Introdução
A metáfora das "fraturas regulatórias" refere-se a lacunas estruturais entre o desenho tecnológico de blockchain (que presume descentralização e anonimato) e o desenho regulatório estatal (que presume intermediários identificáveis e centralização). Nessas fraturas, crime organizado próspera. Enquanto Bitcoin é frequentemente apresentado como "rastreável porque tudo fica registrado na blockchain", a realidade técnica é mais sofisticada: rastreabilidade existe apenas se intermediários (exchanges) cumprem KYC e reportam movimentações suspeitas. Quando intermediários falham, desaparecem ou operam em jurisdições sem regulação, a rastreabilidade evanesce.
Conforme pesquisa de Chainalysis (2025), embora apenas 0,24% de transações de criptomoedas globais envolvam atividades ilícitas, volume absoluto movimentado permanece monumental - bilhões de dólares anuais financiando tráfico de drogas, terrorismo e corrupção. O Brasil, que recebe centenas de milhões de dólares de tráfico de drogas via criptomoedas anualmente (conforme relatórios da Polícia Federal), exemplifica como "fraturas regulatórias" convertem tecnologia inovadora em instrumento de crime organizado1.
O presente artigo desconstrói essas fraturas tecnicamente, analisando: (i) pseudonimato vs. rastreabilidade; (ii) privacy coins (Monero, Zcash); (iii) mixing services e tumblers; (iv) atomic swaps e cross-chain bridges; (v) finanças descentralizadas (DeFi) como espaço sem regulação. Conclui-se que "blockchain criminoso" não é contradição, é a realidade técnica onde desenho descentralizado encontra desenho regulatório fragmentado.
Fratura 1: Pseudonimato vs. rastreabilidade absoluta
Bitcoin é frequentemente anunciado como "privado." Não é. É pseudônimo: transações aparecem publicamente, mas vinculadas a endereços (strings de caracteres alfanuméricos) não necessariamente ligados à identidade legal. Diferença é crucial: Bitcoin é totalmente rastreável se intermediários cumprem deveres regulatórios.
Endereço público 1A1z7agoat4OwShtQqH5z46eGuVjycx7... pode ser vinculado a pessoa específica se exchange que o usuário utilizou mantém registros de KYC.
Contudo, quando:
- Usuário compra Bitcoin em exchange regulado, transfere para carteira não custodiada, depois envia via atomic swap para altcoin em blockchain diferente, e converte em Monero antes de ré-depositar em exchange não regulado em paraíso fiscal -rastreabilidade colapsa. Cada etapa fragmenta uma trilha.
Pesquisa de Migalhas (2025) evidencia que "três características - descentralização, pseudoanonimidade e globalidade - permitem que criptomoedas contornam regulação tradicional"2. Descentralização significa que não há "autoridade central" que recuse transmissão de fundos suspeitos; pseudonimato oculta identidade real; globalidade permite "fuga" de jurisdição apenas alterando blockchain para rede internacional.
Fratura 2: Privacy coins como "dinheiro digital perfeito"
Privacy coins como Monero (XMR) e Zcash (ZEC) implementam criptografia de conhecimento zero (zk-SNARKs) para tornar transações verdadeiramente privadas por padrão. Diferentemente de Bitcoin (rastreável se intermediários cooperam), Monero é intrinsecamente irrastreável. Usa ring signatures (misturam assinatura do usuário com outras, tornando impossível identificar quem assinou), stealth addresses (criam endereços únicos e ocultos para cada recebimento) e confidential transactions (ocultam valor transferido)3.
Consequência: Monero é "dinheiro digital perfeito" do ponto de vista de traficante. Recebe pagamento em Monero, guarda sem qualquer rastro téc nico, e eventualmente converte em moeda fiduciária. A autoridade supervisora nunca consegue reconstruir o fluxo porque não há registro na blockchain vinculando origem do Monero a traficante.
Binance deslistou Monero em 2021 por pressão regulatória; contudo, ele permanece negociável em exchanges descentralizadas (DEX) que operam sem KYC, em plataformas P2P (pessoa-a-pessoa), e em jurisdições como Vietnã e Rússia onde regulação é leve4. A "fratura regulatória" reside exatamente aí: Binance cumpre a regulação brasileira e retira Monero; mas 500 DEXs globais permanecem operacionais, fora do perímetro regulatório de qualquer país.
Fratura 3: Mixing services e tumblers descentralizados
Mixing services (também chamados "tumblers" ou "mixers") funcionam como "embaixadores" de transações: recebem criptomoedas de múltiplas fontes, as agregam, redistribuem para endereços novos, fragmentando a trilha de origem. Serviço Helix, desmantelado pelo FBI em 2021, facilitou branqueamento de US$ 300 milhões, incluindo recursos de mercados de drogas5.
