações de 2025) demonstram que a segunda opção funciona.
Salo de Carvalho resumiu corretamente: "urge romper com mitos do senso comum deque é necessário maior uso do sistema penitenciário." Urge investigar dinheiro. Urge descapitalizar. Urge desarticular de verdade.
__________
O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.
1 SENAPPEN. Levantamento de Informações Penitenciárias: Primeiro Semestre de 2025. Ministério da Justiça e Segurança Pública, out. 2025.
2 HUMAN RIGHTS WATCH. "Preso no Brasil: Políticas de Encarceramento e Direitos Humanos." Relatório, 2015.
3 CARTA CAPITAL. Encarceramento em massa: ineficaz, injusto e antidemocrático. jan. 2017.
4 CARVALHO, Salo de. Política de drogas e encarceramento no Brasil. Palestra na ENSP/Fiocruz, 30 mar. 2017. Blog CEE-Fiocruz.
5 BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Arts. 33, 36. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 ago. 2006.
6 PEREIRA, Zelina Lisley; GUIMARÃES, Lucas Eduardo. A Investigação da Lavagem de Dinheiro como Forma Eficiente de Combate ao Tráfico de Drogas. Revista Avante (Polícia Civil de Minas Gerais), 2023, p. 88.
7 ZACCONE, Orlando. O Elemento Subjetivo da Lavagem de Dinheiro. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 23-25.
8 SALLA, Fernando. O crime organizado entre a criminologia e a sociologia. Tempo Social (USP), v. 32, n. 3, 2020.
9 POLÍCIA FEDERAL. Operação Narco Bet. Relatório, out. 2025. Disponível aqui.
10 FICCO/PI. Operação Livro-Caixa. Comunicado à Imprensa, out. 2025
11 UNODC. Investigação de Lavagem de Dinheiro no Combate ao Tráfico de Drogas. Policy Brief, 2023.
12 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Op. cit., 2013.
13 CARVALHO, Salo de. A Política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 118.
14 GAZETADOPOVO. Como o PCC movimentou bilhões em postos, fintechs e motéis. Investigação Especial, set. 2025.