Inovação recente: mixers descentralizados (smart contracts) que executam função de mixing sem intermediário. Usuário deposita fundos em contrato inteligente, contrato embaralha, redistribui para novo endereço - tudo automatizado e sem pessoa jurídica responsável. Não há "proprietário" a processar; não há "intermediário" a regular. A "fratura regulatória" é que Estado não consegue interditar smart contract descentralizado operando em blockchain; pode apenas interditar exchanges que o utilizam, que por sua vez migraram para jurisdições offshore.
Pesquisa de Tippe (2025) evidencia que "unmixing" (desembaralhar transações de mixer para reidentificar origem) permanece tarefa matemática complexa mesmo com análise forense avançada7. Criminosos que pagam taxa de mixing (tipicamente 1-2%) obtêm grau de privacidade comparável a transferência bancária via paraíso fiscal - com vantagem adicional de velocidade (minutos vs. dias) e irreversibilidade.
Fratura 4: Atomic swaps e cross-chain bridges
Atomic swaps permitem troca de criptomoedas entre blockchains diferentes sem intermediário. Contratos inteligentes (HTLC - Hashed TimeLock Contracts) sincronizam transações: Usuário A enviar Bitcoin na blockchain Bitcoin; Usuário B envia Ethereum na blockchain Ethereum; contrato verifica ambas as transações ocorreram e as confirma atomicamente7.
Vantagem para traficante: após o fluxo inicial passar por Bitcoin (rastreável se intermediário cooperar), usuário A realizar atomic swap convertendo para Monero em blockchain de Monero. Troca ocorre P2P (pessoa-a-pessoa) sem intermediário; nenhum exchange sabe que Bitcoin foi convertido em Monero; rastreabilidade truncada.
Cross-chain bridges (Wormhole, Axelar, Celer Network) funcionam similarmente, permitindo transferir valor entre blockchains sem passar por exchanges centralizadas. Usuário deposita 1 Bitcoin em bridge, recebe 1 Bitcoin "wrappado" em Ethereum, converte em altcoin obscuro, depois reconverte em Monero em paraíso fiscal. Cada etapa fragmenta uma trilha; no final, o traficante obtém fundos completamente desvinculados da origem ilícita.
A "fratura" não é técnica (tecnologia funciona conforme desenhada), mas regulatória: nenhum Estado consegue proibir smart contracts descentralizados ou forçar intermediários P2P a cumprir KYC quando intermediário não existe - transação ocorre entre pares, sem terceiro.
Fratura 5: DeFi - Finanças descentralizadas como "selvagem oeste"
Plataformas DeFi (Uniswap, Aave, Curve) funcionam como exchanges sem proprietário: usuários trocam tokens via smart contracts sem criar conta, sem fornecer identidade, sem intermediário humano. Qualquer pessoa pode depositar tokens, qualquer pessoa pode sacar. Plataformas operam código aberto em blockchain pública; ninguém "controla" Uniswap, é um protocolo descentralizado executado por milhares de nós globalmente.
Consequência: O traficante pode efetuar operações de lavagem complexas (fracionamento de valores, mudança de blockchain, conversão de moeda múltiplas vezes) através de interfaces DeFi, sem qualquer intermediário ter visibilidade sobre identidade do operador. É "selvagem oeste" financeiro onde o regulador não consegue interceptar operações porque não há entidade legal a processar.
Operação Kryptos (Polícia Federal), que desmantelou pirâmide financeira com criptoativos movimentando R$ 38 bilhões, revelou uso extensivo de DEX e DeFi - operador não utilizava exchange regulada porque sabia que KYC a exporia8. Utilizava interfaces descentralizadas para executar operações sofisticadas de lavagem com total impunidade até as investigações chegarem próximas.
Lei 14.478/22 (marco legal dos criptoativos) incluiu exchanges no rol de pessoas obrigadas pela lei 9.613/1998 (lei de lavagem de dinheiro), impondo deveres de KYC, monitoramento transacional e reporte ao Coaf9. Contudo, lacunas permanecem críticas:
- Exchanges no exterior não reguladas pelo Brasil: Usuário transfere fundos para exchanges em Cayman ou Malta, não reguladas pelo BC, realiza operações de lavagem lá, e é reconvertido em moeda fiduciária em paraíso fiscal. O Brasil não consegue forçar a conformidade porque exchange não opera sob jurisdição brasileira;
- DEX e Smart Contracts descentralizados: Uniswap, Aave, Curve não possuem "proprietário" ou "responsável" suscetível de processo judicial. Não há KYC em interfaces descentralizadas. O Usuário pode utilizar DeFi anonimamente e o Brasil não consegue intermediar operações porque não há entidade a processar;
- Wallets não custodiadas: Se o traficante controla sua própria carteira de criptomoedas (rodando nó em computador pessoal), nenhum regulador consegue forçar reporte ou congelamento. Carteira não custodiada é propriedade privada do criminoso;
- Atomic Swaps e bridges descentralizadas: P2P trades não deixam rastro em blockchain público vinculável a intermediário regulado. O Brasil não consegue identificar nem interceptar.
Resultado: lei 14.478/22, embora avanço importante, regula apenas 30-40% do ecossistema cripto (exchanges grandes, custodiais). 60-70% do valor movimentado ocorre em espaços não regulados (DeFi, DEX, wallets privadas, altcoins obscuras, cross-chain bridges, atomic swaps).
Solução não é proibir blockchain (tecnologia é irreversível). Solução é implementar rastreabilidade compulsória através de três eixos:
Eixo 1: Travel rule obrigatórioFATF - Financial Action Task Force recomenda "travel rule" para criptomoedas: quando valor > R$1 mil é transferido entre exchanges, ambas precisam compartilhar informações de origem e destino (análogo a remessas internacionais bancárias). O Banco Central Brasil deve tornar travel rule obrigatório, com multa de R$10 milhões por violação, para todas as PSAVs operando no Brasil10.
Eixo 2: Bloqueio de endereços de alto riscoBanco Central deve manter lista pública de endereços de criptomoedas vinculados a crime organizado, tráfico de drogas, terrorismo. PSAVs devem bloquear automaticamente transferências para esses endereços. Se PSAV tenta permitir transferência para endereço bloqueado, incorre em responsabilidade penal (lei 9.613/1998) além de administrativa.
Eixo 3: Interdição de privacy coins em exchanges brasileirasPropõe-se que Banco Central interdite negociação de Monero, Zcash e privacy coins similares em exchanges reguladas operando no Brasil. Privacy coins são ferramentas específicas de ocultação; não servem função econômica legítima que não pudesse ser realizada com Bitcoin, Ethereum ou stablecoins (todas rastreáveis). Interdição reduziria drasticamente a utilização desses ativos por criminosos brasileiros.
Eixo 4: Rastreabilidade de DeFi através de regulação UpstreamPropõe-se que Banco Central requeira que exchanges reguladas não permitam depósito de fundos originários de plataformas DeFi sem prova de compliance (atestação que fundos não foram utilizados em operações de mixing, privacy coin, etc.). Força-se rastreabilidade retroativamente: se o traficante utilizou DeFi para lavar, não consegue "legalizar" fundos em exchange regulada.
Considerações finais
"Blockchain criminoso" não é falha de tecnologia; é exploração intencional de "fraturas" entre desenho técnico (descentralização, pseudonimato) e desenho regulatório (centralização, KYC). Enquanto technology é revolucionária e legítima, utilização para financiamento de narcotráfico é criminosa.
O Brasil dispõe de ferramentas legais (lei 14.478/22, lei 9.613/1998) mas precisa de vontade política de implementação rigorosa e harmonização com padrões internacionais (FATF, OCDE). Sem ação, "fraturas regulatórias" continuarão sendo canais de financiamento de crime organizado que matam milhares anualmente.
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1 CHAINALYSIS. 2025 Crypto Crime Report. Relatório Anual, 2025.
2 POLÍCIA FEDERAL. Operações contra Financiamento de Tráfico via Criptomoedas. Relatórios 2024-2025.
3 MIGALHAS. Criptomoedas e lavagem de dinheiro: riscos para o cidadão comum. Artigo, set. 2025.
4 OMARINGA. 4 Criptomoedas Focadas em Privacidade e Anonimato. Blog, ago. 2025.
5 PORTALDOBITCOIN. Moedas de privacidade correm o risco de serem deslistadas. Notícia, jan. 2024.
6 ELLIPTIC. How Blockchain Technology Can Supercharge Your Investigative Case. Blog, out. 2025.
7 TIPPE, P. Unmixing the Mix: Patterns and Challenges in Bitcoin Mixer Forensics. Science Direct, 2025.
8 COINDESK. Atomic Swaps: O que são e como funcionam? Educação, 2024.
9 ABES. Criptoativos e lavagem de dinheiro: quando a inovação encontra a criminalidade. set. 2025.
10 BRASIL. Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022. Dispõe sobre a regulação do mercado de criptomoedas.
11 FATF. Guidance for a Risk-Based Approach to Virtual Assets. Recomendação 16, 2019.
12MIGALHAS. Ressocialização ainda é desafio no sistema prisional brasileiro. Análise, fev. 2025.
13 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Op. cit., 2013.
14 CARVALHO, Salo de. A Política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 118.
15 GAZETADOPOVO. Como o PCC movimentou bilhões em postos, fintechs e motéis. Investigação Especial, set. 2025.
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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.